SUMARIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. O CONTROLE EXTERNO PELOS TRIBUNAIS DE CONTAS E PELOS CIDADÃOS. 3. LEGITIMIDADE DAS CONTAS MUNICIPAIS. 4. APLICABILIDADE DO ART. 31 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 5. DIREITO DE PETIÇÃO ÀS AUTORIDADES PUBLICAS, A AÇÃO POPULAR E A DENÚNCIA À CÂMARA MUNICIPAL E AO TRIBUNAL DE CONTAS. 6. CONCLUSÕES. 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1. INTRODUÇÃO.
A teoria da separação dos três poderes do Estado prevê como função precípua do Poder Legislativo a emissão de comandos normativos para disciplinar a vida jurídica no seio do Estado.Coadjuvando-se a esta elevada função, ressalta também a fiscalização financeira e orçamentária dos Poderes do Estado, bem como de qualquer pessoa natural ou jurídica de direito público ou privado que em suas atividades utilizem bens, valores ou dinheiro públicos. A atividade fiscalizatória das finanças, do orçamento e do patrimônio público está a cargo do Poder Legislativo com auxílio dos Tribunais de Contas, conforme dispõe os arts. 70 ao 75 da Constituição Federal de 1988.
É o controle externa corporis exercido pelos órgãos políticos que são o Congresso Nacional, as Assembléias Legislativas e as Câmaras Municipais, em cooperação com as Cortes de Contas. Neste particular, vale ressaltar que, a despeito da fiscalização exercida pelos legítimos representantes eleitos pelo povo, o cidadão pode exercer de per si o controle da utilização do dinheiro público consoante dispõe expressamente o art. 74, & 2º da lei magna: "Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de contas da União" (grifo nosso). O exercício de tal direito é extensivo também ao âmbito dos Tribunais de Contas dos Estados e dos Municípios, de acordo com o art. 75 da CF/88. Talvez fosse desnecessário ressaltar, mas o Poder Legislativo também está sujeito aos controles externos aludidos supra.
Esta fiscalização é uma maneira de controlar a atividade destes entes, órgãos ou pessoas naturais que gerenciem bens ou valores públicos. "Controle", na lição de HELY LOPES MEIRELES, "em tema de administração pública, é a faculdade de vigilância, orientação e correção que um Poder, órgão ou autoridade exerce sobre a conduta funcional de outro" [1]. De forma que, embora tais entes ou órgãos gozem de autonomia na gestão de seus negócios, é princípio inafastável que devem ser prestadas contas da utilização do dinheiro público. Não há que se admitir gastos ilegais, desvios de finalidade, corrupção ou omissão na prestação das contas, sob pena de ruir o edifico da Administração Pública.
A inovação trazida nesta matéria pela Constituição Federal de 1988 diz respeito ao município como entidade federativa. Autêntico ente político com personalidade de direito público interno com autonomia política, autonomia normativa e autonomia financeira, não encontrando sua disciplina normativa constitucional similitudes em constituições pretéritas, nem no direito comparado [2]. A Constituição Federal de 1988 no título III que cuida da organização do Estado, dedica o seu capítulo IV inteiramente ao Município, e no art. 31 trata da fiscalização do município que será exercida pela Câmara Municipal com auxílio do Tribunal de Contas dos Estados ou dos Municípios. O Objeto principal de nossas considerações será o parágrafo terceiro deste dispositivo que diz, in verbis: "As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade nos termos da lei" (grifo nosso). Uma primeira ordem de indagações se refere ao enunciado lingüístico "legitimidade", para aferir de que se trata e qual sua extensão, bem como tecer algumas considerações acerca de que "lei" se refere o legislador constituinte no final da oração.
