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O que é a “evidência” na “tutela da evidência” do novo CPC/2015?

Uma Perspectiva Jusfilosófica

10/01/2016 às 14:03
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Evidência constitui a convicção razoável resultante de dados probatórios inegáveis, conduzindo o magistrado cognoscente à certeza daquela afirmação fática.

“A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando (...)”

(art.311, caput, do CPC/2015)

Se eu inicio uma incursão teórica/reflexiva com a indagação: o que é a evidência? estou trabalhando, à obviedade, na dimensão da identidade: “o que é?”. E se afirmo que algo “é”, afasto, de antemão, a ideia do possível “não ser” – na visão dialética de Hegel, do “a” e do “não a” – porque afirmo que “algo é”, descartando que esse algo possa não ser. Ora bem, se eu insisto na indagação: “o que é a evidência?”, trabalhando com o verbo “ser”, eu desloco o foco da singela juridicidade científica, num campo hermético, para lançar uma investigação no mundo vasto da metafísica, reclamando uma abordagem ontológica, para investigar “o que é?” e na medida em que ele é. Decerto, a questão ontológica é uma questão do “ser-em-si”. É nessa vertente que este singelo rabisco pretende mergulhar.

À sombra desse primeiro raciocínio, a questão ontológica sinaliza um sujeito cognoscente que a formula e um objeto cognoscendi acerca do qual é formulada, revelando a estrutura sujeito-objeto (nesta abordagem: juiz - situação conflitada), cuja base retrata a estrutura “eu - mundo” (leia-se: juiz – processo), como formulação básica do ser, vale dizer: de seu conteúdo (“o que é?”) e de sua forma (“como ele é?”). Se ele é, necessita ser revelado tal qual é, e como o apreendemos, afastando o que não seja, distinguindo-o dos demais.

Com Japiassú, entenderei a “evidência” em seu sentido corrente, como “tudo aquilo que se impõe ao espírito com uma força tal que parece desnecessário demonstrá-lo ou prová-lo”. E acresce, o referido dicionarista, no verbete “evidência”: “Para Descartes, somente a evidência intelectual pode constituir critério de objetividade”. Então, não posso aceitar como “verdadeiro” aquilo que não se revela para mim como “evidente”. Nessa quadra, seria a “evidência” um “critério de verdade”, seria uma “faculdade da intuição” ou seria “a certeza de uma dedução a partir dos sentidos”? Estar-se-ia num entroncamento entre Platão e Aristóteles? Indagações que me parecem salutares.

Com efeito, dentro da ciência do direito processual civil, significativo é fazer migrar a ideia da “evidência” do campo da subjetividade (sujeito: sub+jectum = “lançado abaixo de”, num tom de “submersão”) para o da objetividade (objeto: ob+jectum = “lançado acima de”, num tom de “imersão”), daí a necessidade de uma leitura do Direito à luz da Filosofia, num diálogo de fontes cognitivas, imprescindível – sob pena de uma ótica epidérmica e monocular – entre campos do saber humano.

É nesse eixo de articulação que vou até Aristóteles e percebo a sua proposição do raciocínio sequencial e progressivo, para se chegar à “verdade”: 1º) ignorância (mente in albis); 2º) Dúvida (motivos convergentes [os “sins”] em confronto com os motivos divergentes [os “nãos”], como numa balança, equilibrando o “ser” e o “não ser”); 3º) Opinião (“doxa” dos gregos, na qual os motivos começam a pender para um lado da balança, seja convergente, seja divergente) e 4º) Verdade (rectius: certeza), que é a fase conclusiva. Nesse percurso progressivo crescente aristotélico, verificar-se-á um quadro sequencial de conhecimento de algo pelo ser pensante. 

A propósito, a “verossimilhança” está situada no item 3 (“doxa”), porque é semelhante à “verdade” ou mais próxima dela, diferentemente da concessão das medidas assecuratórias (leia-se: cautelares), que é trazida com base na “dúvida”, no “fumus”. O primeiro está no campo da probabilidade; o segundo no campo da possibilidade. Nem tudo o que é possível, é provável. Com efeito, a “tutela da evidência” reclama critérios mais intensos do que a “tutela de urgência”, uma vez que a urgência, em estado aflitivo, faz necessário um provimento imediato; a tutela de evidência, não necessariamente.

Entrementes, no processo judicial não há 'verdades”; há versões (e aqui rasgo, virtualmente, folhas de alguns livros doutrinários). Nessa perspectiva, há a versão do autor (tese); há a versão do réu (antítese) e há a versão do juiz (síntese), cuja natureza/qualidade não sei se posso rotular de “verdade”. Afinal, aquela dicotomia expressa na “verdade formal x verdade real” [!?]) (suponho que exista “inverdade/mentira formal x inverdade/mentira real”), não se coaduna com uma conclusão absoluta. Afinal, parafraseando Pilatos: “o que é a verdade?”. A propósito, dando de costas para “A Verdade”, ele a crucificou.

