Direitos fundamentais e políticas públicas afirmativas

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13/08/2015 às 12:40
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O presente estudo tentou estabelecer o quadro geral de legitimidade das políticas públicas afirmativas considerando a estabilidade jurídico-constitucional da questão estabelecida após o julgamento da ADPF 186.

1. Introdução

Atualmente, o debate constitucional está dominado por uma falsa dicotomia: um lado afirma que devemos nos ater firmemente aos pensamentos daqueles que escreveram os trechos essenciais de nossa Constituição e considerar ilegais apenas as práticas que eles julgavam inconstitucionais, enquanto o outro assevera que, para que os tribunais possam controlar a legislação, eles devem ter autoridade para corrigir e reavaliar as opções valorativas do legislador[1]. – JOHN HART ELY

            Estamos atualmente vivendo o centésimo nonagésimo terceiro ano como um Estado-nação independente, e o que isso significa exatamente em termos de uma maior autonomia para o nosso povo? Quando almejamos a independência nós desejamos liberdade, desejamos igualdade, e desejamos fraternidade, estávamos há pouco mais de três décadas de um processo revolucionário que pretendeu modificar as bases da organização social de um país, e do mundo, e o que de fato aprendemos e apreendemos deste processo? O quanto de tudo isso era destinado a todos e o quanto era destinado apenas a alguns?

            O princípio de igualdade de todos perante a lei nunca deixou de ser um conceito líquido e moldável a diversos períodos e eventos da história.Atualmente vivemos, talvez, o momento sublime da ética no espaço público, onde argumentamos livremente sobre as nossas questões sociais mais ingentes, com propriedade, percuciência, na busca de uma comunicação que possa se dar numa arena de discussão profícua para a melhora da vida de todas as pessoas. O direito hoje pode se valer de espaços deste tipo.

            A luta até aqui foi árdua, para pensarmos, ao menos, do século XIII para cá, tivemos o prenúncio das constituições, com o Bill of Rights, do Rei João Sem Terra; no século XV a queda do Império Turco e Otomano, e o surgimento de novas Cidades-Estado na Europa que clamavam por liberdades; no século XVII tivemos a Revolução Gloriosa, que é palco para a contestação do poder divino de nobres e do clero; e, por fim, tivemos o século XVIII, início da idade contemporânea, onde todos nós nascemos: o Estado Moderno, as Cartas Constitucionais, a cidadania.

            No Brasil, o percurso, embora mais curto, conseguiu incluir a maioria das experiências do Velho Mundo, ocorre que os valores ainda são questionáveis e a vontade republicana das maiorias excluídas grita por justiça e inclusão.Nós temos a "Constituição Cidadã".Como explicar a coexistência de uma constituição, que do ponto de vista da adoção do sistema de garantias sociais, é reputada das mais avançadas do mundo, com uma realidade social tão excludente como no Brasil?

São as políticas públicas de ação afirmativa, expediente legítimo e suficiente para corrigir as disparidades sociais existentes? A existência de elementos de compatibilidade suficientes no ordenamento jurídico brasileiro para a adoção de políticas públicas afirmativas fora, sobretudo, assentada no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 186, pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal - STF, mesmo assim, muito ainda se confunde ao se justificar, no âmbito do judiciário, a adoção deste expediente, como explicar tais dificuldades?

            O que nos propomos a fazer neste trabalho é delinear respostas provisórias para estas questões acima explicitadas.É possível que não as encontremos, esse é o vaticínio mesmo da atividade da pesquisa, mas avançaremos com um largo material e com a nossa experiência.

            Em 26 de abril de 2012, após uma verdadeira batalha argumentativa ‒ de resto desproporcional, consideramos ‒, fora julgada improcedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ‒ ADPF 186; a decisão do Supremo Tribunal Federal foi por unanimidade, reconhecendo o direito da Universidade de Brasília - UnB promover políticas públicas de ação afirmativa para o ingresso de estudantes negros.

            Foi um dia importante para os movimentos sociais que militam em prol da causa do combate ao racismo neste país, mas desde lá, estas mesmas lideranças premuniam que muito se tinha ainda por fazer, que a "elite" brasileira ‒ fruto das elites agrárias do século XIX e início do século XX ‒, não se conformaria, e continuaria a lutar contra os efeito da garantia de se usar a máquina pública com forma de corrigir distorções históricas.

            És que em dezembro de 2012 o Ministério da Cultura, em parceria com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, da Presidência da República, lança,a partir de uma análise técnica, contando com a participação de inúmeros profissionais (como conheceremos o processo ao longo do texto), publicou editais com o propósito de implementar uma política pública afirmativa para o financiamento de projetos culturais para produtores negros, editais estes que se seguiriam a contemplar indígenas, e outros seguimentos.

            E manejando uma Ação Popular, um ex-procurador do estado do Maranhão requereu a cassação destes editais por considerar que eles ferem o princípio constitucional da igualdade, e como resposta do judiciário brasileiro, a Seção Judiciária do Maranhão concedeu a liminar afirmando que  as ações afirmativas não "podem se sobrepor aos parâmetros éticos do Direito, sob pena de subversão aos princípios da isonomia, da razoabilidade e da moralidade administrativa". O que tentaremos mostrar aqui é exatamente o que está por trás destes argumentos e como a doutrina e a jurisprudência observam o expediente das ações afirmativas implementadas através de políticas públicas governamentais.

2. Cidadania e Direitos Fundamentais

            A cidadania é um instrumento jurídico-político do Estado Moderno e nasce, com especial relevo, como fruto das revoluções dos séculos XVII e XVIII. Em especial ‒ para aquilo que de fato ganha importância inicialmente no Novo Mundo ‒, a Revolução Francesa de 1789 foi o espaço de reivindicação da superação do conceito divino de origem do poder real e/ou estatal, para a compreensão que este deve emanar do povo, criando assim, ao menos de forma ideal, um primeiro espectro do conceito de cidadania.

