A prisão em flagrante nos crimes com pena não superior a 4 anos e nos culposos:uma ofensa a dignidade da pessoa humana

20/10/2015 às 20:27
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Sendo vedada a prisão preventiva, bem como, a prisão após a sentença condenatória aos agentes que praticaram crimes culposos ou com pena em abstrato igual ou inferior a 4 anos, como é possível a prisão em decorrência de flagrante de delito destes agentes?

INTRODUÇÃO

Encontra-se consolidado na atual ordem jurídica a excepcionalidade da prisão, especialmente a de caráter processual. A excepcionalidade encontra-se em sintonia com os postulados da dignidade da pessoa humana e presunção de não-culpabilidade (presunção de inocência).

Nesse diapasão, para resguardar a excepcionalidade da prisão a lei processual elegeu alguns requisitos a sua decretação e criou hipóteses legais de cabimento, havendo vedação a prisão preventiva nos crimes culposos e, via de regra, naqueles com pena em abstrato igual ou inferior a 4 anos. No mesmo vértice, a lei penal dispõe que o apenado a crimes com pena neste patamar poderá iniciar o cumprimento da pena em regime aberto, sendo que apenas lhe será atribuída um regime mais gravoso se as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal lhe forem desfavoráveis.

No entanto, surge uma questão pontual: se é vedada, salvo casos extraordinários, a prisão preventiva, bem como, a prisão após a sentença condenatória, aos agentes que praticaram crimes culposos ou com pena em abstrato igual ou inferior a 4 anos, como é possível a prisão em decorrência de flagrante de delito destes agentes?

Para se discutir o assunto adotou-se a construção de uma linha lógica, sendo o primeiro passo a discussão da aplicação da prisão, seguindo o estudo pela prisão em flagrante, principalmente sua natureza de medida precautelar, para então se construir uma resposta adequada ao questionamento.


HIPÓTESES AUTORIZADORAS DA PRISÃO

A prisão pode ocorrer em duas circunstâncias: a chamada prisão processual, de natureza cautelar, e a denominada prisão-pena, de cunho sancionatório (efetuada por forca de sentença condenatória).  A sentença penal condenatória fixa uma pena, que poderá́ ser privativa de liberdade, restritiva de direitos (em substituição à primeira) e/ou de multa.

Como sanção, a pena privativa de liberdade retira do condenado seu direito de locomoção por tempo determinado. Há três espécies de penas privativas de liberdade: reclusão e detenção, relativas a crimes (CP, art. 33, caput), e prisão simples, inerente às contravenções penais (LCP, art. 5.º, I).

Sob outro vértice, a prisão existente antes do trânsito em julgado será considerada prisão processual, podendo ocorrer em três hipóteses: a prisão preventiva, a temporária e a decorrente de flagrante de delito. Destaca-se que, seguindo parcela substancial da doutrina, a prisão em flagrante é de natureza precautelar, pois independe de ordem judicial.

Sublinhe-se apenas que a prisão temporária possui condições e requisitos impares, motivo pelo qual não é objeto deste estudo.

A PRISÃO PREVENTIVA

A prisão preventiva pode ser decretada em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, sua decretação depende da conjunção da existência da necessidade da medida e de sua adequação, junto a presença da prova da materialidade e de indícios de autoria e da adequação fática a uma das modalidades de prisão preventiva, quais sejam, garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, para assegurar a aplicação da lei penal.

Por fim, devem ser observadas as regras do art. 313 do Código de Processo Penal:

Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será́ admitida a decretação da prisão preventiva:

I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;

II – se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto- -Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal;

III – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

Parágrafo único. Também será́ admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer ele- mentos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.

Desta forma extrai-se - do inciso I - que a prisão preventiva é vedada as contravenções penais e aos crimes culposos, bem como aos acusados dá pratica de delitos dolosos cuja pena máxima prevista em abstrato seja inferior ou igual a 4 anos, ou seja, se o réu for primário, e a pena máxima em abstrato cominada para o delito praticado for igual ou inferior a 4 anos, o juiz não terá amparo legal para decretar a prisão preventiva. É uma cláusula legal objetiva.

  Sob outro vértice, é imperioso destacar que a prisão poderá ser decretada em crimes com pena em abstrato igual ou inferior a 4 anos quando o agente for reincidente, se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência e quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando está não fornecer ele- mentos suficientes para esclarecê-lá. Entretanto, estas hipóteses impares não afetam impossibilidade da prisão preventiva como regra geral.

