1) Introdução
O enunciado 44, aprovado na 1ª Jornada de Direito Comercial, expressa que a homologação do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao controle judicial da legalidade pelo magistrado. Posto isso, entende-se que o magistrado não é obrigado a deferir o plano de recuperação judicial, total ou em parte, que contenha cláusula ou princípios que vão contra a lei.
“44. A homologação de plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao controle judicial de legalidade”.
Especificado o tema, estudar-se-á o procedimento da homologação da Recuperação Judicial, inclusive a autonomia da Assembleia Geral de Credores neste procedimento e a função do Poder Judiciário quanto ao controle da legalidade do plano.
2) Procedimento para a homologação do plano de Recuperação Judicial
Faz-se mister esclarecer em qual etapa da recuperação judicial o emprego do enunciado 44 se mostrará útil. O processo da recuperação judicial é inaugurado com a fase do processamento, ou fase postulatória, que se inicia com a petição inicial de recuperação judicial, a qual deve ser instruída de acordo com o artigo 51, da Lei 11.101/2005, e se encerra com o despacho judicial que defere o processamento da recuperação judicial. Os requisitos para o deferimento são objetivos, portanto o juiz não pode indeferir o pedido pelo simples fato de não acreditar que tal recuperação judicial surtirá efeito, estando este vedado de realizar qualquer juízo de valor a respeito da viabilidade econômica do plano.
Se a pessoa legitimada para requerer a recuperação judicial instruir adequadamente o pedido, a fase postulatória se encerra com dois atos judiciais: a petição inicial e o despacho que manda processar a recuperação. Se a instrução do pedido não tiver observado a lei, pode arrastar-se o processo pelo período solicitado para a apresentação de documentos ou por determinação do juiz, com base na legislação processual civil, de emenda da petição inicial.
Em princípio, o devedor não tem interesse no retardamento da fase postulatória, na medida em que ele começa a usufruir mesmo dos benefícios do instituto apenas após o despacho de processamento da recuperação judicial. Mas se o juiz considerar que o requerente está deliberadamente procrastinando o feito, poderá fixar-lhe prazo peremptório para a adequada instrução do pedido, advertindo-o de que decretará a falência na hipótese de descumprimento.
Deferido o processamento da recuperação judicial, dá-se início à fase do plano, ou fase deliberativa, na qual a empresa em recuperação tem o prazo de 60 (sessenta) dias para apresentar o plano de reorganização, contados da publicação do despacho de deferimento do processamento. O principal objetivo dessa fase é a votação do plano de recuperação da empresa do devedor. Para que essa votação se realize, porém, como providência preliminar, procede-se à verificação dos créditos, tendo como finalidade legitimar a participação da Assembleia Geral de Credores, a qual irá aprovar ou não o plano de recuperação judicial.
A mais importante peça do processo de recuperação judicial é, sem sombra de dúvidas, o plano de recuperação judicial. Depende exclusivamente dele a realização ou não dos objetivos associados ao instituto, quais sejam, a preservação da atividade econômica e o cumprimento da função social da empresa, conforme versa o artigo 47, da Lei 11.101/2005. Se o plano de recuperação é consistente, há chances de a empresa se reestruturar e superar a crise em que mergulhara, mas se o plano for inconsistente, ele cumprirá apenas mera formalidade processual e os objetivos do instituto não serão alcançados. O plano deve conter a discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados, a demonstração da viabilidade econômica e o laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor (artigo 53, da Lei 11.101/2005).
Após o requerente da recuperação judicial apresentar em juízo seu plano, é publicado o edital para conhecimento dos credores. No prazo de 30 (trinta) dias, contados após a apresentação da lista de credores pelo administrador judicial, qualquer credor pode apresentar objeção ao plano elaborado pelo devedor. O juiz deve, então, convocar a Assembleia Geral de Credores para discutir e votar o plano de reorganização da empresa, eventuais planos alternativos, bem como as objeções aduzidas. É importante salientar que, se nenhum credor apresentar objeções, presume-se que todos, tacitamente, aceitaram o plano de recuperação judicial apresentado, não sendo necessário, portanto, realizar a Assembleia Geral de Credores para aprovar o plano.
Se nenhum plano tiver sido aprovado, a rejeição é transmitida ao juiz, para que ele decrete a falência do requerente. Por outro lado, aprovado um plano de reorganização pelos credores reunidos em Assembleia, com atendimento ao quórum de deliberação estabelecido no artigo 45, da Lei 11.101/2005, o administrador judicial tem prazo de 48 (quarenta e oito) horas para apresentar em juízo a ata da Assembleia Geral de Credores, a ser homologada pelo juiz, que, então, concederá a recuperação judicial. É nesse exato momento em que verificamos a aplicabilidade do enunciado 44.