            A burguesia ‒ designação bastante genérica que dá nome a nova classe que se desenvolve na Europa, em meio a uma longa trajetória de reelaborações culturais, face a diversos fatores, tais como: invasão Árabe (711), Reforma Protestante (1517), Revolução Industrial (1750), exacerbação das demandas financeiras da nobreza e do clero, em meio a guerras, dentre muitos outros ‒ é a expressão social que aclimata tensões sociais suficientes, e reúne fatores históricos importantes para afirmar as necessidades de mudanças sociais que culminarão no conceito de cidadania e de Estado de Direito Moderno;contexto social que insere o mundo no período que passaremos a chamar de Idade Contemporânea.

            No Ancien Régime os direitos políticos eram limitados à nobreza ‒ representada pela figura do rei ou rainha ‒, e ao clero, vez que tais direitos eram concedidos diretamente pela autoridade divina. A perspectiva da divinação do poder político, serviu à manutenção da ordem política durante muitos séculos, determinando que o pertencimento a certos grupos sociais atribuíam direitos e deveres específicos às pessoas ou grupos, eternizando assim o seu lugar na sociedade. A ideia de liberdade, portanto, era um conceito que se limitava dentro do grupamento social específico, e não para toda a sociedade; ser livre significava dizer, ter liberdade para atuar no seu grupo. Este fora justamente o ponto a ser combatido pela burguesia nascente, que, sobretudo, ansiava por poder político.

            Nos detendo sobre os aspectos importantes da Revolução Francesa, podemos dizer que, capitaneada, sobretudo, pelos interesses da burguesia, o que se estava ali a ser contestado era justamente o ideal de poder divino para a administração do espaço público, que resultava em um processo contínuo de perpetuação das desigualdades formais entre os indivíduos. Assim, se ansiava ampliar o conceito de liberdade para além das fronteiras de grupos sociais específicos, e afirmar, com isso, a igualdade de todos perante o direito, desde o seu nascimento. Poderíamos dizer que nenhum precedente histórico teve tanta força, neste tocante.

            Liberdade e igualdade caminham de mãos dadas neste primeiro momento do processo revolucionário, que pretendia alterar a realidade social fundamente, para a partir da ideia de tratamento igual para todos, romper as barreiras da qualidade das liberdades públicas atribuídasaos indivíduos e/ou grupos. Naquele momento, ser igual não significava mais ter quaisquer limites impostos pela classe a que pertencia o indivíduo, ser igual era ter os mesmos direitos formais que qualquer um, sendo assim livres para atuar conforme o direito.

Cabe ressaltar, no entanto, que a burguesia, ao criar as noções de cidadania e Direitos Humanos, realizou um avanço importante para o progresso da humanidade: deu novos contornos ao Estado. A partir dela, a sociedade deixaria de ser pensada como uma pirâmide de grupos separados por sua natureza e dotados de direitos desiguais, para ser pensada como um todo horizontal, composto de cidadãos/ãs, sujeitos aos mesmos direitos formais. Os sujeitos deixam de ser pensados como formalmente diferentes e partes naturais de coletivos dotados de direitos políticos desiguais, para serem pensados como indivíduos racionais, livres de amarras sociais e dotados de direitos fundamentais idênticos[2].

            Talvez o aspecto histórico mais instigante a se elucidar no processo de elaboração do conceito de cidadania, seja justamente essa simbiose entre liberdade e igualdade, motores que foram dos processos revolucionários, e das ações que deles sucederam. E poderíamos ainda perguntar: e a tríade clássica? Isto é, e o conceito de fraternidade, onde está? E uma resposta menos honrosa, menos revolucionária, que iremos usar aqui ‒ o que talvez lance luzes profícuas quanto às dificuldades para a compreensão sobre os dramas e conflitospara a efetivação dos direitos humanos e fundamentais ‒, é que justamente o conceito de fraternidade vem como elemento que deve mascarar as condiçõesde ineficiências parciais dos conceitos antecessores.

            A afirmação da igualdade de todos perante o direito, não tem o condão de realiza-la do ponto de vista material, como consequência temos que parte da população terá maiores condições para o exercício pleno dos direitos e parte não, dada as suas condições materiais da vida, criando assim, ao menos, duas espécies de cidadãos, o que, de resto, implicaria uma aporia no sistema liberal nascente. O princípio de igualdade que dá suporte ao processo revolucionário francês, precisaria, diante das disparidades da vida real, dar resposta quanto às discrepâncias que se observava na sociedade pós-revolução, a solução encontrada a posteriori fora a inclusão do conceito de fraternidade como elemento que pretenderia superar esta falta[3].

            Com isso, por óbvio, não queremos aqui afirmar ser "uma fraude o conceito de fraternidade", mas, sobretudo, trazer para este estudo, algo que lhe é central, e afirmar que a importância deste elemento, que justamente liga e tende a dar substância aos direitos humanos e fundamentais, não surge originalmente no âmbito da Revolução do século XVIII, e, como de resto, sem registro nos movimentos revolucionários anteriores dos séculos XIII, XV ou XVII, e sim como forma de suplantar as tensões que se seguiram, não é outro o motivo das revoltas que foram registradas nos momentos posteriores[4]. O conceito de fraternidade, portanto, é fruto do clamor de parcela significativa da sociedade francesa naquele período, que uma vez excluída do estrato das elites burguesas dirigentes, não se viram por estas representadas, e, por outro lado, perceberam-se alijadas dos resultados da revolução que ajudaram a realizar.

            E é com esta última participação que temos os elementos centrais que formam conceitos políticos fundantes da contemporaneidade, tais como: direitos humanos; direitos fundamentais; cidadania; e estado constitucional e democrático de direito.Portanto, os direitos fundamentais são a substância jurídico-política que sustenta o conceito de cidadania, ao passo que a cidadania é o exercício de materialização dos direitos fundamentais, e, além disso, o statusque carrega o sujeito para quem estes são direcionados dentro de dada sociedade[5].Neste sentido, deveremos entender não ser possível pensar um conceito alheio ao outro;tampouco, conceber uma ideia de cidadania sem direitos fundamentais, e a proteção de direitos fundamentais sem uma ideia de cidadania cosmopolita.

