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O controle jurisdicional dos atos parlamentares: a (in)sindicabilidade da decisão interna corporis

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3. A PERSPECTIVA PROCEDIMENTALISTA: O DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO COMO PROCEDIMENTO DE DEMOCRACIA DELIBERATIVA

Diante das situações concretas apresentadas no tópico anterior, é de se questionar: dado o papel contramajoritário da Suprema Corte e a finalidade da jurisdição constitucional em assegurar a higidez do “jogo democrático”[36], a rejeição da alegação de inconstitucionalidade formal da EC nº 62/2009 pelo STF no julgamento da ADI nº4.425/DF consiste em uma postura de autocontenção ou em grave omissão quanto a um dever de correção procedimental?

Partido da análise da compreensão da Suprema Corte a respeito dos limites do controle jurisdicional do processo legislativo, é possível depreender a inadequabilidade de tais posições face ao paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, culminando em uma situação de total insegurança jurídica decorrente da ausência de parâmetros normativos, o que conduz a um exercício cada vez mais arbitrário do poder político por restritos segmentos da sociedade[37].

Na avaliação de Marcelo Cattoni, a “privatização” do processo legislativo com a chancela do STF fica evidenciada diante da restrição de legitimidade para ajuizamento de mandado de segurança aos parlamentares. Afinal, ao conferir a titularidade de impugnação do processo legislativo apenas aos parlamentares, estar-se-á possibilitando que o exercício do direito público subjetivo seja utilizado como instrumento de barganha diante da conjuntura do jogo político-partidário no âmbito das Casas Legislativas.

[C]olocada, nesses termos, pelo Supremo Tribunal, a questão acerca da irregularidade e da inconstitucionalidade da tramitação de um projeto de lei ou de uma proposta de emenda constitucional acabaria sendo reduzida a um interesse particular e exclusivo dos deputados e senadores, enquanto “condições para exercício de sua [sic] atividade parlamentar”, e jamais referida à produção da lei como afeta à cidadania em geral.

[...]

No Brasil, essas posições assumidas pelo Supremo Tribunal Federal, competente para controlar a constitucionalidade da atuação (e da não-atuação) dos órgãos de cúpula do Estado, revelada por um entendimento jurisprudencial inadequado ao paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, têm levado, de uma perspectiva não somente normativa, mas também objetiva, ao surgimento de verdadeiras ilhas corporativas de discricionariedade, o que estará resultando numa quase total ausência de parâmetros normativos, abrindo espaço, dessa forma, para um exercício cada vez mais arbitrário do poder político.[38] (grifo no original)

Como exposto por José Alcione Bernardes Júnior e Leonardo Augusto de Andrade Barbosa, o sistema jurídico-constitucional conformado pela Carta Cidadã de 1988 “consagra não a supremacia do Parlamento, mas, sim, a supremacia da Constituição, em cujo bojo se aloja o princípio fundamental do devido processo legal”[39]. Portanto, não se pode compreender a atuação do Poder Legislativo em matéria de produção de atos normativos como algo supremo, indene de controle institucionalizado diante de eventuais discricionariedades e até mesmo arbitrariedades cometidas sob o manto do “jogo político”.

A garantia de uma esfera jurídica privativa do parlamento não serve mais à afirmação da soberania do Poder Legislativo, cuja atividade encontra-se vinculada à Constituição. O espaço de discricionariedade que remanesce reservado às legislaturas atende não à hierarquização dos poderes estatais, mas ao equilíbrio entre eles. A independência do espaço no qual se institucionaliza a formação da vontade política, por sua vez, não é uma mera garantia institucional do Congresso, mas uma garantia do próprio regime democrático. Dessa forma, a crítica à doutrina dos atos interna corporis não se confunde com um tipo de questionamento da independência do Poder Legislativo ou, ainda, com a defesa de sua submissão ao Judiciário, que funcionaria como um suposto “poder neutro” ou “moderador”. Pelo contrário, essa crítica procura identificar as condições nas quais se afirma a independência da legislatura, ou seja, seus limites constitucionais.[40]

O constante alargamento da noção do que seja matéria interna corporis obscurece, com esteio nos constructos procedimentalistas de Jürgen Habermas, a compreensão das normas regimentais como materialização das condições procedimentais assecuratórias de um jogo argumentativo, em que seja garantida a participação de todos os envolvidos no processo decisório[41], o que caracteriza o Estado Democrático de Direito.

Ao manter a hodierna linha de pensamento, o STF, por via indireta, não assume seu papel no Estado Democrático de Direito na qualidade de Corte Constitucional e salvaguarda do princípio democrático. Ademais, ao se limitar a exercer a jurisdição nas situações de literal e direto desrespeito às normas procedimentais inseridas no texto constitucional, confere ao arbítrio da maioria a definição do substancial procedimento legislativo a ser observado, contemplando, inclusive, sob o pálio do recurso denominado “acordo de lideranças”, eventuais excepcionalidades que constituem flagrante supressão do direito das minorias parlamentares.

