RESUMO: Este artigo visa demonstrar a natureza jurídica da multa tributária. Muitos doutrinadores definem a multa tributária como sendo uma pena ao devedor seja pela sua mora seja pela infração cometida contra a ordem tributária que culmina em uma multa. Esta multa pode ser definida como uma cláusula penal compulsória que, porém extrapola os limites estabelecidos pelo Código Civil. Contudo observando a legislação de direito privado, nota-se que a cláusula penal possui caráter indenizatório. Logo enxerga-se este caráter à multa tributária. A multa, seja ela de mora, seja ela punitiva além de possuir caráter de penalidade, tem implícito em sua essência um caráter indenizatório, uma vez que devido à gravidade das infrações e condutas cometidas pelo contribuinte, estas presumem-se gerar danos ao Estado. Logo o legislador fiscal entendeu que devido aos atributos dos atos administrativos, e aos poderes inerentes à administração pública, o contribuinte tem o dever de indenizar o Estado sem o prévio processo de conhecimento para a apuração da suposta indenização, pois este valor já vem pré-fixado na multa devida.
INTRODUÇÃO
A ciência do Direito se subdivide em dois grandes ramos práticos nos quais há uma interseção a qual gera um terceiro grande ramo do direito. A dicotomia do direito público e do direito privado gera diversos questionamentos tanto de natureza objetiva como de natureza subjetiva. Os aspectos de natureza subjetiva são inerentes aos indivíduos os quais incidem as relações de direito público de direito privado. Já os aspectos de natureza objetiva são inerentes à imperatividade das normas, as quais no direito privado há uma maior flexibilização, diferentemente do que ocorre no direito público uma vez que todos os atos devem decorrer de Lei que o defina.
Sobre este tema Vicente Ráo[1] condensa estes dois aspectos:
Pretende-se, também, distinguir o direito público do direito privado, segundo o modo de proteção de suas respectivas normas, isto é, segundo o modo de fazê-las valer. Tal é o critério adotado por Augusto Thon. E assim se diz: no direito privado é ao indivíduo que compete atualizar e impor a defesa do seu direito, exercendo, ou não, a sua faculdade de, por meio da ação, invocar a proteção coercitiva dispensada pelo Estado; no direito público, porém, o Estado, por seus órgãos próprios, deve sempre prover à reintegração da norma que lhe diz respeito, quando violada. Ali, pois, uma faculdade; aqui, um dever. Semelhante critério, entretanto não define a natureza das normas de direito público, nem de direito privado; apenas destaca um seu elemento exterior, relativo, não ao conteúdo destas normas, mas à iniciativa da realização prática de sua observância.
Vicente Ráo ainda completa este raciocínio ao dizer que:
“pode o particular, por via de querela, iniciar o processo criminal, iniciativa que, em certos casos, só a ele compete; sabido também é que nas relações civis, que são relações de direito privado, ao Estado se faculta, mediante intervenção do Ministério Público, no direito de família e no das sucessões, impulsionar, em juízo, a defesa dos direitos dos menores, dos demais incapazes e dos ausentes, ou fazer respeitar a vontade dos testadores.
Ora, observa-se que há uma linha muito tênue que divide a dicotomia de direito público e direito privado. Ao observar os ramos do direito privado, quais sejam, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Consumidor Direito Trabalhista, enxergam-se diversas normas, especialmente nestes dois últimos, que possuem força de ordem pública, ou seja, normas que não possuem a flexibilização inerente ao direito privado. As normas relativas à responsabilidade civil também são normas que não admitem flexibilização, pois possuem imperatividade.
Logo as normas relativas responsabilidade civil, são normas imperativas, porém inerentes ao direito privado, e que possuem conceitos nos ramos de direito público, em especial no Direito Administrativo e no Direito Tributário. O Direito Civil empresta o conceito de responsabilidade civil ao definir a responsabilidade civil do estado, bem como a responsabilidade civil do contribuinte frente ao estado fisco. O Código de Defesa do Contribuinte teria o condão de definir a responsabilidade civil do estado-fisco frente ao contribuinte.