2. O CONTROLE EXTERNO PELOS TRIBUNAIS DE CONTAS E CIDADÃOS.
PONTES DE MIRANDA ensina que a idéia de criação de uma Tribunal de Contas vem do Brasil Imperial em 1826, quando o Visconde de Barbacena e José Inácio Borges apresentaram projeto neste sentido ao Senado Imperial, sem lograr êxito. Nova tentativa é feita pelo ministro imperial Manuel Alves Branco em 1845, também infrutífera. Logo o Brasil imperial não possuiu seu Tribunal de Contas, a despeito de respeitáveis juristas, a exemplo de PIMENTA BUENO propugnarem: "É de suma necessidade a criação de um Tribunal de Contas, devidamente organizado, que examine e compare a fidelidade das despesas com os créditos votados, as receitas com as leis do imposto, que presente e siga pelo testemunho de documentos autênticos em todos os seus movimentos a aplicação e emprego dos valores do Estado, e que enfim possam assegurar a realidade e a legalidade das contas. Sem esse poderoso auxiliar nada conseguirão as Câmaras" [3].
Por iniciativa de Rui Barbosa, já na Republica foi editado o decreto n. 966-A que criou o Tribunal de Contas destinado a fiscalizar os atos do Poder Executivo, quando susceptíveis de estabelecer despesas ou interessar as finanças da Republica [4]. Na exposição de motivos deste decreto verificava-se que a fonte de inspiração de Rui Barbosa estava na Europa, especialmente nos modelos italianos, belga e francês [5]. A Constituição de 1891 dispôs no seu art. 89: "É instituído um Tribunal de Contas para liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao congresso". O dispositivo constava do Título V "Das disposições gerais". Nada referia da inserção institucional do referido Tribunal: órgão do legislativo? do judiciário? do executivo? Com a promulgação da Constituição de 1934 o Tribunal de Contas encontrou assento junto ao Ministério Público no Capítulo VI do Título I, dos arts. 99 até o 102 que se ocupava dos "Órgãos de cooperação nas atividades governamentais". A Constituição de 1937 foi bastante lacônica, mantendo o Tribunal de Contas num único artigo, o art. 114, esvaziando-lhe as funções da carta anterior. A Constituição de 1946 no seu Título I, capítulo II que dispunha acerca do Poder Legislativo deixou consignado que Tribunal de Contas estaria inserido naquele poder, quando o abrigou no respectivo capítulo nos seus artigos 76 e 77. Na Constituição de 1967 há um detalhamento maior das funções do Tribunal de Contas nos arts. 70 a 72 atribuindo-lhe funções fiscalizatórias de controle externo como órgão auxiliar do Congresso Nacional. Com a promulgação da Constituição de 1988 as Cortes de Contas ganham um fôlego redobrado nos art. 31 quando cuida do controle da contas municipais e nos arts. 70 a 75 quando trata da fiscalização financeira e orçamentária da União e dos Estados.
Interessante notar que apesar de ser função adjuvante à atividade legislativa, o exercício da função fiscalizatória pelos parlamentos encontra suporte mesmo na noção de democracia. Na lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA a democracia "repousa sobre dois princípios fundamentais ou primários, que lhe dão essência conceitual: (a) o da soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte do poder, que se exprime pela regra de que todo poder emana do povo; (b) a participação, direta ou indireta, do povo no poder para que este seja efetiva expressão da vontade popular" [6] (grifo nosso). Se no parlamento estão os legítimos representantes dos titulares do poder, nada mais intuitivo que estes exercessem fiscalização dos bens e valores públicos. Não há que se negar que o controle externo se constituí numa das prerrogativas inafastáveis do princípio da soberania popular positivado no art. 1º parágrafo único da CF/88: " Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição".
A atividade fiscalizatória segue duas vertentes: uma política, exercida pelas casas legislativas e outra técnico-contábil a cargo das Cortes de Contas. A instituição destas últimas foi conquista da primeira carta da República, sob influência doutrinária dos publicistas do Império e desde então encontra disciplina própria nos textos constitucionais. Observa-se uma relação direta entre uma maior abertura democrática de um Estado e uma maior dimensão do controle externo sobre os órgãos da Administração. Quanto mais totalitário o Estado menor a dimensão das instâncias de controle e vice-versa. Vide a indigência da carta de 1937, do Getulismo, em relação às disposições referentes ao Tribunal de Contas.
