1- Introdução
O Direito, por se tratar de ciência social aplicada, preocupa-se com a ordem e a segurança da sociedade, possuindo, portanto função de corrigir as injustiças da coletividade[1], sempre supedâneo ao principio constitucional da Isonomia, que é pilar do moderno Estado Democrático de Direito.
O celebre jurista Ruy Barbosa, ainda no final século 19, conceituou o referido principio, com brilhante definição que perdura até hoje:
“A regra da igualdade não consiste senão em tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcional e desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade’’[2].
O princípio da igualdade implica no dever de tratar isonomicamente todos os que afluírem ao certame jurídico e sempre garantir restituição dos direitos de parte lesada por conduta antijurídica, além de também ensejar oportunidade de disputar a quaisquer interessados que, desejando participar, possam oferecer as indispensáveis condições de garantia, sendo instituídos, no passado recente, abundantes mecanismos jurídicos a fim de promover o aludido princípio.[3]
Ocorre que, não apenas o pressuposto da existência de várias leis, torna corolário a prática e funcionamento do principio isonômico, afirmativa esta que se situa de acordo com o antigo aforismo latino Summun ius, summa iniuria[4], isto é justiça excessiva não é senão injustiça, proclamado com assaz de razão pelo eloquente Cícero.
Por meio do presente artigo, no liar do constante questionamento sobre o papel e limite do poder judiciário, além da célere expansão da quantidade de normas, vem-se tratar de um problema recente no ordenamento jurídico brasileiro, que incide no abuso do direito a compensação pecuniária decorrente de responsabilidade civil, em especial no âmbito dos juizados especiais cíveis.
2 - Breve história do Juizado Especial e sua inclusão ao acesso a justiça
Percebe-se, notavelmente, no contexto histórico nacional, a dificuldade da camada mais pobre da sociedade em conseguir o acesso a justiça, seja por causa dos altos custos, do tempo gasto de uma ação ou pela falta de conhecimento jurídico básico.[5]
Nesta perspectiva, foram criados pela já extinta Lei nº 7.244, de 7 de Novembro de 1984, os juizados especiais de pequenas causas, que possuíam o escopo de facilitar o acesso da população, sobretudo a de baixa renda, ao poder judiciário pois traziam uma serie de facilitadores em seu procedimento, tais como o Jus Postulandi ser realizado sem a obrigatoriedade de advogado e a aplicação dos princípios da oralidade, celeridade, buscando-se assim humanizar a justiça e evitar a morosidade do ordenamento jurídico tradicional em relação as causas do dia-a-dia.
Com o decorrer dos anos, sobretudo após a promulgação da constituição cidadã de 1988, que previu alterações na estrutura e funcionamento dos antigos juizados de pequenas causas[6], foram estabelecidos com a Lei nº 9.099, de 26 de Setembro De 1995, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais Estaduais, que reformularam o sistema jurídico pátrio no que cinge-se a maior inclusão do cidadão comum, criando um sistema processual mais sucinto, possuindo como pressupostos norteadores a oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual, celeridade e maior busca pela conciliação.
A nova lei ampliou a competência dos juizados cíveis para o processamento, julgamento e execução de causas de menor complexidade, estabelecendo o procedimento sumaríssimo, podendo assim, a população ajuizar demandas cujos valores não fossem superiores a quarenta salários mínimos, além das causas estabelecidas no artigo 275, inciso II, do Código de Processo Civil.
De inicio, a medida foi um sucesso, considerando os ótimos resultados e as inúmeras vantagens obtidas, sobretudo na quantidade de acordos realizados entre as partes. O legislador transportou a bem-sucedida experiência dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais para o âmbito da Justiça Federal, através da Lei nº 10.259, de 16 de julho de 2001 que criou os Juizados Especiais Federais. A postura da Lei nº 10.259/01, de acabar com os privilégios da Fazenda Pública representou um avanço no árduo para atingir o princípio da igualdade das partes no processo civil brasileiro.