Mas não é só. O magistrado não chega a uma “verdade”; ele chega a uma “certeza” (qualidade daquilo que é certo dentro de uma dada situação posta), que pode ser alterada em instâncias jurisdicionais superiores e, nessa linha, afirmar-se-á que, se fosse a “verdade”, não poderia ser alterada/reformada; a “certeza” sim, porque a minha “certeza” pode não ser a do outro. Essa “certeza” depende do olhar interpretativo; depende das lentes que se usa; depende do ponto de vista do sentenciante.

É preciso que se diga que a “evidência” não está nesse iter aristotélico. Os epicuristas e os estóicos entendiam a “evidência” como “critério de verdade”, a dizer: era a forma de manifestação do objeto como tal, diante dos órgãos dos sentidos humanos: o dar-se das coisas diante dos sentidos ou da inteligência, culminando com a compreensão do objeto diante do qual está o sujeito cognoscente. Com Husserl, em sua fenomenologia, temos a “evidência” como “preenchimento da intenção”. Todavia, os sentidos humanos podem captar falsas evidências, ainda que numa “cognição exauriente”. 

Nesse viés interpretativo, a “evidência absoluta” constitui o “grau absoluto da certeza” (o que é diferente da “verdade”). Na linha agostiniana, a “evidência” deve ser presente e percebida. Então, posso afirmar que ela deve ser “posta”; não “pressuposta” ou “suposta”. “Evidência” deve culminar com convicção para se chegar à certeza de um juízo. É nesse sentido que Chaïm Perelmam (“Rethoriques”) vai afirmar: “Uma proposição é evidente quando toda mente que lhe apreende os termos tem certeza de sua verdade (...)”.

Sem embargo, a “evidência” depende de demonstração e de um conhecimento apriorístico dos elementos que compõem essa demonstração. Numa leitura semiótica, preciso que signo e significado se correspondam sem ambiguidades para estar diante de uma evidência, daí porque a evidência surge no processo judicial, a partir da oferta de elementos probatórios subjacentes ao tecido argumentativo, uma vez que não se pode contentar com conjecturas e suposições, nem se firmar no campo da dúvida, quando se adianta efeitos da tutela jurisdicional, com sustentáculo na “evidência”. Não mais; porém não menos.

O que se vem dizer, aqui e agora, é que a “evidência” instrumentaliza a “verdade” (rectius: “certeza”), porquanto através dela – a “evidência” – posso chegar à certeza com o escopo de emitir um juízo escorreito, daí porque entender a “evidência” é fundamental nessa investigação gnosiológica. Assim é que, no “cogito cartesiano”, a “evidência” de minha existência é o fato certo de meu pensamento (“cogito, ego sun”: “penso, logo existo”), embora eu possa “existir” sem pensar, se, por exemplo, eu estiver no estado do coma. Logo, posso relativizar a lógica cartesiana.

Ora bem, se tenho (ouso confeccionar este texto dissertativo na primeira pessoa, diferente do que recomenda a metodologia científica, porque pretendo me aproximar do objeto pesquisado) a verdade como desvelamento, se a tenho como desocultação do ente, posso pensar na evidência como elemento revelador desse desvelamento, a fim de que a “evidência” (como elemento instrumental) de algo me conduza à certeza para um escorreito pronunciamento judicial decisional.

Ainda nessa ótica epistemológica, importa dizer que, se a ideia para a qual se volta o julgador, for constituída por elementos claros e distintos aptos a fornecer um cenário indubitável, para aquele momento processual, mesmo que em contraditório difuso, descortinar-se-á um panorama de evidência, suscetível de ser tutelado (e “tutela” é proteção) de antemão. Isso implica dizer que a “tutela de (ou “da”) evidência' não depende de estado emergencial. Assim é que, o estado emergencial se coaduna com as tutelas de urgência, diferentemente da tutela de evidência, que dele independe. Nada impede, entretanto, que se aglutinem os dois estados: a evidência e a urgência num dado casuístico. Ambos serão tutelados na medida que se revelem como tal, isto é cumpridas as suas condicionantes normatizadas.

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Nessa perspectiva, a certeza só é revelada quando há evidência, implicando afirmar que a evidência é uma transparência, é um desvelamento da essência das coisas, com uma revelação de algo até então oculto. Então, a evidência precede à certeza, porquanto, a rigor, o juiz só atinge o estado de certeza, no caso de antecipação de tutela da evidência, quando há essa evidência, de forma que a certeza se alicerça na evidência. Deveras, a certeza é o estado de espírito resultante da cognição judicial a partir de elementos fáticos evidentes, sem sombra de engano.