Porém, todos estes conceitos vêm emprestados do Direito Civil, que tem o condão neste caso de definir as normas gerais, e os demais ramos definir as normas específicas. Logo, o Código Civil pode ser aplicado subsidiariamente aos demais ramos do direito. E, seus conceitos podem ser aplicados a alguns institutos de direito público, em especial no direito tributário, objeto deste artigo.
A OBRIGAÇÃO COMO INSTITUTO DE DIREITO PRIVADO
A obrigação é um instituto de direito privado que tem o condão de expedir as normas gerais. As fontes da obrigação são a Lei, o contrato, o quase contrato, o delito e o quase delito. A Lei é definida com de vontade compulsória, inerente às relações de direito público. O contrato e quase contrato advém da vontade das partes, sendo que o primeiro é de vontade bilateral e o segundo de vontade unilateral. No caso do delito e do quase delito, estes advém das obrigações de restituir, que se originaram por meio de um ato ilícito, civil, criminal ou administrativo, culposo ou doloso.
Ora, diante de tais assertivas, vê-se que o Código Civil traz em seu bojo a obrigação de restituir por cometimento de ato ilícito[2], seja ele de ordem material ou moral. Há ainda o dano extrapatrimonial, que não será discorrido, porém gera a obrigação de indenizar. Deste modo, vê-se, portanto que o ato ilícito, mesmo que meramente culposo gera para seu infrator a obrigação de indenizar.
Contudo esta indenização não é plenamente executável. Ela tem que estar precedida de um processo de conhecimento prévio para passar a ter força de título executivo. Mesmo nos casos em que determinadas obrigações geram para si a conversão em perdas e danos, estas devem sofrer liquidação prévia, para poderem ser objetos de uma posterior execução judicial.
Analisando o Código Tributário Nacional, enxerga-se o seguinte: as normas tributárias possuem uma sistemática inerente às aplicações relativas aos institutos de direito público. Os critérios utilizados para interpretação demonstram esta ideia no art. 108 do Código Tributário Nacional senão vejamos:
Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:
I – a analogia;
II – os princípios gerais de direito tributário;
III – os princípios gerais de direito público;
IV – a equidade.
O legislador tributário completa no art. 109 do mesmo diploma ao dizer que “Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”.
Ora, logo se entende que é aceito a aplicação de princípios gerais de direito privado no direito tributário subsidiariamente, todavia não interferindo nos efeitos tributários. Ademais diante desta problemática observamos que a natureza jurídica da multa tributária é um tanto controversa. A doutrina geral, bem como a jurisprudência a entende como sendo uma penalidade inerente ao contribuinte.
A indenização tem natureza não apenas reparadora, mas possui em sua essência uma natureza jurídica de penalidade ao infrator, uma vez que esta gera o dever de reparar o dano, sob pena de condenação e posterior execução, constrição dos bens do infrator. Ora, a indenização, deste modo, não é autoexecutável. Exige-se seu conhecimento prévio em processo de conhecimento.
Os atos ilícitos geram ao infrator o dever de indenizar. A mora, quando acarreta em prejuízos ao credor, tanto de ordem moral como de ordem patrimonial, gera um dever de ser indenizado. A indenização independe da instituição dos encargos legais e contratuais inerentes à obrigação. Ela se perfaz independe disto. Porém a indenização deve ser arbitrada com base em um prévio processo de conhecimento que analisara seu cabimento ou não, e se seu valor encontra-se pertinente em face os danos sofridos pelo credor.
Tal instituto está contemplado nos arts. 404 caput e parágrafo único do mesmo artigo do Código Civil[3] que prevê a concessão de instituição de indenização suplementar caso os juros e a multa de mora não alcançarem o valor dos prejuízos sofridos pelo credor. Existe ainda na esfera contratual o instituto da Cláusula Penal, a qual assemelha-se com a multa tributária decorrente de uma infração tributária. Contudo pode-se enxergar diversas diferenças entre estes dois institutos, uma vez que um é referente a uma convenção entre as partes e outro é uma norma cogente.
