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O interrogatório judicial do acusado: sob a perspectiva do direito ao silêncio e da busca da verdade.

Direito ao silêncio é sinônimo de direito à mentira?

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28/12/2015 às 12:59
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Evitando-se que o direito ao silêncio, quando exercido, acarrete em convicções íntimas negativas por parte do juiz, tem-se que o interrogatório, na verdade, deve ser concebido como ato prescindível, a ser realizado somente quando a defesa o requerer.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A relação entre o processo penal e os direitos fundamentais; 2.1. A necessária busca da verdade por intermédio do processo penal; 2.2. A busca da verdade como decorrência da eficiência do processo penal; 3. O interrogatório judicial do acusado como elemento de prova para a busca da verdade; 4. Direito à não autoincriminação e direito ao silêncio; 4.1. Direito ao silêncio é sinônimo de direito à mentira?; 4.2. A inviolabilidade do direito ao silêncio pela obrigação da verdade; 5. O interrogatório como ato prescindível e a proposta de aprimoramento legislativo – De lege ferenda; 6. Conclusão; 7. Referências bibliográficas.

RESUMO: O presente artigo trata das interferências dos institutos da busca da verdade e do direito ao silêncio sobre o interrogatório judicial do acusado. Em princípio, realiza-se análise sobre o processo penal e os direitos fundamentais que o embasam. Percebe-se que a busca da verdade é decorrência da necessária eficiência que o processo penal deve atingir. Em seguida, atribui-se às provas a missão de atingir a verdade, seja de qual espécie for, construindo-se uma visão sobre o acontecimento dos fatos. Desta forma, surge o interrogatório judicial do acusado como elemento de prova para a busca da verdade, já que notadamente pode ser usado para fundamentação de sentença condenatória ou absolutória. Ainda, ressalta-se que o interrogatório é também meio de defesa, já que o acusado pode exercer o consagrado direito ao silêncio, tratado como espécie de direito à não autoincriminação (nemo tenetur se detegere). Busca-se responder à indagação acerca de o direito ao silêncio constituir ou não um direito à mentira. Após esta construção, percebe-se que o interrogatório deve ser ato prescindível, vez que, à luz do direito ao silêncio, não se pode atribuir valoração ao fato de o acusado nada dizer. De mesmo modo, entende-se que o acusado deve prestar o compromisso de dizer a verdade, o que, em hipótese alguma, viola o direito ao silêncio. Por fim, propõem-se algumas alterações penais e processuais, no sentido de tornar o interrogatório ato prescindível, que deverá ocorrer somente quando a defesa requerer. Quando o fizer, entretanto, o desenvolvimento do estudo demonstra que o acusado deve dizer a verdade, sendo necessária, então, a criação de um tipo penal específico que condene o perjúrio do réu.

PALAVRAS-CHAVE: Interrogatório. Autoincriminação. Silêncio. Verdade. Mentira.

ABSTRACT: The current article treats about the interferences of the institutes of the search for truth and the right to silence on judicial interrogatory of the accused. In principle, the criminal proceedings and the fundamental rights were analyzed. It is noticed that the search for truth is a result of the necessary efficiency that the criminal proceedings must achieve. Then it is noticed that the evidences have the mission of reaching the truth, constructing a vision about the real facts. Therefore, the judicial interrogatory of the accused becomes an evidence for the search for truth, especially since it can be used for acquittal or condemnatory sentences. Still, the work points out that the interrogatory is also a defense because the accused may exercise the sacred right to silence, treated as a kind of right to not self-incrimination (nemo tenetur if detegere). So, the question the work wants to answer is whether the right to silence can be understood as a right to lie. After all this construction, it is clear that the interrogatory act must be dispensable, since, in the light of the right to silence, valuation cannot be attributed to the fact that the accused said nothing. Likewise, it is understood that the defendant should pay the commitment to tell the truth, which under any circumstances violates the right to silence. Finally, we propose some changes in the procedural law and criminal law, making the interrogatory act dispensable, which should occur only when the defense requests. When the defense requests, however, the development of work demonstrates that the accused must tell the truth, being required the creation of a specific crime of defendant's perjury.

KEYWORDS: Interrogatory. Self-incrimination. Silence. Truth. Lie.

Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso.

(Bertold Brecht)


1. Introdução

O interrogatório do acusado insere-se em contexto relativamente complexo no ordenamento jurídico brasileiro, notadamente sob o enfoque do princípio da busca da verdade e do princípio do nemo tenetur se detegere, que parece estar a reclamar uma releitura de seus contornos.