3) Cram down:
Como vimos acima, os credores possuem a atribuição de deliberar, colegiadamente, sobre a aprovação ou rejeição do plano de recuperação judicial. Entretanto, a decisão proveniente da votação não tem caráter absoluto, em especial quando há reprovação da proposta pela Assembleia Geral de Credores. A Lei de Falências e Recuperação de Empresas, nos termos do artigo 58, §§ 1º e 2º, estabelece que o juiz poderá conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na forma do artigo 45 da mesma lei.
Para que isso ocorra, é necessário que sejam cumpridas determinadas condições: (i) aprovação de mais da metade dos representantes do valor de todos os créditos presentes, independentemente da classe; (ii) aprovação de duas classes de credores, ou de pelo menos uma, caso haja somente duas classes votantes, de acordo com os critérios estabelecidos nos parágrafos do artigo 45; (iii) aprovação mínima de mais de 1/3 (um terço) dos credores da classe que houver rejeitado o plano, de acordo com os critérios estabelecidos nos parágrafos do artigo 45; e (iv) não implicar o plano em tratamento diferenciado entre os credores da classe que o rejeitaram.
Desta medida surgiu o nome Cram Down, derivado da doutrina norte-americana, termo que lembra imposição, ou seja, os credores são obrigados a se submeter ao plano aprovado pelo juiz, independente de sua hesitação. Esse instituto descarta os votos que rejeitaram o plano, pois o juiz, visando viabilizar a superação da situação da crise econômico-financeira do devedor e com isso preservar a empresa, sua função social e o estímulo à atividade economia, atendendo, ainda, os requisitos supramencionados, aprova o referido plano aduzindo a medida judicial e dissolvendo o repúdio manifestado pelos credores.
Essa é a única hipótese em que, com base na viabilidade econômica, o magistrado está autorizado a realizar juízo de valor acerca do plano de recuperação para determinar sua aprovação, uma vez que ele poderá conceder a recuperação judicial e aprovar o plano ainda que esse tenha sido rejeitado pela Assembleia Geral de Credores, a qual deverá se conformar com sua decisão e se submeter ao plano.
4) Enunciado 44
Independentemente da opinião do juiz a respeito da viabilidade econômica do plano de recuperação, ele não pode se recusar a homologar a ata da Assembleia que aprovou o plano, uma vez que ele deve respeitar a vontade dos credores, os quais tem o direito de escolher fazer o que bem entenderem com seus créditos, já que a discussão aqui é patrimonial, tratando-se, portanto, de direitos disponíveis. Contudo, é possível que o juiz não homologue a ata por outros motivos, que serão apresentados adiante.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXV, determina que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito. Portanto, culminado com o entendimento do enunciado 44, verifica-se que o fato do plano de recuperação judicial ter sido aprovado pela Assembleia Geral de Credores não garante e nem retira a legitimidade do magistrado e do Ministério Público verificar a legalidade do mesmo.
A Lei 11.101/2005, por meio de seu artigo 56, §3º, garante à Assembleia Geral de Credores amplos poderes para modificar o plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor, desde que este último expresse sua concordância em relação às modificações. Esse entendimento criou um debate em relação ao tipo de poder que a Assembleia Geral de Credores possui e se suas decisões podem ser mitigadas, devido à autonomia que esse órgão recebe no procedimento de recuperação judicial.
Diversos julgados concedem amplos poderes aos credores para aprovar o plano de recuperação, tal como o Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (Apelação Civil no 46.989/2007)[2].
Por outro lado, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento do Agravo de Instrumento no 0136362-29.2011.8.26.0000[3], relativizou a autonomia da vontade dos credores para determinar a apresentação de novo plano de recuperação judicial, sob pena de decretação de falência por descumprimento do disposto na lei 11.101/2005.
Importante ressaltar, ainda, o voto da Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial no 1.314.209 – SP (2012/0053130-7)[4], que considerou nula cláusula do plano de recuperação da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool que dava amplos poderes à empresa para revisar ou até rescindir contratos já existentes, aprovado em Assembleia Geral, fundamentando que a obrigação de respeitar o conteúdo da manifestação de vontade dos credores não impede o judiciário de promover o controle quanto à licitude das providências decididas em assembleia, in verbis:
A vontade dos credores, ao aprovarem o plano, deve ser respeitada nos limites da Lei. A soberania da assembleia para avaliar as condições em que se dará a recuperação econômica da sociedade em dificuldades não pode se sobrepujar às condições legais da manifestação de vontade representada pelo Plano.[5]
Nesta linha, Jorge Lobo destaca entendimento sobre a função do magistrado no processo de recuperação judicial:
Incumbe-lhe, ademais, dependendo do caso concreto, exercer controle de mérito, tanto do plano de recuperação quanto da decisão da assembleia geral de credores, como, por exemplo, quando: a) a deliberação for por maioria e os dissidentes hajam deduzido objeções e votos divergentes; b) a deliberação for contrária à aprovação do plano e o devedor haja apresentado defesa e postulado a anulação do conclave por fraude à lei, abuso de direito, preterição de formalidade essencial... [6]
Nesse trecho dos ensinamentos desse grande jurista, conclui-se que, apesar da enorme importância que o plano de recuperação judicial possui para que os objetivos associados ao instituto sejam alcançados, o Poder Judiciário deve se restringir à análise da legalidade do plano, e não questionar seu mérito. Em outras palavras, o magistrado não deve analisar e julgar a vontade manifestada pelos credores presentes na Assembleia Geral de forma a preservar a empresa, uma vez que a constatação da viabilidade econômica do plano de reestruturação não compete ao juiz.