Ocorre que, no instável sistema jurídico do recente estado democrático de Direito Brasileiro, um remédio, embora essencialmente benéfico a saúde do paciente, pode vir a ter efeito colateral, conforme a máxima da física: ‘’toda ação, involuntariamente tem sua reação.‘’
Sendo assim, ainda que a população mais humilde tenha realmente adquirido um meio factível para acessar o judiciário, observa-se que o numero de ações propostas em juízo aumentou de forma assustadora, sendo mais de 6 milhões de processos recebidos pelos juizados especiais no ano de 2014.[7] Grande parte desta demanda judicial, refere-se a compensação pecuniária decorrente de danos morais sofridos, que possuem a característica de serem difíceis de mensurar, elevando o trabalho do poder judiciário e alterando significativamente o tramitar dos feitos em juízo no tocante as decisões judiciais e o custo do judiciário, problematização que será postulada na sequência do artigo.
3 – Conceito de dano moral a luz da Responsabilidade Civil
Para se falar da ocorrência e culminação de dano entre duas partes de um litígio, é mister elucidar inicialmente, o conceito de responsabilidade civil, que está relacionado intimamente à noção de não prejudicar outro.
A responsabilidade civil parte do posicionamento que todo aquele que violar um dever jurídico através de um ato lícito ou ilícito, tem o dever de reparar, pois todos possuímos o preceito jurídico originário o de não causar danos a outrem e ao violar este dever originário, passamos a ter um dever jurídico sucessivo, o de reparar o dano que foi causado.
Clovis Bevilaqua, define com propriedade o conceito supracitado:
‘’O dano para o efeito de responsabilidade civil, é toda lesão nos interesses de outrem tutelados pela ordem jurídica, quer os interesses sejam de ordem patrimonial, quer sejam de carácter não patrimonial.[8] ‘’
Como pode-se inferir, a tendência doutrinária é de dividir o dano a direito personalíssimo em duas vertentes, a dos danos materiais (patrimoniais) e a dos danos morais (extra patrimoniais).
Os danos extrapatrimoniais, que são mencionados no art. 186 do códex civil de 2002, consistem em todos aqueles prejuízos que não advêm diretamente de lesão ao patrimônio, isto é os agravos produzidos não possuem qualquer efeito patrimonial ou de valor econômico. Segundo Daisy Justa Fernandes Bordon:
''Deve-se entender aquele causado ao patrimônio desmaterializado de uma pessoa, ou seja, aquele resultante de lesões a honra, a paz interior, crenças, vida na sua totalidade física e moral, afeiçoes legitimas, aquele que afeta o amago do ser. [9]''
Destarte, percebe-se a abrangência do instrumento jurídico dos danos morais, que engloba diversas áreas do direito, podendo ir desde uma inclusão indevida do CPF do autor nos órgãos restritivos de crédito até compensação pecuniária decorrente de rompimento de um noivado.
4 - Fundamentos para Reparação do Dano
Os fundamentos para reparação do Dano Moral divergem deveras dos estabelecidos para a compensação por Dano Material pois enquanto o segundo é de fácil cognição, por ser decorrente de ação ou omissão indevida que resulta em prejuízos visíveis e mensuráveis no patrimônio da parte afetada, o primeiro possui mais complicado aspecto e observação.
Para que se configure indenização por dano moral não basta que o indivíduo tenha passado por uma situação desagradável, que o tenha incomodado. É preciso que tenha sido comprovado um efetivo constrangimento, vexame ou humilhação, decorrente de uma situação anormal, ilícita.
Para a caracterização do aludido dano, é indispensável à ocorrência de ofensa a algum dos direitos da personalidade do indivíduo. Esses direitos são aqueles inerentes à pessoa humana e caracterizam-se por serem intransmissíveis, irrenunciáveis e não sofrerem limitação voluntária, salvo restritas exceções legais (art. 11, CC/2002).
Sendo assim, para se esculpir a responsabilidade civil e por conseguinte a existência de dano moral, é necessária a observância de três elementos: a ofensa a uma norma preexistente (dolo) ou erro na conduta (culpa), caracterizando um ato ilícito, um dano (resultado) e o nexo de causalidade entre um e outro elemento.
5 - Dano Moral e sua banalização nas petições iniciais
Nos últimos anos, a quantidade de faculdades ofertando o curso de direito, aumentou imensamente, segundo o MEC (Ministério da Educação) existem mais de 1.300 cursos de direito em todos os estados da União, um aumento de aproximadamente 750% em relação aos 165 credenciados em 1991 e, por conseguinte, os bacharéis em Direito. De acordo com o institucional da OAB, há no presente momento da Republica mais de 900 mil advogados devidamente cadastrados na ordem do país.[10]
Com isso, percebe-se claramente um inchamento no mercado de trabalho advocatício, resultando então em vários advogados necessitados a captar clientes de qualquer maneira.