É significativo examinar se o interrogatório, seja como ato de defesa, seja como ato de produção de prova, constitui ato obrigatório ou se a compulsoriedade de sua realização colide com o direito à não-autoincriminação. Da mesma forma, é essencial verificar se a versão do réu, ainda que como ato exclusivo de defesa, pode ser dada de forma mentirosa ou deve obedecer à necessária busca da verdade.

Isto porque, como está previsto hoje, o interrogatório é ato obrigatório, compõe necessariamente a instrução processual, mas o acusado tem em seu favor o direito ao silêncio, ou seja, pode deixar de responder às perguntas que lhe são formuladas.

Alguns acrescentam que, além da recusa de responder, o acusado teria em seu favor o direito de mentir. Costuma-se dizer que, assim, o aludido princípio do nemo tenetur se detegere estaria assegurado por tal direito ao silêncio, nada obstante a compulsoriedade do ato de interrogatório.

Todavia, uma interpretação mais ampla desse mesmo princípio pode conduzir à conclusão de que o fato de o acusado ser compelido a comparecer para o interrogatório já representaria uma ofensa a direitos fundamentais, tornando necessário o exame da viabilidade de uma alteração legislativa que tornasse o interrogatório ato excepcional, que ocorreria tão somente a pedido da defesa e no interesse desta.

Numa outra faceta do mesmo tema, entende-se necessário verificar se o direito ao silêncio – e o pretenso direito à mentira que dele emanaria – não colide com o princípio da busca da verdade e com a própria eficiência que se espera do Processo Penal.

Não se trata de questionar o direito ao silêncio em si mesmo, mas de analisar uma possível melhor interpretação, pela qual, na hipótese de o acusado – quando e se quiser – abrir mão do silêncio, pedindo para ser interrogado, tenha, nesse caso, a obrigação de dizer a verdade, o que impediria versões mentirosas, julgamentos injustos e a ineficiente prestação jurisdicional penal.

Entende-se, portanto, que o tema eleito é relevante, já que guarda pertinência com a maior eficiência da persecução penal e, ainda, enfatiza a necessidade de ampliar a tutela de garantias fundamentais.

A aplicabilidade da discussão levantada dependeria de ajustes no ordenamento jurídico, que é exatamente o que se pretende propor ao final (sugestões de alterações legislativas).

Não se trata, assim, da análise dogmática do sistema atualmente vigente, mas de singela tentativa de contribuir de alguma forma para o incremento do valor que o interrogatório do acusado pode ter no Processo Penal, seja na perspectiva de garantias fundamentais, seja sob o enfoque da ética e da eficiência.


2. A relação entre o processo penal e os direitos fundamentais

As leis criadas pelo homem, dentre elas as de natureza penal, são essenciais à convivência em sociedade. Ainda não se encontrou outros meios, senão o estabelecimento de regras de convívio com o fim de alcançar a pretendida harmonia social.

Por igual, a respeitabilidade dessas normas e a sua eficácia também são decisivas, pois de nada adianta a existência de regras rígidas que não são cumpridas e que perdem sua legitimidade. Quanto à necessidade de leis que venham ao encontro dos anseios sociais, Fernando da Costa Tourinho Filho leciona:

Para manter a harmonia no meio social e, enfim, para atingir os seus objetivos, um dos quais se alça à posição de primordial – o bem-estar geral -, o Estado elabora as leis, por meio das quais se estabelecem normas de conduta, disciplinam-se as relações entre os homens e regulam-se as relações derivadas de certos fatos e acontecimentos que surgem na vida em sociedade. Essas normas, gerais e abstratas, dispõem, inclusive, sobre as consequências que podem advir do seu descumprimento. Em face de um conflito de interesses, dês que juridicamente relevante, a norma dispõe não só quanto à relevância de um deles, como também quanto às consequências da sua lesão. Tais normas são indispensáveis, para que se sabia o que se pode e o que não se pode fazer. O homem precisa, pois, contribuir para que a sociedade não se destrua, não se extermine, porquanto sua destruição implica no seu próprio aniquilamento. Se ele precisa da sociedade, obviamente deve pautar seus atos de acordo com as normas de conduta que lhe são traçadas pelo Estado, responsável pelos destinos, conservação, harmonia e bem-estar da sociedade.[1]

Dentre as normas que o Estado elabora com vistas à conservação da sociedade, estão aquelas de caráter penal e processual penal. Nesse contexto, imperioso averbar que, modernamente, consideram-se dentre as principais funções do Direito Penal aquelas referentes à limitação do poder punitivo do Estado e a proteção de bens jurídico-penais, razão pela qual, longe de ser exclusivamente punitivo, o Direito Penal é instrumento de garantias do cidadão.

