INTRODUÇÃO
A judicialização da saúde é um fenômeno cada vez mais freqüente na vida nacional. As pessoas estão fazendo uso do direito fundamental ao acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) para buscar a efetivação de um outro direito fundamental: a saúde, nos termos do art. 6º e do art. 196 da CF/88.
De acordo com pesquisa realizada pelo CNJ, até o mês de junho de 2014 haviam em tramitação mais de 330 mil ações na Justiça comum (estadual e federal) envolvendo fornecimento de medicamentos[1].
As pessoas ingressam no Poder Judiciário para compelir o Estado a fornecer medicamentos de alto custo ou que normalmente não são fornecidos pelo Sistema Único de Saúde.
O CASO CONCRETO JUDICIALIZADO
A substância “fosfoetanolamina sintética” era produzida pela USP de São Carlos e distribuída gratuitamente para pacientes voluntários portadores de câncer. Há relatos que algumas pessoas melhoraram de saúde após fazerem uso da substância. Com isso, a procura pela substância aumentou consideravelmente e a USP resolveu apenas entregar o produto para as pessoas que tivessem uma ordem judicial.
O problema é que a referida substância nunca foi submetida a testes pela ANVISA para comprovar sua eficácia e ser registrada como medicamento.
O TJSP, com base no argumento da falta de registro na ANVISA, cassou uma série de decisões liminares que estavam obrigando a USP fornecer a substância.
Uma das pacientes que teve sua liminar cassada, resolveu ingressar no STF com uma petição requerendo a suspensão da decisão do TJSP. Alegava estar em estágio terminal e que seus médicos, haviam receitado a utilização da substância para mitigar os efeitos da doença.
O caso foi relatado pelo recém empossado, min. Luis Fachin que deferiu o pedido de suspensão e autorizou a USP fornecer a substancia para a paciente.
O Ministro Edson Fachin assim se manifestou sobre o pedido da requerente :
(...) Por ora, em sede de medida cautelar, cumpre examinar tão somente se estão presentes a fumaça do bom direito e o perigo na demora do provimento judicial. Quanto ao periculum, como já se reconheceu no início desta decisão, há evidente comprovação de que a espera de um provimento final poderá tornar-se ineficaz. No que tange à plausibilidade, há que se registrar que o fundamento invocado pela decisão recorrida refere-se apenas à ausência de registro na ANVISA da substância requerida pela peticionante. A ausência de registro, no entanto, não implica, necessariamente, lesão à ordem púbica, especialmente se considerado que o tema pende de análise por este Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral (RE 657.718-RG, Relator Ministro Marco Aurélio, Dje 12.03.2012). Neste juízo cautelar que se faz da matéria, a presença de repercussão geral (tema 500) empresta plausibilidade jurídica à tese suscitada pela recorrente, a recomendar, por ora, a concessão da medida cautelar, para suspender decisão proferida pelo Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em sede de Suspensão de Tutela Antecipada 2194962-67.2015.8.26.0000(...)[2] (Grifamos)
Podemos observar na decisão do ministro que o mesmo deferiu a suspensão da liminar do TJSP, aduzindo que estavam presentes os requisitos gerais de concessão de limnares, isto é, o periculum in mora e fumus boni júris. No caso em tela, o periculum in mora foi comprovado pela paciente que estava em estágio terminal e avançado da doença, pela juntada de laudos médicos que recomendavam a utilização da fosfoetanolamina sintética, para mitigar os efeitos da doença. Portanto, o ministro fundamentou sua decisão na particularidade do caso concreto, sendo que o fornecimento da substância era a única maneira de garantir a paciente uma vida digna.
Foi uma decisão carregada de humanismo e solidariedade.
Em relação ao argumento do TJSP de que a substância não tinha registro na ANVISA, o ministro limitou-se a dizer que, por si só, esse argumento não é suficiente para comprovar a lesão da ordem pública.
O que estava em jogo não era o registro da fosfoetanolamina sintética, mas sim se o fornecimento dessa substância poderia causar lesão à ordem pública, que é um requisito legal para a suspensão de liminares. O ministro entendeu que não havia essa lesão.
Assim, pergunta-se:
Com essa decisão houve mudança de posicionamento do STF no que tange a necessidade de registro de medicamento na ANVISA para que o medicamento seja fornecido?
A resposta é negativa. A decisão proferida pelo ministro Edson Fachin foi especialíssima, baseada unicamente na particularidade do caso concreto. Além do mais, essa decisão monocrática, ainda depende de ratificação pelo Plenário. A jurisprudência do STF continua firme no sentido de se exigir o registro do medicamento na ANVISA.