Diante da problematização do excesso de oferta dos serviços jurídicos, grande parte destes bacharéis encontraram nos juizados especiais cíveis, uma forma de se estabelecer no mercado e conseguir angariar clientes, através do ajuizamento de causas a qualquer custo, sendo que várias destas demandas poderiam ser resolvidas extrajudicialmente por não possuírem ou matéria de fato ou matéria de direito.
Nesta celeuma, observa-se o crescimento em abundância de demandas pleiteando compensação por danos morais, por serem abrangentes e subjetivas. Em 2007, havia no Brasil cerca de 420 mil processos por danos morais tramitando na Justiça, sendo que de 1999 a 2007, enquanto o número global de processos avançara nove vezes, a quantidade de ações por danos morais fora multiplicada por 51.[11]
Ademais, um importante maximizador para a questão problematizada, do excesso de pedidos de danos extrapatrimoniais, é o chamado ativismo judicial, prática polêmica realizada por parte do magistrado na qual ante a omissão dos Poderes Executivo e Legislativo, o Judiciário acaba sendo chamado para suprir uma omissão constitucional do Estado em garantir a concretização de direitos fundamentais e a implementação das políticas públicas constitucionalmente asseguradas.
Ocorre que tal qual discorrido supra, todo o excesso pode acarretar problemas e no caso do ativismo judicial, a conduta unilateral de alguns juízes em condenar, sobretudo empresas de grande poderio econômico, a pagar valores astronômicos decorrentes de danos morais a fim de que a parte, teoricamente mais forte da lide, compense exemplarmente a mais vulnerável, resultou num aumento ainda maior da quantidade de ações dessa espécie, pois se tornou ‘’senso comum’’ em várias comarcas do país que ingressar no juizado especial com ação por danos morais seria ganho líquido e certo.
Sendo assim, surgiu no passado recente uma banalização imensa dos pedidos por danos morais, ocorrendo casos absurdos como o de um casal que decidiu processar uma pizzaria depois de um deles apertar uma bisnaga de ‘’ketchup’’ e sujar sua camisa ou de um paciente que teve sua guia de exames com a data vencida recusada pelo laboratório achando necessário assim pedir uma reparação de cunho extrapatrimonial.
6 - A questão da ponderação do quantum Indenizatório
Dando prosseguimento, é objetivo do presente artigo, questionar o excesso em relação ao pedido de indenização por dano moral, sobretudo nos juizados especiais, que acaba por derradeiro afogando o judiciário em um ‘’mar de processos’’ comprometendo ainda mais o erário público e a celeridade processual.
Desta feita, tem-se no debate do valor da indenização uma difícil questão pois o código civil não instrui a maneira que deve ser calculado a mesma, cabendo então ao entendimento do magistrado, em cada caso individual, ponderar o quantum indenizatório.
Assim sendo, qualquer fixação da reparação de dano moral, deve, antes de tudo, basear-se na realidade econômica do ofensor. Após fundamentado este elemento básico, convêm tomar em conta os restantes, quais sejam: I – A intensidade do sofrimento do ofendido. ; II – a intensidade do dolo ou grau da culpa e III – capacidade de exigir conduta diversa. Sempre respeitando-se os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
Atualmente, discute-se bastante entre os juristas brasileiros sobre a forma de liquidação do Dano Moral, através de uma avaliação relacionada a valoração, a qual tem caráter preponderantemente subjetivo, uma vez que, a legislação pátria é omissa, recaindo sobre os nossos magistrados a árdua tarefa de quantificarem o valor da indenização, mesmo quando requerido de forma previamente mensurada pelo lesado.
Uma alternativa proposta em 2009 pelo STF para fixar possível quantificação pecuniária de danos morais, foi a criação de uma tabela através de precedentes judiciais decorrentes do julgamento de casos tidos como ‘’chaves’’ para que fosse coibido nos juízos a quo, divergência de compreensão entre os magistrados no que cinge a compensação por danos morais. Infelizmente, na prática tal medida não surtiu o efeito desejado e a recomendação do STF acabou sendo deixada de lado.