Evidência, desse ponto de vista, é instrumentalização, é manifestação, é revelação de uma verdade que se pretende demonstrar, a fim de que o magistrado chegue a um estado de certeza tal que possa tutelar uma situação jurídica, sem receio de equívocos, num dado momento processual, embrionário, ou não. Assim é que, a evidência, como desocultamento episódico, revela que uma afirmação, inserida numa tese, é verdadeira e digna de credibilidade, uma vez que transparece tal como se afirma.

Nessa quadra, há certeza quando há confiança na verdade e essa certeza está  firmada na evidência. Havendo evidência e, por meio dessa evidência, o objeto de apreciação judicial for acompanhado de clareza, de inequivocidade, chegar-se-á à certeza de uma verdade, dentro da dialeticidade processual. Quando não há essa evidência, estar-se-á num estado de “ignorância” acerca do objeto afirmado, ou, num estado de espírito mais adiantado: a “dúvida”; ou mais adiantado: a “opinião”, estados progressivos intermediários, que não se coadunam com a tutela de evidência, embora possam servir de base para a tutela de urgência.

Para uma certeza se solidificar, necessário se faz a presença da evidência, que instrumentaliza a verdade de uma tese, afastando os erros e as falsidades. Ora bem, se o juiz deve conhecer, independentemente de provas, o Direito (com exceção do direito estadual, municipal, estrangeiro ou consuetudinário), no brocardo jura novit curia, em tese o direito já é evidente, porque não se há de prová-lo (com as exceções acima elencadas). Logo, a questão da “evidência” deve se vincular à questão fática, dentro do tradicional binômio: questão jurídica/questão fática ou uma correspondência entre o fato e o fundamento jurídico, que evidencie uma necessidade de se tutelar a pretensão.

Surge, portanto, a verdade, quando há evidência, como revelação clara e transparente do que estava oculto até então, exteriorizando uma dada realidade, daí porque a evidência – diga-se uma vez mais – instrumentaliza, de forma inequívoca, a verdade de uma afirmação, com o escopo de criar uma certeza no espírito do julgador, de tal maneira suscetível de adiantamento de efeitos (pode ser de alguns deles) de uma proteção estatal meritória, efetivando uma jurisdição que se propôs eficaz para se ter um Estado eficiente.

Na sequência temática, evidência constitui a convicção razoável resultante de dados probatórios inegáveis, conduzindo o magistrado cognoscente – pelo menos para aquele momento processual interlocutório – à certeza (conhecimento claro e seguro daquilo que se afirma, embora possa não ser a possessão de uma verdade) daquela afirmação fática, como verdadeira, sem indícios de falácias. Não se pode, destarte, formar certeza com fundamento em meras alegações duvidosas, nem se pode persuadir com um tecido argumentativo construído sobre conjecturas, sem elementos persuasivos razoáveis, acompanhados de um cenário probatório tal que altere o estado de espírito do julgador, levando-o a uma convicção na certeza de antecipar o resultado (ou parte dele) de uma proteção estatal, fincada em tábua principiológica/axiológica constitucional garantista.

Em tom de conclusão, o que se vem dizer é que o novo instituto da “tutela da evidência” que já se mostra salutar e promissor, reclamando, entretanto, uma investigação mais aprofundada, pede licença para entrar nos portais da ambiência jurídica, com uma tonalidade de esperança, de credibilidade e seriedade da Justiça, devendo ser bem recebida e convidada a fazer morada, deixando as suas boas marcas de um instituto que vem em bom momento, de forma que este texto constitui apenas um “tijolo” a mais na construção da pesquisa, almejando que outros tantos possam se somar, como uma orquestração tênue e harmoniosa. É o que se espera.

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Sobre o autor
Ézio Luiz Pereira

Juiz de Direito – ES,Mestre em Direito das Relações Privadas pela FDC – RJ,Mestre em Teologia (ênfase em Bibliologia) pelo SBTe – MG,Especialista em Direito Constitucional pela Consultime - ES,Membro da Academia Brasileira de Mestres e Educadores,Membro da Academia Cachoeirense de Letras,Practitioner em Programação Neurolingüística pelo INDESP,Palestrante, articulista e escritor,Autor de quatorze obras literárias publicadas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Ézio Luiz. O que é a “evidência” na “tutela da evidência” do novo CPC/2015?: Uma Perspectiva Jusfilosófica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4575, 10 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45724. Acesso em: 7 nov. 2024.

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