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A assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos:.

50 anos após Gideon v. Wainwright

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05/01/2016 às 12:24
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9 – Seleção de Defensores Públicos e controle de eficiência

Não há concurso público para ingresso na Defensoria Pública dos Estados Unidos. Esta não é uma forma de recrutamento típica do serviço público norte-americano.

No âmbito judicial, por exemplo, os juízes estaduais se investem no cargo por meio de voto popular, em eleições partidárias. A maioria dos juízes federais, por sua vez, é nomeada pelo Presidente da República, para exercício de função vitalícia, sem aposentadoria compulsória.

Na Defensoria o que acontece é a análise, pelo Defensor Público Federal Chefe (nas FDO’s) ou pelo Diretor Executivo (nas CDO´s), da formação profissional e da aptidão dos interessados. Há casos em que tal avaliação também é feita por juízes federais.

Quem exerce o controle de eficiência sobre o trabalho desempenhado pelos Defensores Públicos é o Defensor Público Federal Chefe ou o Diretor Executivo. No que concerne à possível deflagração de procedimentos administrativos internos para apuração de desvio funcional, destacou a entrevistada que, “em tese, a autoridade contratante poderia aplicar sanção ao profissional desidioso. Contudo, na prática, o que acontece é a efetiva demissão da pessoa, tornando sem objeto a deflagração de um processo administrativo disciplinar”.


10 – Considerações finais                                  

Extraímos da entrevista que, apesar das disparidades entre os sistemas jurídicos do Brasil e dos Estados Unidos[13], há um importante ponto de coincidência: a origem dos percalços enfrentados pela Defensoria Pública para se estabelecer de maneira sólida e autônoma, como parte do Sistema de Justiça.

Tanto no Brasil quanto nos EUA parece existir uma baixa percepção no que concerne ao vínculo existente entre defesa técnica no processo (e aqui nos referimos à esfera criminal e civil) – respeito às garantias fundamentais da isonomia, contraditório e ampla defesa – e participação política, elemento viabilizador da chamada cidadania democrática (democratic citizenship), referida por Martha F. Davis, em ensaio publicado pelo Yale Law Journal:

Em primeiro lugar, os conceitos de cidadania democrática e participação coletiva têm sido importantes valores de suporte da jurisprudência constitucional. Eles desempenham um papel de relevância, por exemplo, em muitos casos constitucionais que reconhecem a importância de dotar os indivíduos de capacidade para participar do nosso sistema político, garantindo a igualdade de acesso à educação. No entanto, a promoção da participação coletiva é um valor também subjacente à garantia do devido processo legal. No caso Goldberg, o Tribunal traçou esses conceitos a partir do Texto Constitucional quando salientou que o “bem-estar geral” e as “bênçãos da liberdade” são promovidos e protegidos quando os pobres têm “as mesmas oportunidades que estão disponíveis para os outros de participar de forma significativa nas decisões da comunidade”. Enquanto a participação em uma comunidade tem múltiplas facetas, uma das mais importantes é certamente a participação em instituições cívicas, como o sistema judicial.[14]

Se não existe consciência da relação entre contraditório real e cidadania – e tudo indica que, independentemente deste fato, os pobres são os primeiros a se colocarem fora de qualquer processo político decisório mundo afora – a consequência direta é o direcionamento reduzido de recursos financeiros para implementar um mecanismo (eficiente) de assistência jurídica gratuita.

Nos Estados Unidos, país com a maior população carcerária do planeta[15], além de ser minúsculo o investimento em defesa pública (especialmente na esfera estadual), parece existir ainda um agravante de ordem cultural: a desconfiança (ou aversão) quase maciça à intervenção estatal redutora de desigualdades sociais.

Curiosamente, o parágrafo segundo da Declaração de Independência dos EUA, datado de 1776, traz os seguintes dizeres:

Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes direitos estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que para assegurar esses direitos, Governos são instituídos entre as pessoas, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados.


11 - Referências bibliográficas

ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

CHEMERINSKY, Erwin. Lessons from Gideon. Yale Law Journal, n. 122 (Gideon Symposium Essay). Jun. 2013.