Outra opção factível, seria adotar uma fixação de um teto-limite e um mínimo para a culminação dos danos morais, tal qual ocorre no ordenamento jurídico do México e da Etiópia[12]. Tal medida possibilitaria o pagamento de indenizações nem hiposuficientes, nem hipersuficientes, assim como também, refutaria bastante a disparidade processual, fazendo-se valer da segurança jurídica juntamente com o respaldo do interesse público.
Por outro lado, uma fixação de teto mínimo e teto máximo, casuisticamente poderia não coibir por completo o que se costuma denominar de ‘’indústria do dano moral’’, caracterizada pelo ajuizamento de ações temerárias apenas com o escopo oculto de obter enriquecimento ilícito e não pela compensação real do dano jurídico sofrido.
Segundo o juiz de direito do TJRJ, André Gustavo C. de Andrade uma alternativa para regular a questão do quantum indenizatório, omissa no ordenamento jurídico e de difícil ponderação por parte dos tribunais, seria não na criação de obstáculos processuais ou econômicos a propositura das ações de reparação por dano moral e sim na formação de uma jurisprudência firme, que saiba separar o joio do trigo, rejeitando pretensões desarrazoadas. [13]
Coincidentemente, a aplicação da Lei 13.105/15 que traz o novo Código Processual Civil, poderá levar a importantes mecanismos de aperfeiçoamento do sistema de precedentes judiciais e, consequentemente, de uniformização e estabilização da jurisprudência pátria, sobretudo através do seu artigo 489, inciso IV que dispõe sobre os elementos essenciais de todas as decisões judiciais, sejam elas interlocutórias sentenças ou acórdãos.
O referido inciso determina que não seja considerada decisão judicial fundamentada, toda aquela que: ‘’VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento’’.
7 - Conclusão
Destarte, o que percebemos é que a com a popularização dos juizados especiais, além do aumento impressivo no número de advogados sedentos a qualquer custo por novas causas e a alarmante elevação do ativismo judicial por parcela significativa do magistrado, cada vez mais somos obrigados a presenciar no cotidiano jurídico, uma infinidade de ações indenizatórias pleiteando a reparação por danos morais.
Vários desses processos são ajuizados, não porque houve efetivamente lesão a direito extrapatrimonial, conjectura na qual é legitima e necessária a cabível reparação pecuniária e sim, simplesmente, por várias vezes decorrente de má-fé, uma busca a qualquer custo por ganho financeiro.
Na hipótese de que, a corrente de pensamento sobre o dano moral e sua possível indenização não mude, ou seja, coibindo-se ações infundadas e absurdas, no futuro próximo teremos que aumentar o número de juízes, sobretudo, dos juizados especiais, pois não haverá contingente de pessoas necessário para suprir o volume de processos judiciais em tramitação, possibilidade esta incompatível com a situação econômica que o país se encontra atualmente, de crise e instabilidade politica.
Cabe então, no momento atual, a luz do novo CPC, que objetiva consolidar a jurisprudência como um poder decisório através da prática de precedentes, que os integrantes do mundo jurídico, isto é, o poder judiciário, os advogados e a população em geral se conscientizem mais sobre os ônus e direitos das partes interessadas em pleitear no âmbito jurídico, perfazendo-se, portanto, um judiciário mais eficiente, contundente e justo.
Notas
[1] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica, 1986
[2] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. Saraiva: São Paulo, 2009, p. 420
[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo 17. ed. 2004. p. 73-74.
[4] CICERO, Marcos Tulio. De officiis (I, 10, 33), 44 a.c
[5] Cappelletti e Garth. Acesso a Justica,1988, p. 21
[6] Art. 98, inc. . Constituição Federal/88
[7]http://www.gaiojr.adv.br/noticias/em_2014_juizados_especiais_receberam_mais_de_6_milhoes_de_novos_processos
[8] BELIVILAQUA, Clovis. Direito das Obrigacoes, Rio de Janeiro,1977, p.241
[9] MARTINS DA SILVA, Americo Luis. O Dano Moral e sua Reparação Civil, , ed. Revista dos Tribunais, p. 37
[10] http://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados
[11] Consultor Jurídico. Revista Eletrônica, 2007.
[12] MARTINS DA SILVA, Americo Luis. O Dano Moral e sua Reparação Civil, , ed. Revista dos Tribunais, p. 467
[13] Cf. Dano Moral e Pedido Generico de Indenizacao, Revista da EMERJ – Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, vol. 3,n.10, Rio de Janeiro, EMERJ,2000,p57