A Câmara dos Deputados aprovou emenda constitucional que abre a porta para aumentos da remuneração de algumas categorias de servidores públicos (advogados, delegados, peritos e auditores) até o limite de 90,25% do subsídio mensal recebido pelos juízes do Supremo Tribunal Federal.
O privilégio é para a minoria, a elite do funcionalismo que comanda a burocracia nos municípios com mais de 500 mil habitantes.
É despesa nova, estimada em R$ 10 bilhões anuais durante o próximo triênio. Começou a ser criada pela força do voto de 95% dos deputados presentes na sessão, numa cristalina demonstração de desdém pelo governo que está aí.
Houve, sem dúvida, além desse desdém ao governo, uma ofensa a uma cláusula pétrea que dita a separação dos poderes, o que é muito pior.
O argumento é que a EC, de iniciativa parlamentar, violou o artigo 61, parágrafo 1º, inciso II, alínea “c”, da Constituição Federal.
O dispositivo prevê que são de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre servidores públicos da União e territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria.
A teor do artigo 61, § 1º, II, “a”, da Constituição Federal, é da iniciativa do Presidente da República o aumento de remuneração de servidores públicos.
Discute-se assim o problema da iniciativa legislativa inerente ao processo legislativo, que é o conjunto dos atos preordenados que visam à criação de normas de Direito.
Como disse José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª edição, pág. 452), a iniciativa legislativa é a faculdade que se atribui a alguém ou algum órgão para apresentar projetos de Lei ao Legislativo. Tal é conferido de forma concorrente a mais de uma pessoa ou órgão, mas, em casos expressos, é outorgada com exclusividade a apenas um deles.
A iniciativa de emendas à Constituição cabe concorrentemente a um terço de membros da Câmara dos Deputados, a um terço dos membros do Senado, ao Presidente da República e a mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação (artigo 60).
Fala-se em dois tipos de iniciativa no direito brasileiro: a comum e a reservada.
A primeira é geral. Parte do Presidente da República, dos parlamentares, das Comissões das Casas Legislativas e do povo (artigo 61, § 2º).
A segunda, a iniciativa reservada, é aquela conferida pela Constituição a certos órgãos como o Presidência da República (artigo 61, § 1º), Câmara dos Deputados(art. 51, IV), Senado Federal (art. 52, XIII), Poder Judiciário (artigo 56, IJ) e Procuradoria Geral da República (artigo 127, § 2º e 128, § 5º).
Na matéria, o Supremo Tribunal Federal tem declarado inconstitucional o desrespeito às matérias reservadas à iniciativa do Poder Executivo, dada a sua implicação com o princípio fundamental da separação de poderes (RDA, 215: 270 – 8, 188:139; RTJ 159:736).
No ensinamento de José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, pág. 497 – 498, 1995), a outorga do poder de instauração do processo legislativo, qualificada, ope constitutionis, pela nota da privatividade, afasta a possibilidade jurídica da coparticipação de terceiros na fase introdutória do procedimento de criação legislativa.
Enfatizou o Ministro Celso de Mello, RTJ 146/388, que é preciso entender que a cláusula de reserva pertinente ao poder de instauração do processo legislativo traduz postulado constitucional de compulsório atendimento pelas unidades federadas e cujo desrespeito, precisamente por envolver usurpação de uma prerrogativa institucional não compartilhada, afigura-se em vício insanável.
Sendo assim, como ainda disse o Ministro Celso de Mello, a natureza especial que assume a cláusula referente à iniciativa reservada das leis caracteriza, em nosso sistema de direito, derrogação que excepciona o princípio geral da legitimação concorrente para a instauração do processo de formação das espécies legislativas. Tal se dá diante de explícita previsão constitucional.
Impossível falar, nessa linha, na tese da convalidação das leis resultantes do procedimento inconstitucional da usurpação, que foi repudiada nas lições de Francisco Campos (Parecer, RDA 73/380), de Caio Tácito (Parecer, RDA 68/341) e, ainda, de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, volume 2/111, 1992), dentre outros.
Esse entendimento foi ratificado na ADI 4154/MT, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, DJe 110, publicado em 18 de junho de 2010, em que se registrou que a iniciativa de lei que disponha sobre regime jurídico de servidores públicos é reservada ao Chefe do Poder Executivo.
Se isso não bastasse, com o devido respeito, esses servidores citados, não estão na categoria de agentes políticos, são agentes públicos, razão pela qual devem merecer um tratamento diferente e não isonômico. Sabe-se que, em face da isonomia, devem ser os iguais tratados de forma igual, assim como os desiguais de forma desigual, como já dizia Rui Barbosa, à luz da lição aristotélica.
Há, portanto, inconstitucionalidade formal que pode ser declarada, caso o Congresso Nacional mantenha-se nesse propósito, que desrespeita, de forma frontal, a reserva de iniciativa do Chefe do Executivo e, ainda, o princípio da separação de poderes.
Não se sabe se estamos num parlamentarismo ou num semipresidencialismo de fato. A verdade é que a Constituição Federal prevê o presidencialismo e cláusulas pétreas que exigem o respeito à separação de poderes.
Caso aprovada emenda constitucional na matéria, restará à Presidência da República o caminho de ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (artigo102, I, “a”, da Constituição Federal) por ferimento à cláusula pétrea (artigo 60, § 4º, da Constituição Federal), uma vez que há violação ao princípio da separação de poderes.