Nessa ordem de ideias, é de se considerar que a lei penal restringe, simultaneamente, a liberdade das pessoas, ao proibir certas condutas, e o poder de punir do Estado, ao alinhar normas ao Estado Democrático de Direito na busca de um equilíbrio da proteção de interesses fundamentais da sociedade e o máximo de liberdade dos cidadãos.

Em razão disso, assevera João Paulo Orsini Martinelli:

Pode-se interpretar o fim a ser atingido pela lei penal de duas maneiras. Restritivamente, considera a proteção de bens jurídicos e a limitação ao poder punitivo do Estado; de forma ampla, a norma penal busca o bem-estar de uma determinada comunidade, a convivência harmônica entre as pessoas.[2]

 No sentido estrito, é essencial reconhecer que o Direito Penal tem, hodiernamente, acentuado caráter de garantia dos direitos básicos do indivíduo, até mesmo porque referido viés está conectado às normas inseridas na Constituição, decorrentes notadamente de acordos internacionais que visam à proteção dos direitos e garantias fundamentais.

Por tal razão, importante consignar que a ideia central ora desenvolvida não pretende colidir com o pensamento de que o Direito Penal, antes de ser punitivo, é instrumento de garantia do cidadão, e tampouco almeja desconsiderar que os direitos fundamentais – decorrentes de convenções internacionais ou não – dirigem-se contra o Estado, como amparo do indivíduo contra aquele, implicando no seu papel de limitador.

Entretanto, examinando as funções do Direito Penal no sentido amplo antes proposto, é necessário reconhecer que também exerce importante papel para o bem-estar social. Portanto, não é só a sua finalidade eminentemente garantista que deve ser considerada, mas também a vertente que demonstra que a realização efetiva da Justiça depende da adequada aplicação da norma penal.

Nessa perspectiva, é precisa a lição de Fernando Capez, que traz a aplicação adequada da normal penal sob a ótica de função garantidora da paz social:

Ao prescrever e castigar qualquer lesão aos deveres ético-sociais, o Direito Penal acaba por exercer uma função de formação do juízo ético dos cidadãos, que passam a ter bem delineados quais os valores essenciais para o convívio do homem em sociedade. Desse modo, em um primeiro momento sabe-se que o ordenamento jurídico tutela o direito á vida, proibindo qualquer lesão a esse direito, consubstanciado no dever ético-social “não matar.” Quando esse mandamento é infringido, o Estado tem o dever de acionar prontamente os seus mecanismos legais para a efetiva imposição da sanção penal à transgressão no caso concreto, revelando á coletividade o valor que dedica ao interesse violado. Por outro lado, na medida em que o Estado se torna vagaroso ou omisso, ou mesmo injusto, dando tratamento díspar a situações assemelhadas, acaba por incutir na consciência coletiva a pouca importância que dedica aos valores éticos e sociais, afetando a crença na justiça penal e propiciando que a sociedade deixe de respeitar tais valores, pois ele próprio se incumbiu de demonstrar sua pouca ou nenhuma vontade no acatamento a tais deveres, através de sua morosidade, ineficiência e omissão.[3]

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Desse modo, é essencial que o Direito Penal, além de garantir ao cidadão efetivas limitações ao jus puniendi estatal, seja adequadamente aplicado, sob pena de que os valores por ele protegidos sejam gradativamente desrespeitados, posto que a confiança no Estado diminui conforme a inoperância do sistema de Justiça Criminal.

Observe-se, a propósito, o que ocorre no país na atualidade, em que a crise de honestidade no ambiente público se mostra cada vez mais evidente, não se podendo negar que a pouca – ou quase nenhuma – incidência efetiva das normas penais sobre agentes públicos peculatários ou corrompidos seja fator contribuinte para tal situação.

Portanto, praticada uma infração penal, surge para o Estado o direito de punir. Isto porque as infrações penais tutelam interesses ou bens que afetam sobremaneira as condições de vida em sociedade (como no caso do direito à vida, à honra, à integridade física, à probidade administrativa, etc.).

Se a prática de infrações penais transtorna a ordem pública, a sociedade é a principal vítima, razão pela qual tem o direito de prevenir e reprimir atos lesivos à sua existência e conservação. A par do sistema de garantias – constitucionais e penais – que protegem o cidadão do exercício indevido do império do Estado, não há dúvida que a escorreita e legítima aplicação da norma penal é essencial ao convívio em sociedade.