CLAÚSULA PENAL E A PENALIDADE TRIBUTÁRIA: DA PRESUNÇÃO DOS DANOS CAUSADOS AO FISCO DEVIDO À INFRAÇÃO OU MORA DO CONTRIBUINTE
Contudo, não seria a cláusula penal uma indenização decorrente do descumprimento de uma obrigação contratual, tão compulsória – porém inerente da vontade das partes – quanto à multa fiscal decorrente de Lei? A multa fiscal tem natureza que vai além da penalidade, assim como a cláusula penal. A intenção do legislador ao instituir multas tributárias de caráter abusivo é necessariamente compor ao estado os prejuízos advindos pelo inadimplemento dos débitos fiscais por meio de infrações que além da mora são ilícitos que merecem ser reparados.
A diferença é que em ambos os institutos, tanto o da multa tributária como o da cláusula penal, não há a necessidade de haver comprovação e sua concessão por meio de mero processo de conhecimento, pois seriam indenizações autoaplicáveis[4].
Contudo, ainda há uma diferenciação entre a multa de cláusula penal e a multa tributária decorrente de infração. A primeira não pode exceder ao teor da obrigação principal[5] e a segunda não possui esta vedação.
Com relação às disposições relativas a contratos não cabem clausulas ditas como leoninas ou excessivamente onerosas. Porém ao direito tributário é permitido à Lei emanada na esferas dos três entes federativos estipular dispositivos leoninos em face do contribuinte. Dependendo da infração cometida pelo contribuinte, e seu potencial lesivo ao poder público.
Enxerga-se, portanto um caráter dúplice, misto, na multa tributária, fazendo com que essa se assemelhe ao instituto da cláusula penal, o que a faz ser além de uma mera penalidade, uma obrigação ao contribuinte restituir o fisco, por supostos danos causados. Entretanto, diferentemente da multa tributária, cabe discutir o cabimento da cláusula penal no caso da convenção inter partes. Doutro modo, a multa tributária se torna inaplicável, apenas se houver alguma excludente, ou demonstrado pelo contribuinte que não houve incidência nas elementares que incidam a multa, podendo apenas ser reconhecida em processo de conhecimento administrativo e/ou judicial.
Pode-se inferir, portanto que a multa tributária possui natureza, além de penalidade, indenizatória. Uma indenização, a qual o dano é presumido. Ademais a presunção não se admite prova em contrário. Apenas se admite a descaracterização da multa por meio da ausência da conduta infracional ou mora do contribuinte, ou ainda no caso de presença de excludentes, como o caso da denuncia espontânea.
Merece destaque dizer que no caso da multa fiscal os danos causados ao fisco não precisam ser comprovados. A força executiva da multa já fazem presumidos os danos sofridos pelo fisco. A presunção é jures et jures, ou seja não admite proa em contrário. É uma presunção de corrente da lei, inerente à multa imposta.
Não há nada que pode ser feito senão descaracterizar a multa, ou ser beneficiado em programas de redução de crédito e parcelamentos generosos, nos quais permitem ao contribuinte pagar apenas o valor principal da obrigação acrescido de juros convencionais, excluindo-se os juros compostos e as diversas multas incidentes sobre o valor total.
Cumpre registrar que a multa tributária não sendo tributo[6], porém se convertendo em obrigação principal, não pode ser entendida como uma mera penalidade, mas como algo que vai além[7]. Mesmo a multa pelo descumprimento de uma obrigação acessória, sendo mencionada na lei como uma penalidade, pode-se dar um caráter indenizatório a esta, pois o descumprimento das obrigações do contribuinte geram ônus ao Estado.
Pergunta-se por que a multa tributária pode ser considerada como uma indenização compulsória autoexecutável? Os atos administrativos possuem diversos atributos. Destacam-se a auto-executoriedade e a imperatividade de seus atos. Logo, entende-se que sendo o direito tributário e o direito administrativo, interligados no ramo do direito público, e partindo do pressuposto que os atos administrativos tributários possuem esse atributos, conclui-se que a multa tributária detém esta prerrogativa em face de créditos indenizatórios oriundos de credores particulares, ou ainda que detém uma natureza meramente particular. Logo a multa tributária possui esse caráter indenizatório na sua essência, independentemente da posição jurisprudencial dominante.
