Resumo: Esse artigo tem por finalidade aplicar a Teoria Sistêmica de Luhmann e as Teorias da Ação Comunicativa e da Esfera Pública de Habermas na decisão unânime do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da família homoafetiva, aplicando os conceitos dessas teorias sociológicas no caso concreto e abordando o contexto social e jurídico de tal decisão.
Palavras-chave: Família homoafetiva. União homoafetiva. Direito da Família. ADI 4277.
APRESENTAÇÃO
A Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 expressa uma contigência social e jurídica da atual sociedade brasileira na resolução de uma expectativa em relação às novas formas de vínculos afetivos das famílias. Essas novas formas de constituição familiar buscaram, através dessa ação, ter seus direitos reconhecidos e efetivados.
O principal objetivo desse artigo é embasar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), como também explicá-la em acordo com a Teoria Sistêmica de Niklas Luhmann, resultado da complexificação do sistema família na atual sociedade brasileira.
Esse estudo abordará adicionalmente as idéias de Jurge Habermas sobre Esfera Pública, Consenso e a Teoria da Ação Comunicativa para análise da tramitação e julgamento dessa ação no STF, bem como na contextualização desse debate entre setores divergentes a respeito do assunto em pauta.
A discussão sobre a efetivação dos direitos familiares dos casais homoafetivos já é tema recorrente de outros trabalhos já publicados, como: “Família, direitos e uma nova cidadania” do autor Edson Fachin e obras do Doutor em direito, Paulo Netto Lôbo. Essas abordagens e outras bibliografias servirão também de fundamentação teórica para o presente artigo.
Quanto à metodologia, em um primeiro momento ocorreu a pesquisa sobre a tramitação de todo o processo no STF, a leitura da petição inicial e das peças envolvidas, do voto de cada ministro no julgamento, em especial a do relator Min. Ayres Brito. Após isso, buscou-se confrontar as opiniões de grupos sociais e religiosos que divergem sobre a discussão da homoafetividade, em um contexto axiológico.
Por último, aplicou-se as teorias já mencionadas que fundamentam esse trabalho no caso concreto, a ADI 4277 e seu respectivo julgamento pelo STF.
PETIÇAO INICIAL
A ADI 4277 foi protocolada na Corte inicialmente como ADPF 178. Teve por objetivo a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Pediu, também, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem estendidos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.
A ADI 4277 foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) com pedido de interpretação conforme a Constituição Federal do artigo 1.723 do Código Civil, para que se reconheça sua incidência também sobre a união entre pessoas do mesmo sexo, de natureza pública, contínua e duradoura, formada com o objetivo de constituição de família.
A PGR sustentou que o não reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar feria os princípios da dignidade humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal – CF; da igualdade (artigo 5º, caput, da CF); da vedação de discriminação odiosa (artigo 3º, inciso V, da CF); da liberdade (artigo 5º, caput) e da proteção à segurança jurídica (artigo 5º, caput), todos da Constituição Federal (CF). Como, pode-se inferir do trecho extraído da petição inicial da APDF 178:
Em outras palavras, defender-se-á que o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, na ordem jurídica brasileira independe de qualquer mediação legislativa, em razão da possibilidade de aplicação imediata dos princípios constitucionais já mencionados. (APDF 178)
A DECISÃO DO STF
O julgamento da ADI 4277 teve como relator da ação o ministro Ayres Britto, que votou no sentido de dar interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723, do Código Civil, que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
O ministro Ayres Britto argumentou que o artigo 3º, inciso IV, da CF veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual. “O sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”, observou o ministro, para concluir que qualquer depreciação da união estável homoafetiva colide, portanto, com o inciso IV do artigo 3º da CF. Conforme citou o ministro durante seu voto:
Verbalizo que merecem guarida os pedidos formulados pelos requerentes de ambas as ações. Pedido de “interpretação conforme à Constituição” do dispositivo legal impugnado (art. 1.723 do Código Civil), porquanto nela mesma, Constituição, é que se encontram as decisivas respostas para o tratamento jurídico a ser conferido às uniões homoafetivas que se caracterizem por sua durabilidade, conhecimento do público (não-clandestinidade, portanto) e continuidade, além do propósito ou verdadeiro anseio de constituição de uma família. (Ayres Brito, pág.7).
Os ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, tanto quanto as ministras Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie acompanharam o entendimento do ministro Ayres Britto, pela procedência da ação que teve efeito vinculante, no sentido de dar interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723, do Código Civil, que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
Dessa forma decisão unânime do STF, expressa em forma de mutação constitucional e respaldada na interpretação constitucional uniforme, sinaliza a resolução de um conflito latente de parte significativa da sociedade brasileira e negligenciada formalmente pelo Poder Legislativo.
CONTIGÊNCIA: A NOVA FORMA DE FAMILIA
A demanda pela efetivação dos direitos constitucionais dos homoafetivos é resultado das mudanças sociais nas relações de família. A família sofreu, nas últimas décadas, profundas mudanças de função, natureza, composição e, conseqüentemente, de concepção, sobretudo após o advento do Estado social.