Porém, obviamente, não é a singela verificação do ilícito penal – ainda que manifesto e patente – que gera a sujeição do seu autor à execução forçada da pena prevista. Tão somente através do processo penal, submisso a preceitos constitucionais de garantia, é que a norma penal deve ser aplicada.

A pretensão punitiva do Estado, que está consubstanciada no Direito Penal, com alicerce no direito fundamental de que não há crime sem prévia lei que o defina, nem pena sem prévia lei que a comine, só pode ser exercitada por intermédio de regras previamente estabelecidas. Aludidas regras regulamentam os atos que integram o processo penal. Conforme o magistério de Julio Fabbrini Mirabete:

Praticado um fato definido como crime, surge para o Estado o direito de punir, que se exercita através do processo penal. Este é o conjunto de atos cronologicamente concatenados (procedimentos), submetido a princípios e regras jurídicas destinadas a compor as lides de caráter penal. Sua finalidade é, assim, a aplicação do direito penal objetivo.[4]

O processo penal, portanto, surge como instrumento imprescindível para a aplicação da norma penal. É a única estrutura que se reconhece como legítima para a satisfação da pretensão acusatória e a imposição da pena, já que a vingança privada foi suprimida ao longo da história e em virtude da reafirmação dos direitos e garantias fundamentais do ser humano.

Como explicam os processualistas, a prática de uma infração penal faz surgir uma lide de igual natureza, resultante do conflito entre o direito de punir do Estado e o direito de liberdade do acusado.

Com respaldo em Liebmann, possível afirmar que a pretensão punitiva encontra no direito de liberdade a resistência necessária para qualificar esse conflito como litígio, já que o Estado não pode fazer prevalecer, de plano, o seu interesse repressivo. O processo serve, assim, para solução desse conflito de interesses.

O processo, então, seria um conjunto de normas – de forte viés constitucional (e, portanto, garantista), que regulamenta a atuação do Estado para impor a aplicação de sanções penais.

Porém, como também se verá adiante, apesar do citado cunho garantista, não se pode negar que o processo deve ser equilibrado, capaz de produzir justiça e não apenas uma ilimitada proteção de direitos fundamentais que conduza à impunidade e, de consequência, à falência plena do próprio Estado.

De todo modo, o processo não passa de uma série de atos visando à aplicação da lei penal ao caso concreto. Entre o ato inicial, exercício do direito de ação, e a decisão final sobre o mérito, numerosos atos são realizados, de acordo com as regras e formalidades previamente traçadas, até o ponto culminante, quando o Judiciário decide se procede ou não a pretensão punitiva. Dentre esses atos, inclui-se o interrogatório do acusado, cuja importância, como se verá, é inquestionável.

É fundamental reconhecer que o estudo do interrogatório, como parte do processo penal, como um dos atos que são (ou não, conforme a vontade do acusado em face do direito ao silêncio) praticados como fruto do exercício da pretensão punitiva, deve estar vinculado a um ambiente de normas que se extraem da Constituição.

O processo penal sofre – e deve sofrer – interferência direta das normas constitucionais que estabelecem os direitos fundamentais e, por óbvio, o interrogatório não pode se afastar de tal concepção.

A aplicação do Direito Penal, por intermédio do processo penal, vincula-se obrigatoriamente à tutela e à realização dos direitos humanos, postos como fundamentais na ordenação constitucional (artigos 5º, 6º e 7º, da Constituição Federal).

Logo, não se pode negar a íntima ligação entre o Processo Penal e o Direito Constitucional, o que, mais uma vez, reafirma o caráter garantista das normas processuais (assim como das normas penais). Sobre essa visão, Ada Pellegrini Grinover explica que:

O importante não é apenas realçar que as garantias do acusado – que são, repita-se, garantias do processo e da jurisdição – foram alçadas a nível constitucional, pairando sobre a lei ordinária, à qual informam. O importante é ler as normas processuais à luz dos princípios e das regras constitucionais. É verificar a adequação das leis à letra e ao espírito da Constituição. É vivificar os textos legais à luz da ordem constitucional. É, como já se escreveu, proceder à interpretação da norma em conformidade com a Constituição. E não só em conformidade com a sua letra, mas também com seu espírito. Pois a interpretação constitucional é capaz, por si só, de operar mudanças informais na Constituição, possibilitando que, mantida a letra, o espírito da lei fundamental seja colhido e aplicado de acordo com o momento histórico que se vive.[5]

O Direito Processual Penal é, essencialmente, um Direito de fundo constitucional. Assim sendo, deve se subordinar aos princípios estabelecidos na Carta Magna. Em se tratando de uma Constituição democrática, como é a brasileira, o Processo Penal deve ser igualmente democrático, servindo como instrumento a serviço da máxima eficácia do sistema de garantias do indivíduo.