Várias são as prerrogativas colocadas à disposição dos parlamentares para exercício do mister fiscalizatório: pedidos escritos de informação, convocação para comparecimento de autoridades para prestar informações, Comissões parlamentares de Inquérito, etc. Apesar deste armamentário, a descrença quanto ao controle político é generalizada. Não podemos nos esquecer que o parlamentar de hoje foi o chefe de executivo de ontem e vice-versa. Decorre daí a grande importância do controle exercido pelas Cortes de Contas e por entidades da sociedade civil, compondo autênticos controles sociais. Não é novidade que a corrupção é um dos males que assola as diversas instâncias do Estado, sangrando recursos dos cofres públicos, acarretando escassez de dinheiro para tocar as funções básicas do poderes públicos.
No Brasil, os Tribunais de Contas se constituem em Órgãos administrativos com funcionamento autônomo, parajudicial, cuja função precípua, que consiste em exercer "ex officio" o controle externo da execução financeiro-orcamentária sobre os três poderes do Estado. Apesar de estarem vinculados ao Poder Legislativo, não estão subordinados a este, gozando de plena independência jurídico-funcional, com campo de competência disciplinado pela Constituição Federal e pelas Constituições Estaduais. Seus integrantes, ditos Ministros, quando integram o Tribunal de Contas da União, ou Conselheiros nas Cortes estaduais, gozam de prerrogativas típicas de Magistrados, para desempenho satisfatório de suas elevadas missões, indenes a influências dos titulares dos demais poderes do Estado. As Cortes julgam as contas e não pessoas, não exercendo, proratnato, função jurisdicional.
A fiscalização orçamentário-financeira dos municípios será exercida pelas Câmaras Municipais auxiliadas pelos Tribunais de Contas do Estados e dos Municípios, conforme leitura dos dispositivos do art. 31 da magna carta. Aos vereadores, o texto constitucional, atribuiu importante função de controlar a execução do orçamento do município pelo Poder Executivo e tem como "objetivo verificar a probidade da Administração municipal, a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos, o cumprimento da lei do orçamento, bem como o fiel cumprimento das normas sobre execução orçamentária" [7]. O preceito constitucional possibilita que nos mais distantes rincões do país os representantes do povo na esfera legislativa municipal exerçam a soberania de controlar as contas dos poderes municipais, e o que é mais importante, facultou-se a qualquer contribuinte examinar e apreciar as contas municipais, podendo questionar-lhe a legitimidade (art. 31, & 3º da CF/88). Instrumentos normativos temos, basta que os edis conscientizem-se de suas importantes funções institucionais.
3. LEGITIMIDADE DAS CONTAS MUNICIPAIS.
Matéria assaz espinhosa definir em que consiste aferir a legitimidade das contas municipais. De plano, verificamos que o vocábulo "legitimidade" assume conotação diferente daquela atribuída pela Ciência Política e Teoria do Estado. A doutrina Administrativista diferencia a legalidade dos atos administrativos de sua legitimidade. Este conteria o primeiro, pois seria mais amplo, não se limitando apenas a conformidade do ato às prescrições legais, mas aferir também se o interesse público e o bem comum foram atendidos pelo ato. Torna-se certo, portanto, que seria de todo possível um ato legal configurar-se ilegítimo. Na lição de FRANCISCO CARLOS RIBEIRO DE ALMEIDA "a legitimidade deve preponderar sobre a legalidade, haja vista que a legitimidade está vinculada aos interesses, necessidades e aceitação social e expressa melhor dinamismo presente na relação entre o ordenamento jurídico-positivo e a necessidade político-econômica-social de uma sociedade" [8].
