Introdução.
Em anterior oportunidade (SALES, 2015), propusemo-nos a defender a ideia de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica contemplado no novo CPC não poderia ser aplicado nas relações de consumo. Retomamos a questão agora para levantar a tese de que o referido incidente não poderá ser aplicado aos processos submetidos ao procedimento do Juizado Especial Cível.
E, tal como fizemos, antes, não nos parece tarefa difícil de realizar. Mas é preciso deixar claro que não estamos, aqui, fazendo apologia contra a desconsideração da personalidade jurídica, da qual somos totalmente favoráveis, entendendo ser medida salutar ao processo, juridicamente correta e indispensável para garantir o cumprimento das obrigações. Nossa irresignação é apenas contra o incidente criado pela novel lei adjetiva.
I – Do incidente de desconsideração e sua posição no novo CPC.
O novo Código de Processo Civil traz uma novidade com o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, nos arts. 133 a 137. Por meio dele, o juiz, antes de promover a desconsideração, deverá fazer a citação dos sócios da pessoa jurídica para que se manifestem (art. 135), seguindo-se a instrução do incidente e a decisão do juiz (art. 136), tudo isso com a suspensão do processo principal (art. 134, § 3º).
No Livro Complementar, destinado às disposições finais e transitórias, o novo CPC, no art. 1.062, estabelece que o referido incidente aplica-se aos processos do JEC:
NCPC, art. 1.062.
O incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao processo de competência dos juizados especiais.
Mas o que é importante observar – e será determinante para nossas conclusões – é a posição que o incidente ocupa no novo CPC. Ele está inserido no título III, do Livro III, da Parte Geral, que trata da intervenção de terceiros. Desta forma, tal incidente, como determinando no novo CPC, é, inequivocamente, uma forma de intervenção de terceiros.
II - Intervenção de terceiros
Intervenção de terceiros é uma maneira incidental de ampliação subjetiva da lide, vale dizer, é a forma pela qual um terceiro passa a integrar a relação processual.
Como ensina Cândido Rangel Dinamarco (2003.b: 368), “intervenção de terceiros é o ingresso de um sujeito em processo pendente entre outros, como parte”. Para Fredie Didier Jr. (2007.a: 299), “a intervenção de terceiros é fato jurídico processual que implica modificação de relação jurídica processual já existente. Trata-se de ato jurídico processual pelo qual um terceiro, autorizado por lei, ingressa em processo pendente, transformando-se em parte”. Terceiro é qualquer pessoa que, originalmente, não faça parte do processo, e o fundamento da sua intervenção é a existência de certa proximidade entre ele e o objeto da ação, prevendo-se que o julgamento da lide projetará algum efeito indireto sobre sua esfera de direito (cf. DINARMARCO, 2003.b: 369).
III – Intervenção de terceiros e o JEC.
A Lei 9.099/1995 instituiu o procedimento dos Juizados Especiais Cíveis (JEC) estabelecendo, como seus princípios norteadores, a oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade (art. 3º). Em atenção a esses princípios, especialmente a celeridade, proíbe-se qualquer forma de intervenção de terceiros, como se vê no seu art. 10.
Lei. 9.099/1995, art. 10.
Não se admitirá, no processo, qualquer forma de intervenção de terceiro nem de assistência. Admitir-se-á o litisconsórcio.
O ingresso de terceiros nos autos, por meio de intervenção, cria um complicador para o processo, ao estabelecer, dentro dele, uma outra relação jurídica e, como isso, atrasa-se a prestação jurisdicional. Daí o porquê da proibição. Fredie Didier Jr (2007.a: 301) ressalta que “no procedimento dos Juizados Especiais Cíveis, de acordo com o art. 10, LF 9.099/95, não se admite intervenção de terceiro no juizado especial cível”, em razão de que, se admitida, comprometeria a celeridade do rito, da mesma forma que Cândido Rangel Dinamarco (2003.c: 786), ao esclarecer que “integra o modelo diferenciado do processo dos juizados cíveis a exclusão de qualquer modalidade de intervenção de terceiro, quer voluntária, quer provocada”.
Assim, por expressa e clara disposição legal – e que não dá margem a nenhum tipo de interpretação divergente – não cabe intervenção de terceiros no procedimento do JEC.
IV - Lei especial e lei geral.
Temos, então, um problema decorrente de diplomas legais que se mostram contraditórios: de um lado, o novo CPC, que no art. 1.062 estabelece que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é aplicável no JEC, e de outro lado, a Lei 9.009/1995, que no art. 10 veda terminantemente a intervenção de terceiros – caso do dito incidente – no procedimento do JEC. Como conciliar isso essa antinomia? – Usando as regras de hermenêutica jurídica! Como nos lembra Nehemias Domingos de Melo (2014: 17), pelo critério da especialidade, muito utilizado para resolver questões desse tipo, temos que a norma de caráter especial prevalece sobre a de caráter geral (lex specialis).
Ora, não há duvidas de que a Lei 9.009/1995 é lei especial, que se sobrepõe à lei geral, que é o novo CPC. Além do mais, aquela lei disciplina o próprio procedimento do juizado especial cível, só se utilizando as regras do processo comum naquilo em que ela for omissa e não for com ela incompatível.
Desta forma, entre as duas disposições legais postas em conflito, o art. 1.062 do novo CPC e o art. 10 da Lei 9.099/1995, deve este último prevalecer, razão pela qual podemos afirmar que o incidente de desconsideração da personalidade não poderá ser utilizado no procedimento do JEC.
Conclusão.
O incidente de desconsideração da personalidade jurídica, tal como previsto no novo CPC, é uma modalidade de intervenção de terceiros, e como tal, tem sua utilização vedada nos processo submetidos ao procedimento do JEC, por expressa disposição legal. Muito embora o novo CPC dispor, no art. 1.062, que o indigitado incidente tem aplicação no JEC, a proibição contida no art. 10 da Lei 9.099/1995, que é lei especial e prefere à norma geral do CPC, constitui uma barreira intransponível para sua aplicação.
Por essas razões, não nos parece absurdo afirmar que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto no novo CPC, não poderá ser aplicado nos processos do JEC.
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