Essa leitura necessária do Processo Penal – que não parece padecer de dúvidas na doutrina moderna – pode, entretanto, conduzir a conclusões apressadas, no sentido de que a intervenção penal e a própria pretensão punitiva estariam sufocadas pelo ambiente garantista. Não se trata disso, conforme leciona Juarez Estevam Xavier Tavares:

A garantia e o exercício da liberdade individual não necessitam de qualquer legitimação, em face de sua evidência. [...] O que necessita de legitimação é o poder de punir do Estado, e esta legitimação não pode resultar de que ao Estado se lhe reserve o direito de intervenção.[6]

Nessa perspectiva, percebe-se que as garantias fundamentais constantes da Constituição democrática já estabelecem a legitimidade da liberdade individual, sendo que esta, para ser sacrificada, é que necessita de legitimação.

Desse modo, o que se observa é que os direitos fundamentais, a princípio e na perspectiva sob enfoque, apenas limitam a pretensão punitiva e a intervenção estatal, mas não a inibem. Estão, na verdade, a exigir comprovada legitimidade para que a pretensão punitiva ocorra no ambiente garantista, mas não estão a impedir que o direito de punir do Estado seja exercitado.

Portanto, como referido pela doutrina, não se confunde observância dos direitos fundamentais com impunidade, razão pela qual há que se buscar um processo penal equilibrado e que não aniquile a necessidade de intervenção penal como contribuinte para a paz social.

2.1. A necessária busca da verdade por intermédio do processo penal

O processo penal tem por finalidade, por meio da produção da prova, reconstruir um fato histórico (crime ocorrido). Assim, tem uma função retrospectiva, em que, através das provas produzidas em contraditório, pretende criar condições para a atividade recognitiva do juiz acerca de um fato passado, a fim de que sua decisão importe em julgamento justo e congruente.

Por outro lado, não sem muitas críticas, parte da doutrina afirma que o processo penal tem por objetivo a busca da verdade – alguns ainda acrescentam: verdade real. Mesmo para esta corrente, é certo que o sistema de garantias individuais que permeia todo o Processo Penal, à luz das bases constitucionais que o suportam, deve ser o fundamento para a busca de aludida verdade.

Entretanto, doutrina moderna nega o princípio da verdade real como orientador da busca da prova, mencionando que o modelo processual brasileiro se aproxima mais de um sistema acusatório e não inquisitorial.

Isto porque a busca da verdade real estaria muito mais ajustada a este último modelo (inquisitorial), porquanto o mito fundante seria a busca a qualquer custo, inclusive legitimando a produção de provas em descompasso com a ordem constitucional, que exige sua concepção à luz do garantismo.

Há autores, inclusive, que negam peremptoriamente que o processo penal deva buscar a verdade, visto que no sistema acusatório a verdade não é fundante e a sentença é mero ato de crença do juiz. Nessa linha, anota Aury Lopes Jr.:

À luz de tudo isso, defendemos uma postura cética em relação à verdade no processo penal. Mais, negamos completamente a obtenção da verdade como função do processo ou adjetivo da sentença. Não se nega que acidentalmente a sentença possa corresponder ao que ocorreu (conceito de verdade como correspondente), mas não se pode atribuir ao processo esse papel ou missão. Não há mais como pretender justificar o injustificável nem mesmo por que aceitar o argumento de que, ainda que não alcançável, a verdade deve ser um horizonte utópico [...]. [7]

Outros, como Eugênio Pacelli de Oliveira, apresentam uma posição intermediária: embora neguem a busca da verdade real como função do processo penal, visto que tal pretensão estaria em sintonia com o modelo inquisitivo e não acusatório, admitem a necessidade da busca de certa verdade, que pode ser processual ou corresponder simplesmente a uma certeza jurídica.[8]

Por outro lado, Fernando da Costa Tourinho Filho reafirma que o Processo Penal busca a verdade real, antagonizando com os citados autores mais modernos: “A função punitiva do Estado deve ser dirigida àquele que, realmente, tenha cometido uma infração; portanto o Processo Penal deve tender à averiguação e descobrimento da verdade real, da verdade material, como fundamento da sentença.”[9]

Há outros, ainda, como Habermas, que afirmam que o que deve prevalecer é uma teoria consensual (discursiva da verdade), pela qual a verdade seria uma pretensão de validez, isto é, seriam verdadeiros os enunciados fundamentados no melhor argumento e que consigam o assentimento de todas as pessoas.[10]

Dada a falta de acordo na doutrina acerca das características exatas da verdade que é perseguida pelo Processo Penal, não se pretende adjetivar a verdade que deve ser perseguida, ou seja, se real, material, processual, consensual ou qualquer outra.

