A escória humana:refugiados como o subproduto dos interesses

24/09/2015 às 17:29
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A diáspora de um povo. A escória do mundo. O silêncio de uma criança. Um discurso repugnante e absurdo.

No começo do mês de setembro a foto do corpo de uma criança debruçado na praia viralizou e chocou a humanidade. O menino Aylan – grafia equivocada, mas como foi divulgado inicialmente pelo governo Turco e assim ficou mundialmente conhecido – foi encontrado logo pela manhã na praia de Bodrum e abriu todos os olhos para a calamidade em que vive o povo sírio.

Charge de Ulys

Ironicamente, uma guerra travada há mais de quatro anos, com bombardeios diários, que acumula mais de 240 mil mortes, destruições de cidades inteiras, desloca cerca de 50% da população de um país e mexe com a economia internacional, precisou do triste e eloquente silêncio de uma criança à beira do mar para que chocasse o mundo.

Dias depois outra notícia menos veiculada e infinitamente menos importante, proporcionou o raciocínio que se segue. O Deputado Bolsonaro, no dia 17 de setembro, em entrevista ao Jornal Opção de Goiás, referindo-se a haitianos, senegaleses, bolivianos e sírios afirmou que “a escória do mundo está chegando ao Brasil, como se nós não tivéssemos problema demais para resolver”.

Procurando manter resguardadas opiniões pessoais e políticas, bem como a sobriedade desta abordagem, propomo-nos a realizar uma análise acerca dos fatos elencados sob a luz dos Direitos Humanos.

PRIMAVERA, VERÃO, OUTONO, INVERNO, PRIMAVERA

Este título é do filme sul-coreano de 2003, dirigido por Kim Ki-duk, o qual retrata de forma poética e trágica a ciclicidade da vida. Parece-nos pertinente ao nosso tema por dois motivos. Primeiro, como veremos, esta onda de refugiados não é a primeira na história e parece ocorrer de tempos em tempos; segundo, os fatos que culminam na mazela síria de hoje começou também em uma Primavera, a Árabe.

A guerra na Síria começou no ano de 2011, quando no levante popular conhecido como Primavera Árabe, objetivou-se a destituição de governos ditatoriais que se estabeleciam no poder por décadas. Assim ocorreu, além de na Síria, no Iémen, Egito, Líbia e outros países do Oriente Médio, tendo eclodido na Tunísia, com a derrubada do presidente Ben Ali ainda em janeiro daquele ano.

Na Síria, no entanto, a primavera parece ter perdurado por mais estações do que o previsto. O governo de Bashar al-Assad, que teve o poder herdado de seu pai Hafez al-Assad, manteve-se vigente e a guerra que, a princípio, iniciou-se com o fim de instituir a democracia em seu lugar perdura acumulando prejuízos cada vez maiores. Para isso a Síria faz uso de um forte poderio militar e, sobretudo, goza de interesses externos de países como China e Rússia, por exemplo. Aquele tem grandes interesses econômicos na manutenção do preço do petróleo, que pode ser abalado com a alteração do regime político, este, além de transações mercantis com a Síria, também a tem como uma grande consumidora de armamento.

Ademais, outro motivo para a continuidade da guerra é a ausência de legítimo interesse do país decisivo – quando se trata de assuntos bélicos – Estados Unidos da América que, apesar de logicamente não aparentar motivos para se preocupar com um país pequeno, de alta complexidade e com um retorno financeiro pouco atraente, sustenta um discurso público de apoio à oposição e a sua democracia idealizada, mas tem seus valores estremecidos por, dentre outros motivos, se deparar com a Al-Qaeda, sua inimiga mortal, combatendo ao lado do levante popular.

Ao longo dos anos, viu-se a centelha síria de insatisfação popular e a busca por democracia se tornarem uma guerra civil que acabou perpetuada por interesses – ou a falta deles – econômicos. Assim, o que era legítimo e digno, tomou dimensões imaginadas e, por vezes, já se confunde ideologicamente com terrorismo. A consequência disso tudo e o fato que se mostra pertinente nesta abordagem é a quantidade cada vez maior de refugiados que fogem do seu país natal e buscam abrigo internacionalmente.

Segundo dados da Comissão Europeia e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), hoje o número de refugiados ultrapassa 4,6 milhões, sendo a maior parte deles acolhidos por países vizinhos da Síria, a Turquia (1,9 milhão), Líbano (1,1 milhão) e Jordânia (629,6 mil). Enquanto isso, a União Europeia tenta planejar como receber nos próximos dois anos cerca de 120 mil beneficiários das solicitações de refúgio, o Canadá 2.500 e o gigante EUA 1.200.