A PRISÃO COMO SANÇÃO PENAL

No sistema penal brasileiro as finalidades da pena devem ser buscadas pelo condenado e pelo Estado, com igual ênfase à retribuição e à prevenção. Em virtude desta natureza, nem toda pena privativa será cumprida em regime fechado, pois, dependendo dos fatores reincidência, quantidade da pena e circunstâncias judiciais (art. 33, §§ 2º e 3º, do Código Penal) a pena de reclusão deve ser cumprida inicialmente em regime fechado, semiaberto ou aberto (CP, art. 33, caput, 1.ª parte) e a pena de detenção deve ser cumprida inicialmente em regime semiaberto ou aberto (CP, art. 33, caput, in fine).

Os critérios para a determinação do regime nos crimes apenados com recursão encontram-se nas alíneas do § 2.º do art. 33 do Código Penal:

a)   o reincidente inicia o cumprimento da pena privativa de liberdade no regime fechado, independentemente da quantidade da pena aplicada.

b)   o primário, cuja pena seja superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la no regime fechado;

c)   o primário, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto; e

d)   o primário, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.

É possível, todavia, seja imposto em relação ao condenado primário um regime inicial mais rigoroso do que o permitido exclusivamente pela quantidade da pena aplicada. Com efeito, dispõe o art. 33, § 3.º, do Código Penal: “A determinação do regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com observância dos critérios previstos no art. 59 deste Código”. Destarte, se as circunstâncias judiciais do art. 59, caput, do Código Penal forem desfavoráveis ao condenado o magistrado poderá lhe impor uma sanção mais gravosa. Porém, insta sublinhar a excepcionalidade desta determinação.

Sob outro vértice, o Superior Tribunal de Justiça, preocupado com a situação do reincidente, editou a súmula 269 aduzindo: “É admissível a adoção do regime prisional semiaberto aos reincidentes condenados a pena igual ou inferior a 4 (quatro) anos se favoráveis as circunstâncias judiciais”. A adoção do regime aberto passa a ser buscado pelas políticas criminais.

Sendo a pena de detenção, os critérios para fixação do regime inicial de cumprimento são os seguintes:

a)   o condenado reincidente inicia o cumprimento da pena privativa de liberdade no regime semiaberto, seja qual for a quantidade da pena aplicada;

b)   o primário, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos, deverá cumpri-la no regime semiaberto; e

c)   o primário, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la no regime aberto.

Portanto, observa-se, em suma, que o condenado a pena igual ou inferior a anos iniciará o cumprimento da pena, via de regra, no regime aberto. 


NATUREZA PRECAUTELAR DA PRISÃO EM FLAGRANTE

A prisão em flagrante não é medida cautelar, é uma prisão que consiste na restrição da liberdade de alguém, independente de ordem judicial, nas hipóteses estabelecidas no texto legal. Encontra-se em flagrante aquele agente que é surpreendido no momento da realização da conduta criminosa ou logo após tê-la pratico – considerado flagrante próprio – ou daquele que é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração – flagrante improprio - ou que é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração – flagrante presumido.

Atualmente, com a entrada em vigor da Lei 12.403/11, a prisão em não tem mais o condão de manter o réu preso ao longo da ação penal. O magistrado deve convertê-lá em prisão preventiva, de forma fundamentada, ou conceder a liberdade provisória, com ou sem as medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 319).

Ademais, segundo o art. 310 do código de processo penal:

Art. 310.  Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: 

I - relaxar a prisão ilegal; ou 

II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou 

III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Com a entrada em vigor da Lei 12.403/11, a natureza jurídica da prisão em flagrante passou a ter natureza de medida precautelar. Neste sentido, o professor Luiz Flávio Gomes (2011, p. 90) expõe que a prisão em flagrante é uma medida precautelar, porque não tem o escopo de tutelar o processo ou o seu resultado final, sim, ela se destina a colocar o preso à disposição do juiz, para que tome as providências cabíveis.

Neste ínterim, a prisão em flagrante destina-se a possibilitar a análise judicial da necessidade do encarceramento do agente ativo de um crime como medida de proteção do futuro processo. A prisão em flagrante tornar-se-ia prisão processual (cautelar) somente a partir do momento em que o juiz a converte em prisão preventiva. 


A INCONGRUÊNCIA ENTRE A PRISÃO EM FLAGRANTE E OS CRIMES APENADOS COM PENA MÁXIMA IGUAL OU INFERIOR A 4 ANOS.