DAVIS, Martha F. Participation, equality, and the civil right to counsel: lessons from domestic and international law. Yale Law Journal, n.122 (Gideon Symposium Essay). Jun. 2013.

HOUPPERT, Karen. Chasing Gideon: The elusive quest for poor people’s justice. Nova York: The New Press, 2013.


Notas

[1] Para acesso à íntegra da decisão: http://caselaw.findlaw.com/us-supreme-court/372/335.html. Anota a doutrina americana que “Sob uma Constituição que muitas vezes é descrita como sendo uma carta de liberdades negativas – restrições sobre o poder do Estado – e não direitos fundamentais positivos, Gideon sustenta que há algo pelo qual o governo deve pagar: um advogado para aqueles que não podem custear os serviços de tal profissional e que, por isso, estão diante da perda de sua liberdade.” (CHEMERINSKY, Erwin. Lessons from Gideon. Yale Law Journal, n. 122, p. 2676 (Gideon Symposium Essay). Jun. 2013).

[2] Sobre os obstáculos ao desenvolvimento da defesa pública nos EUA, conferir a obra riquíssima de Cleber Francisco Alves, intitulada Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006).

[3] CHEMERINSKY, Erwin. Lessons from Gideon. Yale Law Journal, n. 122, p. 2676 (Gideon Symposium Essay). Jun. 2013.

[4] A respeito da relevância do citado precedente, pontua Karen Houppert: “A tirania potencial do Estado sobre o indivíduo é objeto de análise em Gideon. Por exemplo, reconhecendo que o Estado ‘gasta vasta quantia de dinheiro para equipar um maquinário destinado ao julgamento de réus acusados de praticar crimes’, a Suprema Corte americana estabeleceu que ‘advogados em processos criminais são necessidades, não artigos de luxo’. E para aqueles que poderiam suprimir liberdades individuais, o tribunal em Gideon anunciou que “O direito a um defensor por parte da pessoa acusada da prática de um crime pode não ser considerado fundamental e essencial para a realização de julgamentos justos em alguns países, mas é no nosso”. (HOUPPERT, Karen. Chasing Gideon: The elusive quest for poor people’s justice. Nova York: The New Press, 2013, p. 254).

[5] Para acesso à íntegra da decisão: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/304/458/case.html

[6] Vale lembrar que os advogados assumem também processos em que existe impedimento por parte dos Defensores Públicos e casos criminais de co-réus com interesses conflitantes.  Na hipótese de haver indiciamento de mais de uma pessoa carente, a Defensoria Pública assume o processo que reputa mais complexo e direciona o outro (ou os demais casos) para receberem acompanhamento pelos advogados inscritos no “painel do CJA”.

[7] A entrevistada destacou o seguinte, sobre as oscilações recentes no repasse de verbas e o possível espaço político para negociação do orçamento: “Nós recebemos dois repasses do Judiciário Federal: um para a Unidade de Contencioso ou de Julgamentos (Trial Unit) e outro para a Unidade de Habeas Corpus (Capital Habeas Unit – responsável pela atuação exclusiva em casos que envolvem pessoas no corredor da morte). Até o ano passado, ambos os repasses aumentaram progressivamente. Este ano, a verba para a Unidade de Contencioso aumentou em 10 por cento, ao passo que nossa verba para funcionamento da Unidade de Habeas Corpus caiu 18 por cento. Atualmente nosso orçamento combinado é de US$ 5,593,500. Para o ano que vem a expectativa é boa. Estamos com os dedos cruzados. Praticamente não há espaço para negociação do repasse junto ao Judiciário. Cabe ao chefe da Defensoria Pública remeter para Washington relatórios mensais e anuais de produtividade dos membros da entidade, folha de pagamentos, benefícios e demais despesas administrativas, informações que servirão de base para elaboração do orçamento.”

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[8] Tradução livre do autor.

[9] Para acesso à íntegra da decisão: http://www.supremecourt.gov/opinions/10pdf/10-10.pdf.