O conceito de legitimidade transcende à legalidade formal, pois visa adequar os atos administrativos em geral às necessidades da coletividade, sopesando bens jurídicos de forma a prevalecer demandas locais de cada comunidade. É desta legitimidade que cuidou o constituinte, quando elegeu contribuinte sujeito ativo para questionar as contas municipais, quando as mesmas estivessem à disposição dos cidadãos, durante aqueles "sessenta dias anuais" do preceito do art. 31, & 1º. "Contribuinte", aqui, refere-se a qualquer pessoa física ou jurídica munida da prerrogativa "de examinar, apreciar e questionar as contas, o que significa dizer: pôr em dúvida sua regularidade" [9] (grifo nosso). Este seu direito público subjetivo de questionar a regularidade será exercido mediante denúncia à Câmara Municipal ou ao Tribunal de Contas do Estado ou do Município, onde houver, além de poder representar ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Nenhuma autoridade pública poderá questionar da legitimidade do contribuinte para examinar as contas públicas ou opor-se ao seu exame. A recusa de qualquer autoridade seria passível de ser remediada pelo Mandado de Segurança, já que constitui direito líquido e certo do contribuinte examinas as contas municipais. Não podemos nos esquecer que a finalidade do Estado é a realização do bem público, "bem este relativo para cada sociedade quanto aos meios de atingi-lo e quanto ao seu próprio conteúdo" [10], dependendo, portanto, deste equilíbrio entre as necessidades dos munícipes e emprego regular das verbas públicas para aferir-se da legitimidade das contas.
4. APLICABILIDADE DO ART. 31 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
A norma jurídica do art. 31 da CF/88 encerra em seu bojo várias prescrições ao longo dos seus quatro parágrafos. Na cabeça do artigo e nos parágrafos primeiro e segundo consubstanciam o já conhecido de todos, quando se referem ao controle externo exercido pelas Câmaras Municipais, auxiliadas pelos Tribunais de contas; o parecer prévio emitido por esta casa só deixará de prevalecer no caso de voto de dois terços dos vereadores. O parágrafo quarto veda a criação de Tribunais, conselhos ou órgão de contas municipais.
O objeto de nossas reflexões conforme expusemos na introdução deste ensaio é o parágrafo terceiro do art. 31, que pedimos licença para transcrever facilitando o raciocínio, que dispõe in verbis: "As contas dos municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhe a legitimidade, nos termos da lei" (grifo nosso). Acima fizemos considerações acerca do vocábulo "legitimidade", competindo-nos agora rumar para o final do dispositivo constitucional. Em breve leitura podemos constatar que se trata de norma constitucional que requer uma atividade normativa integradora, a interpositio legislatoris. Em tese, o dispositivo não seria auto-executável por carência da respectiva regulamentação.
Assim se manifestaram os ilustres CELSO BASTOS e IVES GANDRA comentando este dispositivo, conforme segue: "o preceito é manifestamente não-auto-executável. De fato, é imprescindível para o cumprimento do dispositivo que advenha a lei integradora a que o artigo se refere, sem a qual ficam sem solução pontos indispensáveis ao exercício desta faculdade pelo cidadão e até mesmo à exoneração do município de seu dever de exibir suas contas" [11]. O comentário dos mestres acompanha a melhor doutrina classificatória das normas constitucionais. Para JOSÉ AFONSO DA SILVA seria uma norma de eficácia contida e aplicabilidade imediata, pois "tendo eficácia independente da interferência do legislador ordinário, sua aplicabilidade não fica condicionada a uma normação ulterior, mas fica dependente dos limites (daí: eficácia contida) que ulteriormente se lhe estabeleçam mediante lei..." [12]. Para PAULO BONAVIDES seria uma norma de eficácia diferida pois "para aplicarem a matéria a que diretamente se referem, precisam apenas de meios técnicos ou instrumentais. Desde o primeiro momento, sua eficácia ou aplicabilidade pode manifestar-se de maneira imediata, posto que incompleta, ficando assim, por exigências técnicas, condicionadas a emanação de sucessivas normas integrativas" [13].
As normas não-exeqüíveis por si mesmas, na lição de JORGE MIRANDA, "dir-se-á que nelas se verifica- por motivos diversos de organização social, política ou jurídica- um desdobramento: por um lado, um comando que substancialmente fixa certo objetivo, atribui certo direito, prevê certo órgão; e, por outro lado, um segundo comando, implícito ou não, que exige ao Estado a realização deste objectivo, a efectivação deste direito, a constituição desse órgão, mas que fica dependente de normas que disponham as vias ou instrumentos adequados a tal efeito..." [14].