Sendo a prisão em flagrante de delito é uma medida de restrição da liberdade precautelar, pois destina-se a estringir a liberdade de forma provisória. Uma vez recebida a comunicação ao judiciário caberá convertê-lá em prisão preventiva, de forma fundamentada, ou conceder a liberdade provisória, com ou sem as medidas cautelares diversas da prisão (art. 319). O fundamento de sua existência encontra-se unicamente na preparação para a decretação de uma medida cautelar.

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Desta feita, sendo o crime apenado com pena inferior a 4 anos não é possível a conversão da prisão em flagrante de delito em preventiva. O mesmo ocorre com crimes culposos e as contravenções penais.

Nada obstante, sendo o crime apenado com pena – em abstrato – igual ou inferior a 4 anos o agente deverá, em regra, iniciar o cumprimento da pena privativa de liberdade em regime aberto. A sua submissão a um regime mais gravoso exige a presença de circunstâncias excepcionais, os quais serão analisados pelo magistrado, de forma fundamentada, na dosimetria da pena.

A prisão em flagrante, nestas hipóteses, se torna extremamente gravosa ao agente, pois, ele será submetido ao encarceramento, na fase policial da persecução penal, enquanto nas fases posteriores esta possibilidade é afastada. Inclusive, por não ser possível a decretação da prisão preventiva do agente a prisão em flagrante, como medida precautelar, se torna extremamente desproporcional. Apenas será possível a conversão da prisão em flagrante em preventiva nos casos envolvendo violência doméstica ou ao reincidente.

O postulado da proporcionalidade (entendida como instrumento de controle contra os excessos dos poderes estatais) tem o seu conteúdo delimitado por três axiomas mas: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Assim, exige-se, na restrição da liberdade, uma adequação entre meios e fins impõe que as medidas adotadas, para serem consideradas proporcionais, sejam aptas a fomentar os objetivos almejados. A necessidade (ou exigibilidade), cujo metanorma impõe que, dentre os meios aproximadamente adequados para fomentar um determinado fim constitucional, seja escolhido o menos invasivo possível. Para passar pelo teste da necessidade, impõe-se uma dupla análise: primeiro, se existem medidas alternativas similarmente eficazes para fomentar o fim almejado; segundo, se tais medidas são menos gravosas que a efetivamente adotada.

Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito é a análise de contrapesos dos princípios que se contrapõem na adoção da medida. Para que um ato seja considerado desproporcional em sentido estrito, é preciso, somente, que os motivos que fundamentam a adoção deste ato não sejam “fortes” o suficiente para justificar a restrição do direito fundamental atingido. 

Deste lume, vislumbra-se uma flagrante violação ao postulado da proporcionalidade.

A prisão em flagrante daquele que não poderá ser submetido a prisão preventiva também ofende o princípio da dignidade humana, pois, traz – no âmbito administrativo que envolve a atividade policial – uma restrição à liberdade de locomoção exagerada.  Há violação sempre que o conteúdo essencial de um direito for afetado na medida em que sua restrição não for exigível ou a medida ocorrer além do necessário.


CONCLUSÃO

Tendo por norte a impossibilidade da prisão preventiva ao agente ao qual é imputada a prática de crime culposos ou com pena igual ou inferior a 4 anos, que não formem praticados em situação de violência doméstica ou por agentes reincidentes, é visível que a prisão em flagrante dos agentes aos quais são imputados crimes nestas circunstâncias viola o postulado da proporcionalidade, pois a medida não será adequada, necessária e proporcional em sentido estrito. As contravenções aplica-se o mesmo princípio.

Por estes fatos, a prisão em flagrante deve ser restringida as hipóteses em que seja juridicamente possível a decretação da prisão preventiva, ou seja, aos crimes apenados com pena máxima superior a 4 anos ou ocorridos em situação de violência doméstica e aos reincidentes. Diferente disto, o encarceramento do agente (nos crimes em que não é possível a prisão preventiva) fere a proporcionalidade esperada de todas as restrições aos direitos fundamentais.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GOMES, Luiz Flávio; MARQUES, Ivan Luís. Prisão e Medidas Cautelares. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

NUCC, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2014.

DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 9. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2013.

MAGNO, Levy Emanuel. Curso de Processo Penal Didático. São Paulo : Atlas, 2013.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1.

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Sobre o autor
Eduardo Borges

Delegado de Polícia Civil do Estado de Santa Catarina. Professor da UnC - Universidade do Contestado Bacharel em Direito e bacharelando em Administração de Empresas. Especialista em Segurança Publica e em Direito Processual Civil. Mestrando em Administração.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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