A colaboração premiada e algumas de suas implicações no processo penal pátrio

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Tecer-se-ão algumas sucintas - conquanto relevantes - ponderações acerca deste instituto que tem ganhado posição de destaque não só na seara jurídica, mas também nos principais meios de comunicação.

            Embora atualmente tenha tomado dimensões mais amplas, o instituto da deleção/colaboração premiada[3] não é tão novo como muitos pensam. Em matéria legislativa, ele já era existente desde a antiguidade, cite-se, por exemplo, seu ápice quando do surgimento das Ordenações Filipinas, em 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830.

            Contudo, não tão distante, é possível destacar que tal instituto passou a ter previsão expressa em lei ainda em 1990, com o advento da “conhecida” Lei dos Crimes Hediondos – 8.072/90.

            Acontece, entretanto, que o legislador não dera à delação, noutras épocas, o mesmo tratamento de hoje – leia-se: “prêmios”. Isso, indubitavelmente, foi fator preponderante para anonimato do instituto, que veio a público, por assim dizer, com a edição da Lei 12.850/13 – Lei das Organizações Criminosas.

            Nesse sentido, com ressalvas, é claro, a atual lei de Organizações Criminosas é, sem dúvida, a que melhor disciplinou esse tão “famoso” meio de obtenção de prova, que é a colaboração premiada – sim, a delação não é prova. Porém, não obstante seu maior regramento, inúmeros problemas advieram com sua implementação. Destarte, tendo em vista as inovações premiais implementadas graças às modificações legislativas, muitas discussões têm sido feitas, tanto no âmbito doutrinário quanto nos tribunais.

            Pois bem, feitas essas breves considerações, em apertada síntese, dentre muitas celeumas geradas na doutrina, far-se-ão, de modo bastante breve, algumas ponderações referentes a certos pontos específicos previstos no novel diploma.

Rapidamente, no que tange especificamente ao “acordo” – tema polêmico, visto as proporções que pode tomar –, pode-se afirmar ser ele um verdadeiro negócio jurídico processual. Isto porque a própria Lei nº 12.850/13 expressamente se refere a um “acordo de colaboração” e às “negociações” para a sua formalização, a serem realizadas “entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor” (art. 4º, § 6º), a confirmar que se trata de um negócio jurídico processual.

            Percebe-se, pois, que o juiz não pode, sob pena de quebra do sistema acusatório e consequente nulidade do pacto, participar das negociações (art. 4°, §6°).

Esse acordo, é bom destacar, tem gerado inúmeras discussões de grande densidade na seara jurídica, visto que nele se decidirão os prêmios ofertados ao colaborador. Entrementes, em virtude da amplitude do tema, não serão todas as controvérsias, por óbvio, objeto de análise desse pequeno texto. 

Nesse sentido, consoante o art. 4°, caput, da Lei 12.850/13, o juiz poderá, a requerimento das partes, conceder: (a) o perdão judicial, (b) reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade, (c) ou substituí-la por restritiva de direitos (ainda que não tenha preenchido os requisitos do art. 44, do CP) daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha alguns resultados previstos dos incisos I a V do referido diploma normativo.

Com efeito, não são somente esses os benefícios. É possível, outrossim, caso o colaborador seja o primeiro a “falar” e não desempenhe o papel de liderança na organização, até mesmo o não oferecimento da denúncia. Pode-se, ainda, flexibilizar a escolha do regime inicial de cumprimento de pena, bem como possibilitar a progressão para o regime menos severo, ainda que os requisitos objetivos não tenham sido preenchidos – isso já em fase de execução.

Portanto, com base no esposado, algumas assertivas podem ser formuladas, a saber:

  1. Como negócio jurídico processual, que é, o magistrado não intervirá, salvo para aferir questões de legalidade e voluntariedade do agente colaborador;
  2. Cabe às partes, MP e Colaborador, negociar o acordo. Afinal, não há um “acordo” de uma só manifestação de vontade. Se isso acontecer, ter-se-á verdadeira imposição de vontade, que deve(ria) gera(r), por consequência, a nulidade do pacto.
  3. Na negociação, em síntese, poderá haver:

c.1) diminuição de pena de um a dois terços;

c.2) substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos;

c.3) perdão judicial como causa extintiva da punibilidade;

c.4) sobrestamento do prazo para o oferecimento da denúncia ou suspensão do processo, com a consequente suspensão da prescrição; e, por fim,

c.5) não oferecimento da denúncia.

Em poucas palavras, esse é o quadro atual das possibilidades e inovações introduzidas com o advento da Lei 12.850/13. Todavia, há de se destacar que a lei, quando entra em vigor, deve observar o ordenamento jurídico posto (Constituição Federal, princípios norteadores do direito penal, do direito processual penal, enfim). Vale dizer, se assim não for, ter-se-á, ao invés de ordenamento jurídico, uma desordem jurídica, porquanto uma lei permite o que a outra proíbe. Em síntese, vira “bagunça”.