[10] DAVIS, Martha F. Participation, equality, and the civil right to counsel: lessons from domestic and international law. Yale Law Journal, n.122, p. 2260. (Gideon Symposium Essay). Jun. 2013.

[11] Nos Estados Unidos a execução por injeção letal segue um protocolo. Em regra, são introduzidas no organismo do condenado três substâncias, em ordem certa: inicialmente, um anestésico capaz de tornar a pessoa inconsciente e, assim, imune à dor causada pela infusão das duas drogas subsequentes, quais sejam, um relaxante muscular de ação rápida que paralisa a atividade do sistema respiratório e, por último, uma substância que leva à parada cardíaca. O caso civil polêmico mencionado pela entrevistada diz respeito à primeira droga usada no protocolo de execução. Alguns Estados americanos passaram a utilizar um sedativo chamado midazolam, o qual, segundo afirmam autoridades médicas, não tem o poder de neutralizar, na pessoa executada, a dor excruciante causada pelas demais drogas injetadas no processo. Em resumo: nesta hipótese o executado torna-se paralisado fisicamente, sem perder sua capacidade cognitiva. Logo, o uso do midazolam seria inconstitucional, por revelar-se, em última análise, como punição “cruel e incomum”, proibida pela Oitava Emenda à Constituição dos Estados Unidos.

[12] Audiência inicial ou initial hearing constitui etapa obrigatória do processo penal. Trata-se da primeira vez em que um acusado comparece perante o juiz. Compete ao magistrado, no ato, informar o acusado sobre os seus direitos constitucionais, as possíveis sanções para espécie de ilícito penal a ele atribuído – contravenção (misdemeanor) ou crime (felony) – e se ele possui advogado constituído ou deseja solicitar ao Tribunal a nomeação de defensor público, por ser carente.

[13] Há uma importante peculiaridade do sistema jurídico americano digna de menção, relatada pelo Professor Cléber Francisco Alves: “(...) via de regra, não existe restrição à capacidade postulatória do cidadão perante os diversos tribunais e cortes de Justiça. À Advocacia não é reconhecido no patamar constitucional nem legal, como no Brasil, o status de função essencial à administração da Justiça. Assim, pelo menos em tese, um jurisdicionado que não possua recursos financeiros para contratar um advogado para patrocinar seus interesses em Juízo, seja como autor ou como réu, não estará, como se entende nos EUA, efetivamente privado de acesso à justiça: ele pode litigar pro se, ou seja, em causa própria.” (ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 57). Para uma análise história aprofundada sobre a pro se representation norte americana, conferir na íntegra a decisão proferida pela Suprema Corte Americana em Faretta v. California, de 1975, em http://caselaw.findlaw.com/us-supreme-court/422/806.html

[14] DAVIS, Martha F. Participation, equality, and the civil right to counsel: lessons from domestic and international law. Yale Law Journal, n.122, p. 2260. (Gideon Symposium Essay). Jun. 2013.

[15] No ano de 2013, segundo informa o U.S. Bureau of Justice Statistics e as Nações Unidas, o número total de detentos nos Estados Unidos era de 2.217.000 (731.200 pessoas se encontravam presas em cadeias locais em 30.6.2013 e 1.485.800 em penitenciárias estaduais ou federais em 31.12.2013). Para acesso a informações mais detalhadas referentes ao sistema penitenciário norte-americano, acessar o site: http://www.prisonstudies.org/country/united-states-america

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Sobre o autor
Cirilo Augusto Vargas

Defensor Público do Estado de Minas Gerais. Mestre em Direito Processual Civil pela UFMG. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela PUC-MINAS. Ex-integrante do Projeto das Nações Unidas para Fortalecimento do Sistema de Justiça de Timor-Leste. Exerceu as funções de clerk perante a Suprema Corte do Estado do Alabama/EUA e de Defensor Público visitante perante a Defensoria Pública Federal do Estado do Alabama/EUA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VARGAS, Cirilo Augusto. A assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos:.: 50 anos após Gideon v. Wainwright. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4570, 5 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45601. Acesso em: 21 nov. 2024.

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