Anote-se que tal panorama poderá contribuir para a derrocada do núcleo essencial do princípio democrático, porquanto estar-se-á legitimando uma espécie de ditadura da maioria ao suprimir a garantia da minoria em ver devidamente observadas as regras regimentais e as finalidades decorrentes da Constituição concernente à identificação do processo legislativo com a ideia de democracia deliberativa.

Com efeito, evidencia-se a suma importância de uma regulação imparcial e racional dos regimentos e das práticas procedimentais adotadas pelas Casas Legislativas para que cumpram sua finalidade constitucional de disciplinar o processo de produção normativa, garantindo as condições comunicacionais e negociais necessárias para o debate público mais democrático possível[42].

É o processo legislativo o núcleo central do regime constitucional no Estado Democrático de Direito, tendo por propósito básico promover a integração da sociedade. Logo, o Direito não deve limitar-se a mera “densificação de princípios sociais universais na pluralidade das eticidades substantivas das organizações políticas concretas”[43], devendo fazê-lo de tal modo que “os destinatários de suas normas possam reconhecer-se como coautores das mesmas”[44]. E tal possibilidade de reconhecimento é garantida pela observância do procedimento de formação normativa cujas balizas são estabelecidas e estruturadas pela Constituição. Com efeito, “somente as condições processuais para a gênese democrática das leis assegura a legitimidade do Direito”[45]. Daí a imprescindibilidade da atuação dos tribunais constitucionais para garantir a observância pelo Poder Legislativo dos pressupostos comunicativos e as condições procedimentais do processo de legislação democrático. Trata-se, na formulação de John Hart Ely, do papel do Poder Judiciário de desobstrução dos canais de mudança política e desbloqueio dos impasses democráticos, in verbis:

A linha de decisão judicial constitucional que aqui recomendo é análoga ao que seria, nos assuntos econômicos, uma orientação ‘antitruste’, entendida como oposta a uma orientação ‘reguladora’ – em vez de ditar resultados substantivos, ela intervém apenas quando o ‘mercado’, neste caso o mercado político, está funcionando mal de modo sistêmico. (Também é cabível uma analogia com um árbitro de futebol: o juiz deve intervir somente quando um time obtém uma vantagem injusta, não quando o time ‘errado’ faz gol.) Não é justo dizer que o governo está ‘funcionando mal’ só porque às vezes ele gera resultados com os quais discordamos, por mais forte que seja nossa discordância (e afirmar que ele obtém resultados de que ‘o povo’ discorda – ou de que discordaria, ‘se compreendesse’ – na maioria das vezes é pouco mais que uma projeção delirante). Numa democracia representativa, as determinações de valor devem ser feitas pelos representantes eleitos; e, se a maioria realmente desaprová-los, poderá destituí-los através do voto. O mau funcionamento ocorre quando o processo não merece nossa confiança, quando (1) os incluídos estão obstruindo os canais da mudança política para assegurar que continuem sendo incluídos e os excluídos permaneçam onde estão, ou (2) quando, embora a ninguém se neguem explicitamente a voz e o voto, os representantes ligados à maioria efetiva sistematicamente põem em desvantagem alguma minoria, devido à mera hostilidade ou à recusa preconceituosa, em reconhecer uma comunhão de interesses – e, portanto, negam a essa minoria a proteção que o sistema representativo fornece a outros grupos.

É óbvio que nossos representantes eleitos são as últimas pessoas a quem devemos confiar a identificação de qualquer uma dessas situações. Os juízes nomeados, no entanto, estão relativamente à margem do sistema governamental e só indiretamente precisam preocupar-se com a permanência no cargo. Isso não lhes dá um canal de acesso especial aos valores genuínos do povo norte-americano: na verdade, pelo contrário, praticamente assegura que não terão esse acesso. No entanto, isso também lhes dá condições de avaliar objetivamente – embora ninguém possa dizer que a avaliação não estará cheia de decisões discricionárias tomadas no calor do momento – qualquer reclamação no sentido de que, quer por bloquear os canais de mudança, quer por atuar como cúmplices de uma tirania da maioria, nossos representantes eleitos na verdade não estão representando os interesses daqueles que, pelas normas do sistema, deveriam estar[46]. [grifou-se]

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No tocante às eventuais críticas quanto a uma pretensa invasão do Judiciário na esfera de autonomia dos demais Poderes, pondera Jürgen Habermas:

[A] constituição determina procedimentos políticos, segundo os quais os cidadãos, assumindo seu direito de autodeterminação, podem perseguir cooperativamente o projeto de produzir condições justas de vida (o que significa: mais corretas por serem equitativas). Somente as condições processuais da gênese democrática das leis asseguram a legitimidade do direito. Partindo dessa compreensão democrática, é possível encontrar um sentido para as competências do tribunal constitucional, que corresponde à intenção da divisão de poderes no interior do Estado de direito: o tribunal constitucional deve proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos. O esquema clássico da separação e da interdependência entre os poderes do Estado não corresponde mais a essa intenção, uma vez que a função dos direitos fundamentais não pode mais apoiar-se nas concepções sociais embutidas no paradigma do direito liberal, portanto não pode limitar-se a proteger os cidadãos naturalmente autônomos contra os excessos do aparelho estatal. A autonomia privada também é ameaçada através de posições de poder econômicas e sociais e dependente, por sua vez, do modo e da medida em que os cidadãos podem efetivamente assumir os direitos de participação e de comunicação de cidadãos do Estado. Por isso, o tribunal constitucional precisa examinar os conteúdos de normas controvertidas especialmente no contexto de pressupostos comunicativos e condições procedimentais do processo de legislação democrático. Tal compreensão procedimentalista da constituição imprime uma virada teórico-democrática ao problema de legitimidade do controle jurisdicional da constituição[47]. [grifou-se]  

Desponta, assim, o fundamental papel do Supremo Tribunal Federal enquanto bastião dos interesses contramajoritários, fazendo evocar sua função de guardião da Constituição e, desse modo, avançar na compreensão de complementariedade da democracia e constitucionalismo, criando condições para a observância de um procedimento de formação de leis efetivamente democrático e participativo.

De frisar, numa palavra, que, no processo constitucional, não se trata de justificar a validade das normas jurídicas legislativas, mas, sim, de averiguar a constitucionalidade e regularidade do processo legislativo, aplicando a Constituição. Há aqui uma diferença inafastável do modo e da finalidade dos processos constitucional legislativo e jurisdicional constitucional, numa reinterpretação constitucionalmente adequada ao princípio da separação dos poderes[48].

Por conseguinte, na esteira dos constructos procedimentalistas, seria necessária a revisão dos pressupostos teóricos que sustentam a jurisprudência atual do Supremo sobre o assunto. Ao relegar a problemática concernente à observância das normas regimentais ao âmbito dos atos interna corporis, a Corte nega o status constitucional de tais disposições normativas, ignorando que as normas que fixam o procedimento de formação legislativa constituem comandos normativos densificadores de princípios de ordem constitucional, em especial, o princípio democrático.

O judiciário, enquanto controle contramajoritário, exerce um papel fundamental para a própria configuração da democracia em contraposição a uma ditadura da maioria. No entanto, os riscos são extremamente significativos se a norma e valor são assumidos como termos indistintos. Um determinado Tribunal pode também se assumir como o responsável direto pela implementação dos valores concretos dessa comunidade e, a esse título, assumir o papel não somente de legislativo, mas de constituinte permanente, sem ter sido eleito por ninguém. O resgate da perspectiva deontológica que informa o enfoque da questão de um autor como Ronald Doworkin e o olhar daqueles que os norte-americanos denominariam mais genericamente de democratas, é aqui imprescindível e essencial para que se possa evitar a privatização da própria Constituição, passível de ser considerada propriedade daqueles que deveriam guardar precisamente o seu caráter público, ou seja, garantir que ela operasse como a regência de uma associação de homens livres e iguais, que vivem sob a égide das leis que fizeram para si próprios. [49]

A partir da formulação procedimentalista apresentada no presente tópico, a inatividade traduz uma opção ideológica da Suprema Corte condescendente com a “privatização” do processo legislativo e o domínio dos negócios políticos pela maioria circunstancial e, dessa forma, mesmo quando provocado, ao ignorar a lesão ao princípio democrático, deixa de conferir supremacia à Constituição.

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Sobre o autor
Victor Aguiar Jardim de Amorim

Doutorando em Constituição, Direito e Estado pela UnB. Mestre em Direito Constitucional pelo IDP. Coordenador do Curso de Pós-graduação em Licitações e Contratos Administrativos do IGD. Professor de pós-graduação do ILB, IDP, IGD, CERS e Polis Civitas. Por mais de 13 anos, atuou como Pregoeiro no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (2007-2010) e no Senado Federal (2013-2020). Foi Assessor Técnico da Comissão Especial de Modernização da Lei de Licitações, constituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal nº 19/2013, responsável pela elaboração do PLS nº 559/2013 (2013-2016). Membro da Comissão Permanente de Minutas-Padrão de Editais de Licitação do Senado Federal (desde 2015). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA). Advogado e Consultor Jurídico. Autor das obras "Licitações e Contratos Administrativos: Teoria e Jurisprudência" (Editora do Senado Federal) e "Pregão Eletrônico: comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019" (Editora Fórum). Site: www.victoramorim.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Victor Aguiar Jardim. O controle jurisdicional dos atos parlamentares: a (in)sindicabilidade da decisão interna corporis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4549, 15 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43596. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Artigo elaborado sob a supervisão do Prof. Dr. Gilmar Mendes, como requisito de avaliação parcial da disciplina “Jurisdição Constitucional” do programa de Mestrado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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