            A cidadania cosmopolita afirmada pelos direitos humanos e, consequentemente, pelos direitos fundamentais, é a matriz de todo pensamento expresso nestas linhas, e a espinha dorsal que justifica a condição de possibilidade de ratificação de constructos jurídicos supranacionais, como é o caso dos tratados e convenções de direitos humanos, e, também, de diversos acordos multilaterais que envolvem o resguardo de uma ordem jurídica mundial. Aqui, e em nome da humanidade, encontramos um espaço, não de fragilidade das soberanias nacionais, mas de interseção de interesses comuns necessários, reunidos sob o manto da dignidade humana[6].

Depois de dois séculos de história constitucional moderna, reconhecemos melhor o que marcou esse desenvolvimento desde o início: a dignidade humana forma algo como o portal por meio do qual o conteúdo igualitário-universalista da moral é incorporado ao direito. A ideia da dignidade humana é a dobradiça conceitual que conecta a moral do respeito igual por cada um com o direito positivo e com a legislação democrática de tal modo que, na sua cooperação sob circunstâncias históricas favoráveis, pôde emergir uma ordem política fundamentada nos direitos humanos[7].

            O que tentamos aludir aqui, de forma um tanto quanto original, pelo o que sabemos, é que existe um substrato mínimo de cidadania que é garantido, mesmo fora dos limites de cada Estado, e dentro deles, a todo e qualquer indivíduo da comunidade internacional. De outra forma, pouco sentido faria a convenção que hoje todos nós abraçamos, acerca das condições de possibilidades reais de firmarmos dispositivos jurídicos supranacionais e de alcance planetário, dispositivos estes que quando versam sobre direitos humanos tendem a ter um apelo e/ou clamor público forte, para que todos os países o ratifiquem; a forma de aplicação pode ser variável ‒ o que importa, e leva-se em consideração, é a tradição maior ou menor ao respeito aos direitos fundamentais em cada país ‒, mas o que importa, de fato, é que o reconhecimento da necessidade de manifestação aponta para uma espécie de "conteúdo mínimo" intangível dos direitos fundamentais, a ser defendido por todos os Estados Constitucionais Democráticos.

            Com efeito, podemos dizer que a densificação da dignidade humana ao longo da história, trouxe para nós a necessidade de fortalecer aquilo que nos primórdios da Revolução Francesa chamamos de "Direitos do Homem e do Cidadão", dada a complexidade dos bens que passaram a ser considerados merecedores desta tutela, a proteção cada vez mais ampla das realidades sociais, e a consideração da complexidade mesma do indivíduo humano, o que faz com que a doutrina, apenas por um cuidado didático, classifique os direitos humanos em ao menos três gerações, já se falando mesmo de uma quarta[8].

            Os direitos fundamentais são tradicionalmente concebidos como direitos, liberdades e garantias, isto é, como disposições jurídicas que atuam de forma positiva, negativa e de maneira processual, e tem como funções "a defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado (e de outros esquemas políticos coativos)"[9], esta seria a "função de defesa ou de liberdade",e além, atuando na sua dimensão objetiva de garantia, ou seja, na sua função prestacional social, se há dúvidas sobre o que compõe esta dimensão, esta não recai sobre o dever do Estado de promover "políticas públicas" que, por sua vez, promovam "políticas sociais activas", teríamos ainda a "função de prestação perante terceiro", e, por último, e a principal para este estudo, a "função de não discriminação", que deriva do princípio da igualdade e fundamenta a legitimidade do Estado na promoção das "afimative actions"[10].

            Posto isto, nos resta afirmar, preliminarmente, na defesa do status ativo do Estado Brasileiro para a promoção de políticas públicas afirmativas, com o que se encontra disposto na Constituição Federal Brasileira de 1988, o quanto preceituado no seu art. 3º, que exalta o caráter republicano do Estado, e impõe como seus "objetivos fundamentais", a construção de "uma sociedade livre, justa e solidária", de "garantir o desenvolvimento nacional", além disso, de "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais", e "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Isto é o que reza a Constituição, isto é o que deve ser feito em prol dos cidadãos do Brasil, em respeito a um conteúdo mínimo de cidadania cosmopolita afirmado nos diversos instrumentos internacionais de defesa dos direitos humanos.

3. Um Breve Histórico da Política Nacional e sua Relação com a Sociedade Civil Organizada

            A política nacional brasileira está marcada desde a nossa constituição enquanto Estado-nação independente, em 1822, por um liberalismo sui generis, e contraditório, de cunho emancipador-patrimonialista. Emancipador no que toca aos interesses igualitários das elites agrárias que aqui se desenvolveram, e os seus objetivos em superar as vantagens da nobreza e do clero, aspecto cultural de origem portuguesa-européia; patrimonialista, enquanto formação socioeconômica que lega privilégios ilegítimos àquelas mesmas elites agrárias, e que conserva o  escravismo como forma primordial de organização da mão de obra do processo de produção ‒ este é o cenário que fundamentou a nossa estrutura sociocultural daquela época, que vai deixar marcas indeléveis como herança para a contemporaneidade.

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            Do período colonial, o Brasil, enquanto Estado-nação independente, herdou toda uma ordem de relações sociais simbólicas que singulariza a nossa sociedade, desde a verve revolucionária dos oprimidos (índios, negros, mulheres) ‒ observada em diversos episódios históricos ‒, até mesmo a força conservadora para a manutenção da ordem econômica favorecedora de segmentos sociais específicos, que se impôs[11],e não por outro motivo, mas, sobretudo, pela lógica contraditória que alicerça o nosso fazer jurídico-político desde o nosso nascedouro, enquanto nação independente; o que não nos permitiu o êxito de uma verdadeira revolução igualitarista, na medida em que todos os nossos avanços sociais eram negociados, às expensas da educação, da autonomia política e da emancipação popular[12].

            As doutrinas que se desenvolviam na Europa continental (França, Inglaterra) chegavam de maneira precária à colônia, amoldando-se às necessidades locais, e modificando as características do ideário nascente, e, neste sentido, aportava nas colônias apenas o conteúdo que interessava às elites agrárias que fariam uso delas; foi assim, por exemplo, com todo o complexo ideário do liberalismo[13], que, da necessária simbiose com as idiossincrasias da realidade social brasileira, fez surgir um liberalismo tosco, incompatível com a doutrina originária, que convivia passivamente com todo o esquema patrimonialista daquele período, e, sobretudo, com o escravismo.