Por fim destaca-se o disposto no art. 416 § único do Código Civil que reza "Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente". Nota-se que em matéria de direito privado existe um limite para que o credor possa cobrar indenização suplementar em caso de dano. Esse deverá comprovar o evento danoso, sob pena de não ter seu pleito deferido.
Diferentemente ocorre no Direito Tributário. A multa tributária é lançada em decorrência da infração, ou ilícito cometido pelo contribuinte. Lançada a multa, presume-se ocorridos os danos em decorrência da conduta do contribuinte, o qual não poderá provar em contrário, a não ser a descaracterização de sua conduta.
A MULTA TRIBUTÁRIA E O PRINCÍPIO DO NÃO CONFISCO
O princípio constitucional da vedação do não confisco, contemplado no art. 150, IV da Constituição Federal possui duas vertentes.
A primeira é o fato de que o tributo não pode servir como efeito expropriatório. A segunda é a de que o valor do tributo não poderá invadir a esfera patrimonial do contribuinte.
Observando o conceito de tributo, observa-se que a multa tributária decorre de uma sanção de ato ilícito. Já o tributo não pode decorrer de sanção de ato ilícito, nos termos do art. 3º do Código Tributário Nacional.
O princípio da vedação do confisco visa a preservar a propriedade do contribuinte, ante ao abuso do Fisco. Assim, a instituição do tributo não pode ser confiscatória, respeitando o mínimo para a existência digna e do particular. Entretanto, a cobrança de multa em valores desarrazoados não se subsume à mesma teleologia prevista no princípio cuja positivação referiu-se apenas aos tributos.
CONCLUSÃO
Ante a todo o exposto, entende-se que a multa tributária possui natureza mista. Não podemos retirar sua natureza de penalidade, todavia, a natureza indenizatória está implícita em sua essência. Na análise do instituto da Cláusula penal advinda dos instrumentos particulares, e relacionado-os com os aspectos relativos à responsabilidade civil, a multa tributária tem natureza de indenização compulsória devida pelo particular ao poder público, que detêm força de crédito executivo fiscal.
Impõe-se ao contribuinte ao contribuinte um dano, como conseqüência à infração cometida contra o fisco. Todavia, a infração cometida pelo contribuinte causou um dano, que é presumido e cobrado. Não admiti-se prova em contrário, a não ser meramente para a descaracterização da infração o mora cometida pelo contribuinte. Diante disso, dá-se as natureza dúplice, ou mista.
Ademais, tal alegação advinda neste artigo é algo interpretativo. Analisando os diversos institutos de Direito Privado e os colocando em função dos institutos de Direito Público conclui-se que o contribuinte não deve uma penalidade ao fisco. O que é devido é uma indenização por danos presumidos causados ao fisco.
Logo a conclusão é que a natureza jurídica da multa tributária, na sua essência, além de ser uma mera penalidade é uma indenização compulsória devida ao estado dotada de presunção jures et jures, não admitindo prova em contrário, podendo ser contestada apenas em seus aspectos legais, possuindo ainda auto-executoriedade, frente ao contribuinte.
Notas
[1] RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos, 5ª Edição, Editora RT,Capítulo 3 Scribd. Disponível em <http://pt.scribd.com/doc/95366781/O-DIREITO-E-A-VIDA-DOS-DIREITOS-Vicente-Rao> Acesso em 4 set 2012.
[2] Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
[3] Art. 404. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagas com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.
Parágrafo único. Provado que os juros da mora não cobrem o prejuízo, e não havendo pena convencional, pode o juiz conceder ao credor indenização suplementar.
[4] Art. 410. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor.
[5] Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.
[6] Cumpre destacar que o art. 3º do Código Tributário Nacional fornece o conceito de tributo, sendo este “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
[7] CTN Art. 113§ 3º. A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.