Porém, com apoio na brilhante obra de Paulo Mário Canabarro Trois Neto, deve-se aceitar a existência de um princípio da busca da verdade que permeie o Processo Penal, já que, sem a verdade – possível – o desfecho do Processo Penal é a injustiça.[11]

Assim, nada obstante as referidas discrepâncias doutrinárias, há consenso entre os autores de que espécie de verdade, ou alguma modalidade dela, deve ser perseguida e atingida para fundamentar a sentença que encerra o Processo Penal.

Sem a busca da verdade – e o atingimento daquela racional e materialmente possível – o Processo Penal se torna absolutamente aético, seja para condenação de um inocente, seja para absolvição de um culpado.

Nesse sentido, Paulo Rangel afirma que:

A verdade processual deve ser vista sob um enfoque da ética, e não do consenso, pois não pode haver consenso quando há vida e liberdade em jogo, pelo menos enquanto se estiver compromissado com o outro como ser igual a nós, por sua diferença. A verdade obtida, consensualmente, somente terá validade se o for através da ética da alteridade (do latim alter, outro, + - (i)dade: qualidade do que é outro).[12]

Conclui-se, sob o enfoque ético do Processo Penal, o seu desfecho tem que ser o de uma decisão baseada na verdade e jamais afastada dela, sob pena de distanciamento do Processo Penal justo e eficiente, configurando-se, assim, falácia tendente a produzir injustiças, seja para punir inocentes, seja para impedir a responsabilização do culpado.

Este último doutrinador, Paulo Rangel, tece considerações sobre referido posicionamento doutrinário, que diminui a importância da verdade no Processo Penal (inclusive por entender impossível sua obtenção):

Afirmar que a verdade, no processo penal, não existe é reconhecer que o juiz penal decide com base em uma mentira, em uma inverdade. Ao mesmo tempo, dizer que ele decide com base na verdade processual, como se ela fosse única, é uma grande mentira.[13]

Como ensina Luigi Ferrajoli, “se uma justiça penal integralmente ‘com verdade’ constitui uma utopia, uma justiça penal completamente ‘sem verdade’ equivale a um sistema de arbitrariedade.” [14]

Obviamente, considerando o exposto, torna-se inviável suplantar garantias para o alcance da verdade, não sendo o caso de se voltar ao procedimento inquisitorial para validar a busca na verdade. Não se trata disso.

Insista-se que a verdade não pode ser alcançada a qualquer preço e que certamente a busca da verdade está limitada pelos princípios gerais inerentes à prova, permeados pelo respeito à dignidade da pessoa humana. A busca da verdade precisa observar o devido processo legal e as garantias fundamentais, como se viu.

Porém, essas constatações, que são inegociáveis, devem levar em consideração que o juiz, para decidir o caso penal, não pode se afastar das provas carreadas para os autos.

Entretanto, como se conhece, as provas obtidas nem sempre condizem com a verdade primária ou original, isto é, a verdade dos fatos reconstituídos pelo Processo Penal. Sabe-se que testemunhas mentem, peritos falsificam ou erram em suas atividades, que documentos são falsificados, que confissões são falsas ou que os réus apresentam negativas de autoria forjadas.

Assim, forçoso reconhecer que o Processo Penal deve se ocupar de meios que façam vir aos autos, observadas as garantias constitucionais, a reprodução dos fatos que mais se assemelhe com a verdade.

É nessa perspectiva de busca da verdade – seja real, processual, ficta ou de qualquer outra natureza ou etiqueta que lhe tenha sido dada pela doutrina –, que o interrogatório do acusado deve ser examinado.

Seja como meio de prova, meio de defesa ou um misto de ambos, forçoso reconhecer que o papel do interrogatório, em conjunto com as demais provas, possui um especial relevo na perquirição da verdade.

Assim sendo, é imperioso que o interrogatório – caso seja pretendido pela defesa (e apenas por ela, como se propõe a seguir) – tenha conexão direta com a verdade e não seja, como pretendem alguns (e até como se verifica na prática, em regra), uma oportunidade excepcional para o réu mentir e tentar se furtar à sua responsabilidade penal.