Eram profundamente contraditórias as aspirações de liberdade entre diferentes setores da sociedade brasileira. Para a população mestiça, negra, marginalizada e despossuída, o liberalismo simbolizado na Independência do país, significava a abolição dos preconceitos de cor, bem como a efetivação da igualdade econômica e a transformação da ordem social. Já para os estratos sociais que participaram diretamente do movimento em 1822, o liberalismo representava instrumento de luta visando à eliminação dos vínculos coloniais. Tais grupos, objetivando manter intactos seus interesses e as relações de dominação interna, não chegaram a “reformar a estrutura de produção nem a estrutura da sociedade.  Por isso, a escravidão seria mantida, assim como a economia de exportação”[14].

            As marcas destas contradições, entre os interesses das maiorias, que se constituirão enquanto sociedade civil, e as elites dominantes, não cessarão no futuro, como sabemos; ao revés, elas se refletirão em outros processos da vida pública, com características distintas, mas sempre presentes no desenvolvimento da sociedade brasileira, estruturando e sendo estruturadas por processos de “exclusão”.

            Essas contradições presentes nos fundamentos da nossa organização sociocultural, como viemos salientando acima, não se limitou à esfera da administração pública ou vida social, embora todas as matizes que as representam tenham nestas os seus principais repositórios. Mesmo a concepção do aparto judiciário do Brasil naquela época, fora pensado como forma de dar continuidade à tradição da metrópole, na medida em que praticamente toda a sua intelligentsia jurídica se formava em Coimbra, trazendo de lá toda sorte de preconceitos e desvalor de uma cultura de independência; tendo, assim, na estrutura do judiciário colonial, e por um breve período, mesmo do império, o principal espaço de luta contra todo e qualquer processo de emancipação[15].

            Face ao corporativismo e à fidelidade inconteste à Metrópole por parte dos agentes da justiça de então, presentes em solo brasileiro no período da independência (os ouvidores gerais provinciais, os juízes de fora, e os ouvidores de comarca, estes todos formados em Coimbra), é que se dá a necessidade da produção de um aparato judicial pátrio, com todos os elementos necessário para a realização da jurisdição, nos moldes pretendidos pelas elites agrárias, fazendo surgir assim, a primeira Constituição Brasileira, a de 1824, as primeiras Faculdades de Direito (Pernambuco e São Paulo), de 1827, e o primeiro código criminal, como forma de controle social, em 1830[16].

            Assim, a realização da construção de todo este aparato jurídico, não se dá de forma espontânea, como demanda da independência nacional e forma de potencializar a sua autonomia, mas de resistência quanto às iniciativas de fração importante das autoridades locais, que agiam contra o processo independentista. Outro aspecto de fundamental importância para o nosso estudo, é que todo este edifício técnico-burocrático que se formava, não pretendia eliminar os paradoxos da instituição liberal-escravista brasileira, e, ao invés, elaborava formas para mantê-lo e reforçá-lo[17].

            A forma como as instituições políticas durante todo o período imperial trata a realidade social brasileira, isto é, o contínuo de imposição das demandas das elites sobre as classes sociais menos abastadas, não se altera, e vemos a monarquia dar lugar à república, em 15 de novembro de 1889; nova ordem, valores similares[18], que até a Carta de 1891 viu-se ameaçada pelo retorno ao Ancien Régime. A ordem social nascente, parte militarizada e num segundo momento governada por uma alternância de poder entre as forças políticas dos estados de Minas Gerais e São Paulo, faz prevalecer o jogo das ainda fortes elites agrárias, no período intitulado de República Velha, e continua a contradizer o princípio liberal festejado nas ordens constitucionais do velho continente e dos Estados Unidos da América, e o que percebemos, ao menos na teoria, fora a mudança de uma ordem monárquica parlamentarista por uma república federalista, que em termos sociopolíticos, se reproduziam nos exatos termos[19].

            A história do Brasil, não nos permite ter dúvidas sobre a influência do sistema patrimonialista, que governa a nossa estrutura social, como ocorrera no período colonial, imperial, e agora republicano. Com efeito, 39 anos de instabilidade política e social se passaram até a revogação da ordem jurídica vigente e a instalação de um Golpe de Estado que ansiava por uma reforma política, com foco no combate à alternância de poder que afrontava toda a estrutura de estado liberal republicano e democrático; este falso discurso reiterado nos momentos de convulsão social.

            Ainda sobre a República Velha, e como não poderia deixar de ser, o que se destaca no trato da política nacional frente às manifestações de insatisfação dos movimentos sociais, neste período ainda não organizado institucionalmente, fora as retaliações, em regra, bélicas e a reafirmação da condição destes: de “excluídos”, reforçando a ordem patrimonialista/coronelista, e definindo lugares sociais específicos, foi assim nos diversos eventos havidos no nosso processo histórico, dos quais destacamos: a Guerra de Canudos (1896-1897); a Revolta da Chibata (1910); a Guerra do Contestado (1912-1914); o Tenentismo ou Rebelião dos 18 do Forte (1922); e a Coluna Prestes (1924), para citar os mais populares.

            Além disso, até este período, o Brasil já acumulava uma enorme dívida social com os menos favorecidos e excluídos sociais do país. Dentre as mais importantes dívidas sociais, podemos destacar: a dívida agrária, face à promulgação da Lei de Terras (Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850), necessária às elites frente às demandas internacionais pela abolição da escravidão ‒ favoreceu as grandes elites agrárias e retirou da terra cidadãos/ãs que nela trabalhavam e dela viviam, mesmo quehá muitos anos; a dívida pública devida aos recém-libertados, ausente a estruturação de qualquer política pública que desse conta da realidade daqueles que deveriam ser então inseridos na sociedade: os escravos, ao revés, o Estado Brasileiro promoveu a vinda de imigrantes europeus para o país, estes sim com uma série de políticas públicas vantajosas, cumprindo uma desejosa política de branqueamento nacional[20], com efeitos nefastos ‒ percebidos claramente até os dias de hoje ‒, para aqueles que ajudaram a construir este país, salientou Florestan Fernandes:

[que] a escravidão despojou o negro de quase toda sua herança cultural e socializou-o tão somente para papéis sociais confinados (...). Como consequência, a abolição projetou-o na 'esfera dos homens livres' sem que ele dispusesse de recursos psicossociais e institucionais para ajustar-se à nova posição na sociedade.[21]

E, por último, mas certamente a maior de todas, a dívida educacional, esta já no período republicano, se dá pela opção constitucional da Carta de 1891, que privilegia a educação universitária, à educação básica, permitindo assim que as elites não precisassem dispor seus recursos para o envio dos seus filhos para a Europa, e relegando a maior parte da população ‒ em regra, negros e mestiços ‒ ao analfabetismo[22].