A exigência do registro do medicamento na ANVISA foi um dos parâmetros de julgamento fixados na STA 175, onde o STF criou alguns parâmetros que poderão auxiliar os juízes no momento de decidirem causas envolvendo o fornecimento de medicamentos.
A STA 175, foi relatada pelo ministro Gilmar Mendes, e sobre o registro de medicamentos, o mesmo assim se manifestou em seu voto:
(...) Não raro, busca-se no Poder Judiciário a condenação do Estado ao fornecimento de prestação de saúde não registrada na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Como ficou claro nos depoimentos prestados na Audiência Pública, é vedado à Administração Pública fornecer fármaco que não possua registro na ANVISA. A Lei Federal nº 6.360/76, ao dispor sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os Medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, determina em seu artigo 12 que “nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde”. O artigo 16 da referida Lei estabelece os requisitos para a obtenção do registro, entre eles, que o produto seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe. O Art. 18 ainda determina que, em se tratando de medicamento de procedência estrangeira, deverá ser comprovada a existência de registro válido no país de origem. O registro de medicamento, como lembrado pelo Procurador-Geral da República, é uma garantia à saúde pública. E, como ressaltou o Diretor-Presidente da ANVISA, a agência, por força da lei de sua criação, também realiza a regulação econômica dos fármacos. Após verificar a eficácia, segurança e qualidade do produto e conceder o registro, a ANVISA passa a analisar a fixação do preço definido, levando em consideração o benefício clínico e o custo do tratamento. Havendo produto assemelhado, se o novo medicamento não trouxer benefício adicional, não poderá custar mais caro do que o medicamento já existente com a mesma indicação. Por tudo isso, o registro na ANVISA mostra-se como condição necessária para atestar a segurança e o benefício do produto, sendo a primeira condição para que o Sistema Único de Saúde possa considerar sua incorporação. (...)[3] (Grifamos)
Podemos observar na decisão do ministro Gilmar Mendes, que foi aprovada por unânimidade pelo Plenário do STF, que a necessidade de registro do fármaco na ANVISA é uma medida de saúde pública. Permitir que um medicamento sem registro seja colocado em circulação pode colocar em risco à vida de milhares de pessoas.
O Poder Judiciário não pode tomar o lugar dos médicos. Não pode obrigar o Estado a fornecer um medicamento que não possui certeza científica e eficácia no tratamento de uma doença.
CONCLUSÃO
Assim, podemos afirmar que não houve mudança na jurisprudência do STF sobre o tema. O registro do medicamento na ANVISA como condição para seu fornecimento irá continuar. A decisão do ministro Fachin foi uma decisão única e que levou em consideração uma situação particular.
No caso da fosfoetanolamina sintética entendemos que a polêmica somente irá acabar quando o Ministério da Saúde realizar os testes necessários para se comprovar a real eficácia dessa substância.
Entendemos que em nome do princípio da dignidade da pessoa humana e da eficácia plena do direito fundamental à saúde, o Poder Judiciário deve ordenar o fornecimento de medicamentos para pessoas necessitadas, mas desde que exista o registro na ANVISA e que o medicamento seja eficaz. Senão estiverem presentes esses requisitos, entendemos que o Judiciário somente pode determinar o fornecimento de um medicamento sem registro e sem eficácia comprovado, se estiver diante de um caso concreto, onde o paciente esteja à beira da morte, e esse medicamento for a última esperança para o restabelecimento da saúde.
Esperamos que a fosfoetanolamina sintética seja testada e que seja provada sua eficácia com o conseqüente registro na ANVISA e que a mesma seja assegurada a todas às pessoas que dela necessitarem, sem que seja preciso judicializar a demanda.
O Estado é responsável em implementar as políticas públicas de saúde, dentre elas, o fornecimento de medicamentos gratuitamente, nos termos do art. 196 da CF/88.
[1] Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/programas/forumdasaude/demandasnostribunais.forumSaude.pdf. Acesso em: 16/11/2015.
[2] Pet 5828 MC, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, julgado em 06/10/2015, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-203 DIVULG 08/10/2015 PUBLIC 09/10/2015). Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28%28FOSFOETANOLAMINA%29%29+NAO+S%2EPRES%2E&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/oapjtdh. Acesso em: 16/11/2015.
[3] STA 175, Relator(a): Min. PRESIDENTE, Presidente Min. GILMAR MENDES, julgado em 18/09/2009, publicado em DJe-182 DIVULG 25/09/2009 PUBLIC 28/09/2009 RTJ VOL-00210-03 PP-01227 RDDP n. 81, 2009, p. 161-166). Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28STA%24%2ESCLA%2E+E+175%2ENUME%2E%29+E+S%2EPRES%2E&base=basePresidencia&url=http://tinyurl.com/bblsmom. Acesso em: 16/11/2015.