Mesmo porque, obviamente, o pretendido processo penal ético, eficiente, revestido de garantias, não pode caminhar de braços dados com a mentira.

Se o Processo Penal contemplar atos que na sua essência jamais perseguem ou visam à verdade, tal qual a admissão de um interrogatório mentiroso, certamente falhará na sua necessária faceta ética e a eficiência que dele se espera, sendo que as funções do Direito Penal e do Direito Processual Penal estariam fatalmente fadadas ao insucesso.

De um lado, há evidente arbitrariedade na produção de provas sem a observância dos princípios constitucionais inerentes ao Processo Penal. De outro, há inegável abuso ao se deferir a uma das partes, no caso o réu, o direito a usar da mentira para convencimento do juiz.

Portanto, o interrogatório mentiroso constitui ato processual que está em desacordo com a busca da verdade que norteia o Processo Penal, não sendo, por óbvio, admissível.

Como se verá adiante, elevar o direito ao silêncio a um pretenso direito a mentir constitui prática que ofende o Processo Penal que tem a pretensão de reconstituir a verdade possível e, com base nela, ofertar uma sentença justa.

Aproveitando as referências de Fernando Capez, colacionadas linhas atrás, se o Estado estimula a mentira e a aceita como estratégia válida de defesa, certamente se torna injusto, aplicando inadequadamente o Direito Penal e acabando por incutir na consciência coletiva a pouca importância que dedica aos valores éticos e sociais, afetando a crença na justiça penal e propiciando que a sociedade deixe de respeitar tais valores, pois ele próprio se incumbiu de demonstrar sua pouca ou nenhuma vontade no acatamento a tais deveres.

Assim, a produção probatória é atividade que deve ser regrada pela verdade, pela ética, pela busca do que é justo, dentro de cujo contexto se insere o interrogatório do acusado.

2.2. A busca da verdade como decorrência da eficiência do processo penal

A necessária busca da verdade pelo Processo Penal está intimamente conectada à ideia de eficiência que é inerente a este último. O regime de um Estado de Direito Democrático, como se pretende o brasileiro, estabelece como dever a obrigação de se prestar uma Justiça Penal eficiente, inclusive como forma de dar proteção aos direitos fundamentais e às estruturas sociais nas quais eles podem ser exercidos.

Ao lado das garantias do indivíduo contra os excessos do Estado, o Processo Penal constitucional deve, obrigatoriamente, visar a uma Justiça Penal ágil, eficaz e ética, sob pena de ser ineficiente e, portanto, injusta, contrariando os objetivos do próprio Direito Penal de reafirmar a paz social.

Do magistério de Luís Afonso Heck se extrai que:

O Estado de Direito somente pode ser realizado se está assegurado que os delinquentes, nos limites das leis vigentes, serão sentenciados e que uma pena justa lhes será atribuída. O Princípio do Estado de Direito, a obrigação do Estado de proteger a segurança de seus cidadãos, a sua confiança na aptidão funcional das instituições estatais e o tratamento isonômico de todos os inculpados no procedimento criminal exigem, essencialmente, a efetivação do direito de punibilidade estatal. A obrigação constitucional do Estado de garantir uma jurisdição funcionalmente apta abrange, em conformidade com isso, regularmente a obrigação de assegurar a instauração e a execução do processo penal. [15]

O Direito Constitucional brasileiro, portanto, reconhece que a persecução penal deve ser eficaz, sob pena de o próprio Direito Penal restar inaplicado adequadamente.

A administração da Justiça Penal com eficiência também pode ser postulado de garantia fundamental, porquanto tal atividade é inerente ao Estado de Direito, sem a qual, aliás, este se vê comprometido.

A legitimidade do Direito Penal é dependente do desenvolvimento adequado do Processo Penal, com eficiência, já que os dois ramos guardam relação de complementariedade entre si. Paulo Mário Canabarro Trois Neto, com precisão, pontifica:

Como o direito penal somente pode ser realizado por meio do processo, o direito processual penal também toma parte na tarefa de proteção dos bens jurídicos. Se a lei penal prevê que o agente de uma certa conduta lesiva a um bem jurídico deve ser punido criminalmente, a realização dessa consequência jurídica é um dever estatal cuja existência, em face da obrigatoriedade do direito e do monopólio do uso legítimo da força, não pode ser posta em dúvida. [16]

Assim, novamente se reafirma o compromisso do Processo Penal com a efetiva realização da Justiça. Se o agente incorre no modelo de conduta de infração penal, remanesce para o Estado a obrigação de bem aplicar a sanção correspondente, fato que, obviamente, deve ser orientado pela verdade.