            E entre 1930 e 1945 temos a ocorrência do período que se passou a chamar da Era Vargas, quando o Brasil fora governado por Getúlio Vargas, dando início a uma orientação econômica denominada "nacional-desenvolvimentismo", a Era Vargas era fruto dos anseios de grupos sociais dissidentes das elites agrárias somado à fração do empresariado então nascente, que descontentes com a forma de gestão política e social das elites, se insurgem contra estas e,passando a perceber o Brasil como um espaço autônomo, negam a sua vocação exclusivamente agrária e palco de reflexão da cultura europeia. Dá-se início ao modelo urbano-industrial, a Era Vagas monta a primeira experiência nacional de industrialização que passa a liderar o desenvolvimento do país, abandonando a vocação exclusivamente agrário-exportadora, e implanta as primeiras indústrias de base, em especial, na área da siderurgia.

            Neste período os movimentos sociais se apresentam especialmente na forma dos sindicatos, para reivindicar os direitos dos trabalhadores. Temos como resultado das atividades e reivindicações por melhores direitos, a implementação da Constituição de 1934, que encerra a primeira fase da ditadura Vargas, além de leis trabalhistas esparsas (jornada de 08 horas, férias), e dá início a um curto período democrático, que volta a ser interrompido pela instalação de um novo golpe de estado, o"Estado Novo", neste período, dentre as conquistas populares, tivemos a Consolidação das Leis Trabalhistas. Em especial, neste período não podemos deixar de registrar que muitos destes avanços sociais tinham a pretensão do cooptar as lideranças dos movimentos sindicais da época. Aqui Vargas edifica a sua imagem de "pai dos pobres".

            Vale destacar, do ponto de vista cultural, temos a criação do TEN, o Teatro Experimental do Negro,em 1944, que teve como o seu criador e principal organizador o militante e político Abdias do Nascimento, aqui podemos localizar a raiz do contemporâneo movimento negro no Brasil. Com efeito, este momento histórico se origina fruto dos avanços culturais da época, e tem como principal objetivo avalorizaçãoda cultura negra‒ colocá-la num lugar de destaque, longe da folclorização que a marcava ‒, e o combate ao racismo.

            Vargas cai em 1945, e temos o retorno ao Estado democrático, com a convocação de eleições presidenciais, e a promulgação da Constituição de 1946, embora um período democrático, mas marcado por forte influência dos USA e das elites dirigentes ligadas à economia americana, há uma forte repressão aos movimentos sociais, e a cassação do Partido Comunista, o PC, que é posto na ilegalidade. Getúlio Vargas volta ao poder em 1950, através de novas eleições, e promove um governo ligado às bases trabalhistas, e premido pelas forças políticas nacionais financiadas pelos USA, Vargas suicida em 1954, período que por forte pressão dos movimentos sociais não ocorre um novo Golpe, que é adiado por 10 anos.

            Em 1955 temos o início do governo do presidente Juscelino Kubitschek, o JK, e um período de desenvolvimento do país à custa de fortes investimentos, e aumento da dívida pública, o que leva à carestia nos últimos anos de governo, e a ascensão da Direita ao poder com a figura do presidente Jânio Quadros, que apoiado pela UDN faz uma gestão contraditória aos interesses das elites e aos USA, o que o leva à renúncia após sete meses de governo. Entrementes, assume o seu vice, que na época era eleito em chapa mista, e ligado às bases trabalhadoras, o presidente João Goulart, o Jango, assume sob forte pressão, num formato parlamentarista, cujo primeiro ministro fora Tancredo Neves, e em seguida, revertendo para o presidencialismo, reassume o poder.

            O presidente Jango, que fora ministro do trabalho da segunda Era Vargas, e responsável pelo aumento de 100% do salário mínimo à época, tenta retomar a gestão da primeira metade da década de 1950, e dá início a uma gestão ligada aos interesses dos trabalhadores, propõe as chamadas Reformas de Base e assim fomenta a ira das elites e docapital estrangeiro no país, e em março de 1964 Jango faz o Comício da Central do Brasil para anunciar as Reformas de Base, como resposta, as elites conservadoras do país organizam a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", e no dia 31 deste mesmo mês, os militares aplicam o Golpe que oprimiu o país por 21 anos.

            Para os movimentos sociais o período da Ditadura Militar foi, sem dúvidas, a pior fase da relação com a institucionalidade brasileira, na medida que estes foram marginalizados e criminalizados por ação direta do regime.[23] As ações violentas incluíram ameaças, sequestros, torturas, assassinatos e muitas outras formas. No campo econômico, a ditadura controlava as massas através do Milagre Econômico, e a esperança do senso comum de que desta forma deveríamos estar no caminho certo. Em especial, a resistência se dava no campo das artes, e, no caso do movimento negro, vimos surgir manifestações importantes com o Bloco Afro Ilê Ayê (1974), e diversas outras.

            Com a abertura política "lenta, gradual e segura"[24] os movimentos sociais voltaram a atividade, e a efervescência das suas manifestaçõescontribuiu de maneira taxativa para a construção do texto constitucional que resultou na nossa atual Magna Carta, de 05 de outubro de 1988. Uma carta constitucional tida internacionalmente como um dos Textos Políticos mais socialmente orientados que já se viu, sendo inclusive denominada domesticamente como a "Constituição Cidadã". Este é o material que, sobretudo, sem mencionar sequer uma vez a expressão política pública, consegue viabilizar o instrumental necessário para que se possa forjar estas verdadeiras ferramentas da democracia participativa.