O Brasil, por sua vez, recebeu desde a Primavera Árabe, segundo o Conare, 2.077 refugiados, tendo emitido mais de 7,7 mil vistos para pessoas nessa condição, tendo ainda prorrogado na data de 21 de setembro de 2015 a emissão de visto especial aos sírios, que concede algumas facilidades, como a desnecessidade de comprovação de passagem de volta, por exemplo.

Bem, a Lei 9.474/1997 estabelece, em seu art. 1º, quem deverá ser reconhecido como refugiados no Brasil:

Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:

I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal paí

II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior

III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

O reconhecimento da condição de refugiado e seus efeitos “serão extensivos ao cônjuge, aos ascendentes e descendentes, assim como aos demais membros do grupo familiar que do refugiado dependerem economicamente”. Em síntese, ser reconhecido como refugiado no Brasil implica ter acesso a serviços públicos, ter autorização para se locomover livremente no país, estabelecer domicílio, trabalhar e ter ingresso facilitado em instituições acadêmicas. Tudo isso previsto e regulado por lei.

Com os olhos voltados para a dignidade da pessoa humana, pressuposto constitucional que fundamenta as ações estatais – ou pelo menos deveria -, parece-nos lógico e minimamente razoável receber e dar condições de vida às pessoas que foram expurgadas do seio de sua nação por uma guerra civil, como a que assola a Síria. Abordando apenas superficialmente, conceder a condição de refugiado a alguns milhares de pessoas – tomando como base as dimensões continentais que tem o Brasil – não parece um risco à segurança nacional.

No entanto, despontam-se opiniões contrárias, tal qual vimos a que foi exarada pela figura do Sr. Jair Bolsonaro. Então, para não pecarmos por falta de zelo e concluir às pressas acerca de um tema tão complexo, analisemos.

ANÁLISE SEMÂNTICA

Foi usado um termo interessante pelo parlamentar: “escória”. Vejamos que, apesar de que uma rasa interpretação da sua fala permita depreender que ela foi aplicada com sentido chulo, uma análise semântica informal já nos leva a um raciocínio mais rico que o –comumente – sustentado pelo Deputado.

A escória é o subproduto da fundição de minério para purificar metais. Pode ser considerada uma mistura de óxidos metálicos mas também podem conter sulfitos metálicos e átomos de metais na sua forma elementar. As escórias são geralmente usadas como uma maneira de remover impurezas na fundição de metal. No entanto, devido à sua constituição, também podem cumprir outras funções tais como assistir no controle de temperaturas de fusão e na minimização da re-oxidação do produto final.

Subproduto

Os refugiados que se amontoam são a consequência da guerra civil na Síria, o resultado da disputa ideológica, política, religiosa e, sobretudo, econômica. Talvez sem fomento bélico da Rússia, o interesse econômico chinês em manter o status quo e a apatia maquiavélica dos Estados Unidos essa guerra já tivesse visto um fim há anos. São grandes nações influindo direta ou indiretamente na vida de um pequeno país já bastante atormentado internamente.

A eterna dicotomia ideológica dos Estados envolvidos, com os interesses voltados a extrair o máximo de retorno econômico da situação, em uma digressão rápida, pode ser encarada, sim, como a fundição de metais pesados, que, como resto, expurga o que há de mais leve em suas composições.

A briga econômica, a busca por lucro, o ouro, a prata, o petróleo, o ferro das armas, a Rússia, a China, os EUA, Al-Qaeda, IE e etc. Se fundem e expulsam o povo que já não serve sequer de bode expiatório ideológico. Os refugiados são mesmo a escória de uma fundição pesada de interesses que, no final, independente dos extremos que representem, acabarão por forjar uma só moeda.

A foto do garoto Aylan na praia pode ser elevada ao título de símbolo da escória da síria, o que nos leva a lembrar como a criança e o abutre de Carter representou a escória de outra guerra civil, ocorrida no Sudão na década de 1990. Muito provavelmente os motivos serão esquecidos muito mais rapidamente que a forte imagem.

A fome no Sudão matou 600 mil pessoas em 1993. A guerra civil e a seca provocaram no país centenas de refugiados naquela década. O país continua a ser um dos focos de crise humanitária mais graves do planeta.

O povo Sírio que busca amparo continua como escória econômica quando, não aparentando nenhum retorno lucrativo aos olhos da União Europeia, tem sua entrada evitada e dificultada nos países próximos.

Talvez escória seja um adjetivo amargo, mas sob esta ótica não parece mesmo tão errôneo.

Bem, sabemos que guerra síria não é a primeira a gerar escória, da mesma forma que não é recente a tentativa mundial de estabelecer “direitos humanos”.