Passando ao largo da dissidência terminológica quanto à aplicabilidade das normas constitucionais, ainda mais quando o ínclito INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO afirma que "não existe um critério que permita identificar, com segurança, quais dispositivos constitucionais podem ser reputados auto-aplicáveis e quais outros dependem de regulamentação" [15], temos por certo que o preceito do art. 31, & 3º consagra um direito subjetivo do cidadão em questionar a legitimidade das contas municipais, com o sentido de materializar o controle externo pelos membros da sociedade civil, ao lado dos controles institucionais exercido pela Câmara de vereadores e pelos Tribunais de Contas. A aplicabilidade do dispositivo é imediata, pendendo ainda de instrumentalização por uma via de acesso mais direta. Não cremos que o dispositivo seja carente de eficácia jurídica, e que, portanto, pode ser deixado à margem das demais normas constitucionais.
A normas constitucionais existem para serem aplicadas, já que "interpretar a Constituição é realizar a constituição" [16], processo este que consiste em tornar as normas constitucionais juridicamente eficazes, capazes de produzir seus efeitos jurídicos almejados. Em sede de hermenêutica constitucional acolhemos a lição de GOMES CANOTILHO que elenca entre os princípios da interpretação-concretizadora da Constituição o princípio da máxima efetividade (também denominado por princípio da interpretação efetiva) que pode ser formulado, em termos simples desta forma: "a uma norma constitucional deves ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê" [17] (grifo nosso).
Pois bem, assente tais pressupostos para argumentação, para que se extraia máxima efetividade de preceito do art. 31,& 3º devemos encarar a omissão regulamentar específica para exercício do direito de questionamento da legitimidade das contas municipais, de forma restrita. Não é pela falta da norma complementar que será tolhido o direito ao contribuinte de fiscalizar a utilização das verbas públicas. A propósito, o douto JOSÉ AFONSO DA SILVA comentou o art. 75, & 2º da Constituição que prevê a possibilidade de denúncia pelo cidadão das irregularidades nas contas públicas: "’Na forma da lei’ diz o texto, como se para este tipo de denúncia aquelas partes legítimas dependessem de lei que as autorizasse. Ora, primeiro, existe o direito de petição que independe de lei, e pode ser utilizado no caso; segundo, porque a denúncia poderá ser feita sempre e o tribunal a terá na conta que a merecer. Será realmente de pasmar se não tomar conhecimento do fato, só porque não existe lei que autorize aquela legitimação para agir perante ele. Se ele pode tomar conhecimento e tomar as providências de ofício, então não há como recusar conhecer da denúncia" [18] (grifo nosso).
Lúcidas as palavras do professor, conquanto veremos avante que existe previsão legal para disciplinar denúncia dos cidadãos aos Tribunais de Contas. Mesmo que não houvesse seria sancionar o absurdo, porquanto de outra forma violaria o princípio da soberania popular, pilar máximo da democracia, e lesa um importante mecanismo de controle externo da Administração pública. Interpretar de maneira diversa seria reduzir o mandamento constitucional em sua normatividade, transformando-o em letra morta. No Estado Democrático de Direito da modernidade, ao contrário do Estado absoluto, não há mais espaço para "o poder invisível", de que nos fala BOBBIO, que subtrai aos cidadãos as informações de interesse público, que tranca a sete chaves as contas do Estado e esconde os dados do governo para que não sejam questionados. O soberano, titular absoluto do poder, não teria que prestar contas de seus negócios aos súditos. Este seria o "poder invisível" que a todos controla sem ser controlado. Contrapondo-se à invisibilidade do poder encontra-se de forma imponente a transparência da Administração, materializada no princípio da publicidade dos atos da Administração. O jusfilósofo italiano lembra ainda que o principal argumento daqueles que defendiam a descentralização política consistia na "... maior possibilidade oferecida ao cidadão de colocar os próprios olhos nos negócios que lhe dizem respeito e de deixar o mínimo espaço para o poder invisível" [19]. A proximidade dos órgãos do poder aos cidadãos lhes facilita o controle sobremaneira.