4. Políticas Públicas e a Constituição Brasileira de 1988

            Usaremos aqui um conceito deveras consolidado de política pública nos Estado Unidos.

[Política pública é] “um conjunto de decisões inter-relacionadas, tomadas por um ator ou grupo de atores políticos, e que dizem respeito à seleção de objetivos e dos meios necessários para alcança-los, dentro de uma situação específica em que o alvo dessas decisões estaria, em princípio, ao alcance desses atores”[25].

            Em se tratando de políticas públicas afirmativas devemos compreende-las como ferramentas temporais para correção à distorções, contingentes ou históricas. Qualquer conceito de política pública que possamos usar neste momento será impreciso, e sempre envolto de problemas de trato com a realidade histórica de cada situação. Assim, situar o lugar da elaboração da política se faz fundamental.

            Iniciaremos dizendo que o Brasil é um Estado Democrático e Constitucional de Direito, neste contexto, conferimos, segundo a doutrina corrente, ao Estado, a natureza de pessoa jurídica de direito público[26]. Ser pessoa, designa uma série de atributos ao Estado, dentre eles o de ser sujeito tanto de direitos, quantode deveres e obrigações.

            Os eventos históricos que tratamos no item 2 deste escrito, determinou uma mudança estrutural na ontologia do próprio Estado, passando de um Estado-Polícia para um Estado de Direito.A partir do momento em que a sociedade passa a reivindicar a igualdade de todos perante a lei, isso implica na inclusão entre este "todos", do elemento técnico ficcional "pessoa jurídica", neste sentido, o Estado enquanto "pessoa jurídica", encontrar-se-á limitado pelas disposições jurídicas, tanto quanto as pessoas físicas ou naturais.

            Com efeito, deveremos considerar que o Estado enquanto instância política de controle das ações dos indivíduos, tradicionalmente gozava de uma primazia diante dos cidadãos, atualmente existem doutrinas que aperfeiçoam estas ideias, para dizer que mesmo o Estado, terá no exercício da sua atuação, a limitação das disposições dos direitos fundamentais, temos aqui a relativização do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.[27]

            Dito isto, observar o campo de deveres e obrigações do Estado, é, sobretudo, privilegiar uma espécie de supremacia dos direitos, e, em especial, dos direitos fundamentais, concernentes ao princípio da legalidade, mas não só, e, sobretudo, a uma legalidade que prioriza uma visão holística acerca dos direitos, tendo como fundamento basilar o atendimento aos direitos fundamentais dos indivíduos e da coletividade.

                        Trata-se, portanto, de "objetivos fundamentais" da nação brasileira, formada no modelo de uma República Federativa: a garantia do "desenvolvimento nacional", isto é, estando fração ou parte da sua população em desvantagem, promover ações que viabilizem o equilíbrio e fomentem o desenvolvimento da sociedade como um todo, pois uma nação não se desenvolverá em seu conjunto com o êxito de apenas uma parcela; e, para o que nos interessa, promover o bem de todos, sem discriminação, vale dizer, o Estado brasileiro deve promover o bem, combatendo as discriminações, entendendo-as como "verdadeiro calvário sobre a terra", ao passo que cumula heranças históricas, e muitas vezes sem uma justificação consciente,este é omote do dispositivo, presente no art. 3º da nossa Magna Carta de 1988[28].

            Assim, os verbos "garantir" e "promover" demandam uma ação proativa do Estado, que será realizada através de políticas públicas. Com isso, traçamos o quadro sobre o qual poderemos trazer um conceito especializado de política pública, qual seja:

Como sugerimos, a policy making trata fundamentalmente de atores cercados por restrições que tentam compatibilizar objetivos políticos (policy goals) com meios políticos (politic means), num processo que pode ser caracterizado como “resolução aplicada de problemas”. Identificar os problemas e aplicar (por mais imperfeitas que sejam) as soluções encontradas (soluções captadas na expressão naming, blaming, framing and claiming,  ou seja, dar nomes, culpar, moldar e cobrar) (Felstiner et al., 1980-1; Druckman, 2001; Steinberg, 1998) envolvem a articulação de objetivos políticos por meio de deliberações e discurso, além do uso de instrumentos políticos (policy tools), numa tentativa de atingir esses objetivos[29].

            As políticas públicas, portanto, devem ser percebidas como elementos complexos que envolvem, desde o fazer político do governo, até os limites da atuação do Estado, tendo a Constituição como parâmetro legal de controle.A visão técnica expressa acima, nos impõe à compreensão da política pública como uma ferramenta sensível para as tarefas de governo. As políticas públicas podem partir de uma ação específica de governo, constituindo-se como uma política que tende a ter de curto a médio alcance, dado o envolvimento da máquina estatal, mas ela pode também ter um longo alcance, conquanto se comprometa mais instâncias do governo, e mesmo atividades típicas de Estado.Exemplo de políticas públicas desta natureza, são as políticas públicas intersetoriais, como conceito de expedientes desta espécie, temos a posição de Maria Luiza Heilborn, Leila Araújo e Andréia Barreto, que nos diz:

A intersetorialidade cria espaços de comunicação e relação de instituições que atuam em diversos setores (político, técnico, administrativo etc.), em diferentes áreas (saúde, educação, meio ambiente, assistência social, planejamento etc.), e que podem pertencer a órgãos governamentais, não-governamentais, empresas e órgãos internacionais. Políticas públicas intersetoriais agregam setores diversos e várias áreas, permitindo melhor utilização de conhecimentos e experiências acumuladas, colaborando para o alcance de metas comuns, sob uma coordenação que abarca todas as contribuições.[30]

            Qual então seria a forma de percebermos o alcance que uma política pública, se de curto, médio ou longo prazo? A esta pergunta deveremos dizer não haver uma única resposta, nem uma única metodologia de análise, pois depende de uma série de fatores.