Em 1942, a produção em massa de escória da vez era o nazismo de Hitler, que aterrorizou o mundo e promoveu a reunião de 26 países signatários, intencionados sob o que se intitulou Declaração das Nações Unidas.

Naquele momento a Alemanha realizava a maior barbárie já vista pela humanidade. O que é pior, todo o terror se deu de forma positivada e sob a chancela do ordenamento jurídico vigente. As 26 nações e as outras que aderiram posteriormente se comprometeram a combater “as forças selvagens e brutais que procuram subjugar o mundo”, com o fim de “defender a vida, a liberdade, a independência e a liberdade de culto, assim como para preservar a justiça e os direitos humanos nos seus respectivos países e em outros.”.

As intenções declaradas contra o hitlerismo inicialmente tomaram forma e evoluíram para a defesa da humanidade. Assim, em Paris, no ano de 1948, ocorreu um marco na história dos direito humanos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, através da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações.

Como um forte suspiro de esperança e com a face voltada ao respeito do ser humano como uma “família”, desvencilhando-se de rótulos distintivos como raça, cor, sexo, credo ou qualquer outra forma de discriminação, a DUDH reza – como quem eleva mesmo uma prece – logo em seu preâmbulo:

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(...) o desconhecimento e o desprezo dos direitos do Homem conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e (...) o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem.

(...)

os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla.

Depois do medo instaurado por um regime autoritário como o nazismo, o mundo promovia uma ânsia de assegurar que algo como ele não voltasse a ocorrer. Os direitos humanos foram tomados como inerentes à própria condição humana, natural de cada indivíduo e indisponível.

A evolução do que se entende por diretos fundamentais tem nuances cada vez mais detalhadas ao longo da história, começam a ser aplicados paulatinamente a mais países e, por consequência, tem cada vez mais força. Com o surgimento do pós-positivismo, o respeito à dignidade da pessoa humana toma dimensões novas e seu respeito passa a ser considerado requisito à existência de uma Constituição e à concepção de Estado.

Alguns anos depois da DUDH, em virtude da quantidade significativa de refugiados do pós Segunda Guerra, as Nações Unidas estabeleceram o Estatuto dos Refugiados, garantindo a segurança daqueles que, “em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país.” (Convencao de 1951).

No entanto, apesar das declarações de boas intenções internacionais, os países se mantiveram em guerras pelos mais variados motivos e nas mais diversas localidades do globo, fato agravado pelas inovações tecnológicas, que potencializam as destruições, gerando, portanto, “escórias” das mais diversas nacionalidades: senegaleses, haitianos, bolivianos e sírios – assim como exemplificou o Deputado Bolsonaro.

Assim como sabemos quando é dia porque conhecemos a noite; assim como sabemos o que é bem porque conhecemos o mal; há direitos elevados ao caráter de fundamentais e humanos necessariamente pelas máculas que as guerras e situações análogas ocasionam à dignidade humana. Precisam-se declarar e promover as boas intenções porque as más sustentam-se por si mesmas.

De qualquer sorte, precisamos concordar mais uma vez com a fala do parlamentar quando sustenta já ter, o Brasil, problemas demais para resolver. Acontece que, não obstante as mazelas internas ainda parecerem infindáveis, nossa pátria optou - sabiamente - por recepcionar, ratificar e/ou aprovar todos os tratados e convenções internacionais de direitos humanos que dão amparo aos refugiados internacionais.

Assim, a não ser que o deputado de palavras amargas promova algo como uma Primavera Tupiniquim Às Avessas e institua o seu próprio regime autoritário, as escórias do mundo permanecerão com amparo legal e entrada franca nestas terras.

Certos de que o raciocínio aqui empregado pode conter falhas, vejamos como a escritora senegalesa Fatou Diome retrata com maestria o tema em um debate no qual foi suposto que a França fechasse totalmente suas fronteiras para os refugiados:

https://www.facebook.com/CanalCurta/videos/vb.334259466672877/855607741204711/?type=2&theater&am...

https://www.facebook.com/CanalCurta/videos/vb.334259466672877/857400747692077/?type=2&theater

https://www.facebook.com/CanalCurta/videos/860717824027036/?__mref=message_bubble

Por fim, aguardamos ansiosos que o parlamentar compreenda os direitos internacionais dos refugiados e faça sua parte em dar cabo a nossas mazelas internas, começando por desocupar a cadeira que lhe assiste e desopilando a Câmara de ideologias enterradas em 1948.


Por Eden Picão, OAB RR1237, advogado associado da Picão Gonçalves Advogados Associados.

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