Com isso, observadas as garantias constitucionais, a eficiência da Justiça Penal está fundamentada na correta aplicação do Direito Penal, isto é, a punição do autor do fato criminoso. Conforme a doutrina de Jorge de Figueiredo Dias:

[...] é seguro não poder o Estado demitir-se do seu dever de perseguir e punir o crime e o criminoso, ou sequer negligenciá-lo, sob pena de minar os fundamentos em que assenta sua legitimidade. [...] Com o princípio da perseguição oficiosa das infrações, visa o Estado corresponder ao seu dever de administração e realização da justiça penal, por meio da qual deve obter, ao menos idealmente, a condenação judicial de todos os culpados e somente dos culpados da prática de uma infração penal. [17]

A lição deste último doutrinador estabelece o justo equilíbrio do Direito Penal e do Processo Penal: a obrigação de obter a condenação de todos os culpados e somente dos culpados. Ou seja, o Estado não pode extrapolar na sua missão, condenando inocentes; mas também não pode se furtar a ela, devendo punir os culpados.

Para tanto, insista-se que se deve reconhecer que essa eficiência do Direito e do Processo Penal está atrelada, indissociavelmente, ao princípio da busca da verdade, já que, na medida do possível, devem ser evitados todos os julgamentos equivocados.

Para a busca da verdade, excetuadas aquelas provas naturalmente restringidas pelas garantias fundamentais e que fogem aos ditames dos princípios constitucionais inerentes à produção probatória, não há dúvida de que todas as demais fontes e meios de prova devem ser utilizados.

Nessa perspectiva, o interrogatório verdadeiro – nas hipóteses em que a defesa o indica como necessário – deve ser almejado para a prestação jurisdicional penal eficiente. Tal proposição está em consonância com a Justiça Penal eficaz e ética, que só pode ser aquela divorciada da mentira.

Tal ponderação pode ser extraída do princípio da busca da verdade, por meio do qual se admite que o interrogatório verdadeiro (observado, é óbvio, o direito ao silêncio), é um meio de busca dessa mesma verdade que deve ser admitido pelo ordenamento jurídico.

A tal respeito, cumpre observar a advertência de Paulo Mário Canabarro Trois Neto: “O princípio da busca da verdade repele prima facie qualquer limitação do objeto da atividade probatória que não se justifique sob o aspecto epistêmico.” [18]

Sendo assim, não se pode limitar uma releitura normativa acerca do interrogatório do acusado, à luz da eficiência almejada pelo Processo Penal. Não se pode impedir que a produção probatória abarque um interrogatório imune à mentira, porquanto é injustificável que a instrução criminal, sob o manto do princípio da busca da verdade, impeça a imposição legítima da obrigação de prestar declarações verdadeiras.

A aceitação da mentira no interrogatório do acusado, como conduta válida e inerente à autodefesa, colide com o Processo Penal eficiente. E isto conduz à proteção insuficiente do Direito Penal sobre direitos fundamentais que sofram agressões de terceiros, como, por exemplo, no caso dos crimes contra a vida, etc.

A atuação deficitária do Estado, que certamente é estimulada pela mentira contada pelo acusado em seu interrogatório, é vedada pela proibição da insuficiência. E a eficiência do Processo Penal é tanto comprometida pelo excesso (violação de garantias), como pela insuficiência (Direito Penal não aplicado adequadamente).

Assim, a proposição de incriminação do interrogatório falso, realizada ao final, não está em desacordo com as garantias fundamentais e, sobretudo, afina-se com a eficiência do Processo Penal.

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Sobre o autor
Hugo Campitelli Zuan Esteves

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná. Pós-Graduado em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina: especialista em Direito Constitucional. Pós-graduado pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Docente em Kroton Educacional. Docente em Anhanguera.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESTEVES, Hugo Campitelli Zuan. O interrogatório judicial do acusado: sob a perspectiva do direito ao silêncio e da busca da verdade.: Direito ao silêncio é sinônimo de direito à mentira?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4562, 28 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45339. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Este artigo foi recentemente publicado na Terceira Edição da Revista Jurídica do Ministério Público do Paraná (em 11 de Dezembro de 2015), ao lado de artigos de Gilmar Mendes, Luiz G. Marinoni, Lenio Streck, entre outros.

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