Diferentemente da Física ou da Química, não existe uma metodologia universalmente reconhecida para análise dos problemas políticos. Em vez disso, pode-se encontrar uma gama de habilidades e técnicas na caixa de ferramentas da análise política (por exemplo, Direito, Economia, métodos quantitativos, análise organizacional, orçamento etc.). Os analistas políticos aplicam uma combinação de ferramentas analíticas internas e externas ao governo para compreender os problemas da política.[31]

            Além da questão da técnica, outro elemento fundamental para a definição da política pública, o qual tratamos com especial relevo sobre a sua constituição no item 3 supra, é a sociedade civil organizada, que servem, sobretudo, de manancial de ideias para a formulação, mas não só, pois também fiscalizam desde o processo de formulação, execução, controle, e finalização da política, de regra, sendo chamada para se manifestar acerca dos resultados e formas de avaliação. Com efeito, a sociedade civil, desempenha papel central na implementação das políticas públicas como se vê[32], expediente que éde fomento da democracia participativa.

            Podemos agora retornar à Constituição, alfa e ômega de toda a elaboração aqui apresentada. Durante os últimos anos do século passado, afirmamos a "força normativa da constituição", para suplantar a ideia de haver normas constitucionais sem eficácia imediata, ideia que definitivamente suplantamos neste início de século, ao menos na doutrina brasileira. Acerca dos direitos constitucionais subjetivostemos que "as normas constitucionais definidoras de direitos ‒ isto é, de direitos subjetivos constitucionais ‒ investem os seus beneficiários em situações jurídicas imediatamente desfrutáveis, a serem efetivadas por prestações positivas ou negativas, exigíveis do Estado ou de outro eventual destinatário da norma."[33]

           

5. Políticas Públicas Afirmativas HOJE

            As necessidades que fundamentam a implementação das chamadas afirmative actions são oriundas de contextos historicamente estruturados. O primeiro registro histórico que temos da formulação das ações afirmativas data de 1919, na Índia, instituto formulado pelo então magistrado Bhimrao Ramji Ambedkar, que pertencente à casta oficial subalterna, teve a oportunidade de viver na Inglaterra e escapar do futuro certo que o aguardava, face ao mais hermético dos sistemas sociais já registrados. Como se sabe, a Índia era estruturada a partir de castas sociais, cuja migração de uma a outra era proibida por lei, e também pela religião, constituindo num sistema imobilista e hipersegregacionista.

            As ações afirmativas são medidas que tendem a corrigir realidades sociais históricas, que vitimizam determinado grupo social, impedindo ou dificultando a sua mobilidade entre as camadas sociais, estes grupo são tidos com grupos vulneráveis. Com efeito, tomaremos o racismo no Brasil como mote, saliente-se que poderíamos pensar em diversas outras formas de discriminação, a que escolhemos é tão somente pela familiaridade com o objeto e facilidade no acesso às fontes. O conceito de racismo que tomaremos aqui será:

Tanto o sexismo quanto o racismo compartilham a singularidade de serem dinâmicas determinadas e construídas historicamente e não ideologicamente. Por isso, a gênese destes dois fenômenos não parte de elaborações intelectuais conscientes, mas de conflitos longínquos, cujas origens se perdem no fundo do tempo, persistindo na consciência contemporânea sob forma fantasmática, simbológica e atemporal. A dinâmica própria do racismo se desenvolve dentro do universo de atitudes, valores, temores e, inclusive, ódios ‒ mesmo quando inconfessos ‒, infiltrando-se em cada poro do corpo social, político, econômico e cultural.[34]

            No Brasil, os efeitos nefastos do racismo já foram apontados há muito pelos movimentos sociais negros, que de resto denunciavam esta realidade de maneira informal, privados que eram de estarem nas Academias, mas na década de 1950, o Projeto Unesco, após as atrocidades da Segunda Grande Guerra, e diante da tão propalada "democracia racial" existente no Brasil, convocou um grupo de intelectuais para estudar e demonstrar a forma,e como se deu o desenvolvimento desta harmonia racial. Sob os cuidados do professor Florestan Fernandes, então sociólogo da Universidade de São Paulo, reuniu-se diversos expoentes das ciências sociais brasileiras da época, para elaborar tal estudo, entre os pesquisadores, podemos citar: Octavio Ianni; Oracy Nogueira; Thales de Azevedo; e Fernando Henrique Cardoso. E como resultado, o Projeto Unesco respondeu a toda a sociedade mundial que no Brasil a "democracia racial" é uma farsa e que os negros, compreendidos os pretos e os mestiços, são bloqueados ao acesso aos benefícios públicos, assim impedidos de ascender socialmente.

            Essa realidade de fato se alterou na atualidade, após décadas de denúncia e ativismo dos movimentos sociais. Hoje gozamos de um conjunto robusto de políticas públicas que combatem o racismo no Brasil, no entanto, falta muito a ser feito. Acerca dos estudos das relações raciais, apenas na década de 1980 passamos a utilizar dados estatísticos, como forma de superar as eternas disputas argumentativas acerca das consequência da discriminação racial. E pelo curto espaço que temos neste trabalho, utilizaremos alguns dados extraídos do Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil; 2009-2010, para abordar questões ingentes:

Fonte: PAIXÃO, 2010, p. 251.

            Nesta primeira tabela, temos um mapa das mortes "por causas externas", também conhecidas como mortes por causa violenta ou não-naturais, onde podemos perceber que mesmo num período de melhoria nas condições de vida gerais da população carente deste país, a vitimização da população negra se dá em uma escala vertiginosa. Por óbvio que muitos fatores podem e devem ser agregados para uma análise mais apurada, mas vejamos as próximas tabelas.

Fonte: PAIXÃO, 2010, p. 254.

            Aqui temos um outro tipo de caso, são morte por homicídio, onde identificamos que com o passar do tempo, para a população "branca" os índices caem, ao passo que a vida destes indivíduos melhoram no Brasil, e para a coluna imediatamente ao lado, a situação é exatamente oposta, os índices aumentam. Vejamos uma próxima tabela:

Fonte: PAIXÃO, 2010, p. 255.

            Nesta nova tabela, está sendo utilizada a metodologia de análise "por 100 mil", para o registro de ocorrências de redução, onde verificamos que a redução na escala dos chamados "homens brancos" oscila para baixo na primeira casa, e para os "homens pretos & pardos" apenas na segunda. Se tomarmos mesmo o caso das mulheres, ocorre fenômeno similar, o que corresponde frente à realidade de violência contra os homens negros dados importantes. Vejamos uma última tabela:

Fonte: PAIXÃO, 2010, p. 255.