Por sua vez, o Ministro Luis Felipe Salomão especifica no julgamento do Recurso Especial no 1.359.311 – SP (2012/0046844-8)[7], que a interferência do judiciário só poderia ocorrer como forma de evitar fraudes e abusos de direito. Desta forma, tornou-se mais claro qual é o alcance do controle da legalidade pelo Judiciário, aprimorando o entendimento supramencionado da Ministra Nancy Andrighi.
Neste sentido, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que a avaliação da viabilidade econômica da companhia é um direito exclusivo da Assembleia Geral de Credores, responsável pela aprovação dos planos de recuperação, como dita a lei de falências e recuperação judicial. Portanto, a ação do magistrado é mitigada exclusivamente a casos específicos, não tendo esse a discricionariedade para agir por livre arbítrio. Conforme trecho do voto do referido Ministro:
Deveras, o magistrado não é a pessoa mais indicada para aferir a viabilidade econômica de planos de recuperação judicial, sobretudo daqueles que já passaram pelo crivo positivo dos credores em assembleia, haja vista que as projeções de sucesso da empreitada e os diversos graus de tolerância obrigacional recíproca estabelecida entre credores e devedor não são questões propriamente jurídicas, devendo, pois, acomodar-se na seara negocial da recuperação judicial.[8]
Tais precedentes trazem segurança jurídica que beneficia tanto a empresa devedora quanto seus credores e clientes.
Não é por outro motivo que, confirmando as informações apresentadas acima, foi editado o enunciado 46, também aprovado na 1ª Jornada de Direito Comercial, que diz: “não compete ao juiz deixar de conceder a recuperação judicial ou de homologar a extrajudicial com fundamento na análise econômico-financeira do plano de recuperação aprovado pelos credores”. Podemos observar claramente que, enquanto o enunciado 44 prevê amplos poderes ao magistrado, o enunciado 46 atua como um sistema de contrapeso ao estabelecer limites na atuação do juiz quanto à homologação de um plano aprovado pelos credores.
Em situação na qual o plano aprovado é livre de vícios, a Assembleia Geral de Credores é dita “soberana”, já que a ela competirá a deliberação a respeito da viabilidade da empresa e da proposta comercial apresentada. É nesse sentido, portanto, que se fala em “Soberania da Assembleia”. Ou seja, em princípio, é a Assembleia Geral de Credores a titular da competência para a constatação de viabilidade do empreendimento e da análise da proposta comercial.
Porém, o cenário muda quando o plano de recuperação judicial contém nulidades, pois o Judiciário não apenas está autorizado, como deve realizar o controle de legalidade do plano, pois não faz sentido conceber o plano como um ato jurídico imune ao controle pelo Judiciário.
Ou seja, à Assembleia compete a análise de viabilidade da empresa, assim como do conteúdo econômica do plano, já ao Judiciário compete o controle de sua validade. Sobre o controle judicial do plano, vale ainda destacar forte inclinação da jurisprudência pela possibilidade, inclusive, de as nulidades serem pronunciadas de ofício pelo Poder Judiciário, conforme verificamos o posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no julgamento do agravo de instrumento nº 2090813-54.2014.8.26.0000[9].
Tendo isso em vista, pode-se firmar, sem dúvida, a seguinte premissa: plano de recuperação judicial que contenha nulidade, mais cedo ou mais tarde, tem destino certo, que é a declaração de sua invalidade, seja de ofício ou mediante requerimento, seja em primeiro grau de jurisdição ou em grau recursal.
Por isso é que parece não só possível, como necessário, realizar uma espécie de controle prévio de validade do plano de recuperação judicial, a ser feito antes da realização da Assembleia Geral de Credores. Com a eventual invalidação do plano, tem sido determinada ao devedor sua reelaboração. Ou seja, após o reconhecimento da irregularidade contida no plano, o processo volta praticamente ao início, com nova publicação de editais, prazo para objeção, convocação da assembleia, etc.
Dessa forma, é visível que a futura e certa declaração de nulidade do plano de recuperação judicial prejudicará todos os envolvidos: credores, devedor, administrador judicial e o próprio Judiciário, a quem compete zelar pelo bom andamento do feito. Não bastasse isso, outro argumento serve para sustentar a tese de controle prévio: a Assembleia Geral de Credores não é um órgão técnico-jurídico. Ou seja, ela não tem, em princípio, aptidão para fazer o controle de legalidade do plano. Eventualmente, credores podem até questionar disposições do plano, entretanto não têm eles, nem o administrador judicial que preside a Assembleia, competência jurídica para declarar a nulidade do plano.