Pois bem, evidente que, pela proposta do texto e pela riqueza do tema, não se trará, aqui, a solução para todas as celeumas, o que, ao que se nota, demorará bastante a acontecer, haja vista os antagônicos sentimentos de “ódio e amor” que o instituto desperta.

Contudo, importantes, conquanto sucintas, ponderações serão traçadas doravante, a fim de esposar – embora evidentes – algumas incongruências que, de arrasto, vieram com a lei.        

  1. Ora, o Ministério Público não detém o jus puniendi estatal, vale dizer, não é ele detentor de uma pretensão punitiva, mas, sim, de uma pretensão acusatória (Aury Lopes Jr.). Logo, como podem MP e colaborador escolher qual benefício será aplicado, e tal trato vincular o juiz?
  2. Pode-se, entretanto, refutando o argumento supra, argumentar no sentido de que o acordo não vincula o magistrado. Neste caso, porém, pergunta-se: e como fica o colaborador? É um acordo ou uma aposta? Se não se sabe o que virá ao final, pode ser qualquer coisa, menos acordo!
  3. Ora, se o processo é regido pelo princípio da necessidade – nulla poena sine judictio –, como compreender que alguém, criminoso confesso, sequer responda a um processo penal, porquanto sua denúncia não foi ofertada? E o princípio da obrigatoriedade da ação penal, nestes casos, como fica?
  4. Ainda, como pode, por exemplo, um réu “colaborador”, condenado a 15 anos, cumprir sua pena em regime de prisão domiciliar (vide Operação Lava jato), enquanto aquele que furtou um celular ou uma bicicleta, sentenciado a uma pena bem inferior, pagará por seu ato em regime semiaberto ou fechado, a depender da situação?

Perceba, portanto, que, ao invés de respostas, trazem-se perguntas, haja vista a complexidade do tema, bem como o impacto que gera em todo sistema jurídico pátrio.

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Ademais, esclareça-se que, conquanto festejada, a colaboração premiada é uma TEI – Técnica Especial de Investigação – ou, como preferiu o legislador, um Meio De Obtenção De Prova. Não pode, destarte, ser ela vista como a panaceia de todos os males.

Nesse contexto, os órgãos estatais incumbidos da persecução penal devem, munidos de várias outras ferramentas disponíveis no ordenamento – embora tenha se tornado comum, não existe só a “Colaboração Premiada” –, cumprir com seus misteres, seja de investigar – Policias Federal e Civil –, seja acusar – Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal. Quem deve ter destaque na persecução, evidencia-se, é o Estado, e não o criminoso “colaborador”, que, quer queira quer não, é uma fonte impura, um agente delituoso que é premiado para (e por) acusar.

Em arremate, conclui-se que, em hipótese alguma, se pode admitir a privatização do Direito Penal, relegando-se ao “criminoso colaborador” o poder de “escolher”, a seu alvedrio, quem será investigado e, por consequência, responderá a um processo penal. Isto porque o titular da ação penal, rememore-se, ao invés do “Colaborador”, é o Ministério Público.


[3] Sobre a questão da terminologia, será desenvolvido um outro artigo.

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Sobre os autores
Valber Melo

advogado, especialista em direito penal e processual penal, direito público e ciências criminais. Doutorando em Direito pela Universidade Museo Social Argentino, Professor titular de Direito Processual Penal e Direito Penal da UNIC- Universidade de Cuiabá; do ESUD – Escola Superior de Direito de Mato Grosso, Professor de direito penal e processo penal do curso de pós-graduação do IDP - Instituto de Direito público, Professor de Direito Penal e Processual do Curso Preparatório Damásio de Jesus e da ESA- Escola Superior de Advocacia. Membro da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT e da Comissão de Direito Constitucional. Membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas.

Filipe Maia Broeto Nunes

Advogado Criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal, em nível de graduação e pós-graduação. Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal da PUC-Campinas. Mestre em Direito Penal (sobresaliente) com dupla titulação pela Escuela de Postgrado de Ciencias del Derecho/ESP e pela Universidad Católica de Cuyo – DQ/ARG. Mestrando em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Internacional de La Rioja – UNIR/ESP e em Direito Penal Econômico e da Empresa pela pela Faculdade de Direito da Universidade Carlos III de Madrid - UC3M/ESP. Especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e também Especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes - UCAM, em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM, em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes - UCAM e em Compliance Corporativo pelo Instituto de Direito Peruano e Internacional – IDEPEI e Plan A – Kanzlei für Strafrecht, Alemanha (Curso reconhecido pela World Compliance Association). Foi aluno do curso “crime doesn't pay: blanqueo, enriquecimiento ilícito y decomiso”, da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca – USAL/ ESP, e do Módulo Internacional de "Temas Avançados de Direito Público e Privado", da Universidade de Santiago de Compostela USC/ESP. Membro da Câmara de Desagravo do Tribunal de Defesa das Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso - OAB/MT; Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM; do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico - IBDPE; do Instituto de Ciências Penais - ICP; da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT; Membro efetivo do Instituto dos Advogados Mato-grossenses - IAMAT e Diretor da Comissão de Estudos Jurídicos da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim. Autor de livros e artigos jurídicos, no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected].

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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