            Aqui verificamos os dados apenas para o ano de 2007, desagregado por região do país, nesta verificamos que, além das disparidades que se repetem em todas as regiões e em todos os casos, excetuando "ambos os sexos" e "sul", temos ainda que o Nordeste, região com maior concentração de população negra, apresenta as maiores disparidades registradas.

            Este é o quadro da realidade social do estudo sobre violência e relações raciais no Brasil, e, salientamos que o Mapa da Violência 2012, instrumento de pesquisa sobre a violência no Brasil encomendado pelo Ministério da Justiça/PR, de fácil acesso através das mídias digitais, reafirma esta constante estatística, em seu sentido amplo. E é desta realidade que partimos para o debate acerca da legitimidade das políticas públicas de ações afirmativas, neste caso, de combate ao racismo na sociedade brasileira.

            Para o que nos interessa, o judiciário brasileiro já tem a orientação do Supremo Tribunal Federal, que em sede de controle concentrado, e no exercício que lhe é próprio da jurisdição constitucional, julgando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ‒ ADPF 186, sedimentou o entendimento Superior sobre a matéria, exercendo assim o poder que lhe é ordinário; muitos reclamam uma atuação política, o que podemos responder com o entendimento de Inocêncio Mártires Coelho,

Já disse praticamente tudo sobre a jurisdição constitucional, seja para defendê-la, seja para criticá-la. Para o bem ou para o mal, não podemos viver sem ela, pelo menos enquanto não descobrirmos alguma fórmula mágica que nos permita juridificar a política sem, ao mesmo tempo e em certa medida, politizar a Justiça. Se o Estado é a forma por excelência de manifestação do poder político e a Constituição o seu estatuto fundamental, então onde quer que se institucionalizem relações de mando, alguém terá que arbitrar-lhes os inevitáveis conflitos. Relembrando palavras de Radbruch, diríamos que se ninguém tem condições de dizer o que é justo, alguém tem de decidir o que é jurídico, até porque a essa altura parecem incogitáveis o abandono do Estado de direito e o retorno à lei do mais forte.[35]

            Com isso, não olvidamos a influência de determinantes da vida para a decisão, como não poderia deixar de ser[36], afinal de contas, são homens e mulheres que decidem como seres humanos, mas também não devemos deixar de observar a consistência das decisões, e dizer que fora um caso decidido unanimemente. Temos a convicção que se materializou politicamente o mandamento constitucional. Este escrito poderia sofrer a crítica de não ter abordado a tradicional dicotomia ação afirmativa de um lado, e princípio da igualdade por outro, ao que responderíamos com a Carmen Lúcia Antunes Rocha, que diz:

O grande avanço jurídico do princípio constitucional da igualdade é que esse passou, nas últimas duas décadas, de um conceito constitucional estático e negativo a um conceito democrático dinâmico e positivo, vale dizer, de um momento em que por ele apenas se proibia a desigualação jurídica a uma fase em que por ele se propicia a promoção da igualação jurídica. O princípio constitucional da igualdade deixou de ser um dever social negativo para tornar-se uma obrigação política positiva.

[...]

A ação afirmativa constitui, pois, o conteúdo próprio e essencial do princípio da igualdade jurídica tal como pensado e aplicado, democraticamente, no Direito Constitucional Contemporâneo.[37]

            As ações afirmativas no Brasil, embora reconhecidas, como se disse, a sua constitucionalidade pela Corte Suprema do país, ainda sofre aqui e ali no judiciário e fora dele investidas contrárias, como no caso da Ação Popular nº 11734-81.2013.4.01.3700, da Seção Judiciária do Maranhão, decisão prolatada da 5ª Vara, com argumentos largamente combatidos aqui e na decisão do STF. Com efeito, suspeitamos que o aprimoramento da doutrina, considerando a inclusão explícita no conteúdo do princípio de igualdade constitucional as ações afirmativas, ajudaria a superar esta resistência.

6. Considerações finais

            Diante de todo o exposto, as ações afirmativas têm funcionado no mundo, e não seria diferente no Brasil, como uma estratégia para combater males ingentes construídos no bojo da história desta nação. Aqui, tivemos como pano de fundo a questão racial brasileira, mas poderíamos utilizar quaisquer das pautas sociais que tematizam e combatem violências sistêmicas; e, desta forma, teríamos o mesmo apelo, fundado numa estrutura teórico-dogmática que promove um discurso de emancipação social através, daquela instancia que é originariamente responsável pela elaborações de saídas institucionais para problemas da sociedade: o Estado.

            O que consideramos que precisa de maior clarividência para os vários setores estatais, é a características de unidade dos sistemas de proteção. Com isso, não queremos propor a supressão da capacidade e condição de insurgência própria de toda diversidade social, mas a tentativa de tonar comum, compreensões típicas de processos emancipatórios: é pouco aceitável que uma Suprema Corte decida após um longo período de discussão, como foi o em exame, e um magistrado singular, decida em sentido diametralmente oposto, lançando mão de técnica redacional escorreita, carente de qualquer orientação política.

            O que, por fim, propomos nestas linhas é a tomada consciência dos mais diversos interpretes-aplicadores do direito para a compreensão de que a responsabilidade política e social do destino da nossa Nação é partilhada sempre coletivamente, sendo, sobretudo, responsável pelo carácter realmente democrática e republicano da nossa sociedade, especialmente, aqueles agentes públicos que mais benefícios receberam deste complexo social, logo, legisladores e acadêmicos não podem se furtar ao seu papel originário de dar respostas coerentes à problemas da sociedade.

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Sobre o autor
Cleifson Dias Pereira

Possui graduação pela Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador (2005); é pós-graduando lato sensu em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça (UFBA); é também, mestrando em Direito Público, com enfase em Direito Penal, na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, tendo iniciado em 2013. Atualmente é Advogado. Tem experiência na área de docência em direito, advocacia, consultoria jurídica e gestão pública, com ênfase nas amplas discussões sobre violência, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia do direito, acesso à justiça, direito penal, criminologia, direitos humanos, racismo e intolerância religiosa.

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