As novas formas familiares não foram acompanhadas pelos textos legais, nem ao menos pela interpretação de tais, gerando uma expectativa social para atender a família homoafetiva que lutava por seus direitos. Isso pode ser evidenciado nas palavras do ministro Ayres Brito durante seu voto:
Em suma, estamos a lidar com um tipo de dissenso judicial que reflete o fato histórico de que nada incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade.( Ayres Brito, pág.4)
Com base na Teoria Sistêmica de Luhmann a família é um sistema. Assim, sofreu ao longo do último século uma complexidade em suas relações que por sua vez gerou uma contigência. Tal contigência é o reconhecimento legal-jurídico de outras formas familiares distintas do modelo patriarcal, mas que já são realidade da sociedade.
O reconhecimento dos direitos das famílias homoafetivas é a contigência que provocou a ADI 4277. Assim como a legislação possuía uma lacuna que promovia a frustração de uma significativa parte da população. A decisão do STF, portanto entra de acordo com as idéias de Luhmann que vêem o direito como um instrumento de relação entre os sistemas formadores da sociedade e com o próprio meio-ambiente, sendo utilizado para solucionar as contigências geradas pela complexidade social.
Adepto de uma teoria particularmente própria do pensamento sistêmico, Luhmann teorizou a sociedade como um sistema autopoiético Ao empregar os sistemas autopoiéticos ao direito, Luhmann consegue reduzir a complexidade social. De tal modo, os estudos de Luhmann apregoam que o direito, em seu viés autopoiético, se recria com base nos seus próprios elementos. Sua autorreferência permite que o direito mude a sociedade e se altere ao mesmo tempo movendo-se com base em seu código binário (direito/não-direito). Tal característica permite a construção de um sistema jurídico dinâmico mais adequado à hipercomplexidade da sociedade atual. Como afirma o próprio Boa Ventura Santos sobre Luhmann:
O direito é um desses sub-sistemas, um sistema de comunicações jurídicas que funciona com o seu próprio código binário: legal/ilegal. O direito só se regula a si próprio. O direito é um ambiente que rodeia os outros sub-sistemas sociais tal como este são o meio ambiente do direito. Mas, seja quais forem as “vibrações” ou “perturbações” que um dado sistema, em consequência da sua interdependência funcional ou coexistência, possa “causar” noutro sistema, elas terão irrelevantes se não forem convertidas em respostas ou reacções autopoiéticas. (SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente – contra o desperdício da experiência; 4.ed. São Paulo: Cortez Editora, 2000, p. 159)
A interpretação do STF na decisão de reconhecimento dos direitos homoafetivos de constituir família nada mais é do que o próprio direito se recriando e se transformando em virtude de atender uma expectativa do futuro da sociedade.
Por tal, o direito como sistema autopoiético pode-se recriar em processo interpretativo para produzir respostas as contigências e frustrações do ambiente. No dado caso, a negligência do Legislativo na produção ou na mudança(do aspecto formal) das normas que regulavam o direito dos homoafetivos corroboravam para intensificação da frustração.
Assim o direito, regulando a si próprio não criou “lei”, ou seja não usurpou a função sistêmica do Legislativo, se utilizou de procedimentos hermenêuticos, que são intrínsecos do próprio direito, para amparar a contigência homoafetiva. A verdade é que a decisão em tal processo não sinaliza uma corrupção sistêmica, pois o STF, ao interpretar a legislação constitucional, apenas está aplicando o direito pré-existente no texto constitucional, lhe dando uma conotação que voltada, agora, a sociedade moderna que se complexificou.
A COMUNICAÇÃO E O CONSENSO:
O elemento dos sistemas sociais, assim, é a comunicação. Para a teoria de Luhmann, a comunicação não é uma relação entre pessoas. Comunicação só se comunica com comunicação gerando mais comunicação. No caso, o que interessa não é o que foi compreendido da comunicação, mas o que foi realizado para dar continuidade à sociedade. A má-compreensão também contribui para a comunicação. No caso, não é compreensão como processo psíquico,como percepção. A compreensão não é a mera duplicação em uma outra consciência, mas no interior do sistema permite a criação de uma nova comunicação. É, assim, o elemento autopoiético da sociedade, permitindo a sua própria recriação.
De tal forma que ao julgar a ADI 4277 procedente os ministros promoveram uma nova comunicação, elemento que simbolizou a recriação social já percebida na realidade com presença relevante de grande números de novas formas familiares, com vínculos homoafetivos, marginalizados pelo Estado.
Assim, como Luhmann, Jurge Habermas interpretaria esse julgamento como resultado da comunicação. Sob a ótica de Habermas, em sociedades complexas a esfera pública forma uma estrutura intermediária que faz a mediação entre o sistema político, de um lado, e os setores privados do mundo da vida e sistemas de ação especializados em termos de funções de outro lado. Mas para que a opinião pública seja formada, tem de existir liberdade de expressão, de reunião e de associação. Por conseguinte, o acesso a tais direitos deve ser garantido a todos os cidadãos.
É inegável a intensa discussão social que ocorre sobre os homoafeticos, seu vínculos familiares e seus respectivos direitos, em quanto família. Participaram do processo de tramitação os mais variados setores sociais, do que se pode concluir que o julgamento da ADI 4277 se encaixa perfeitamente na Teoria da Esfera Pública de Habermas.
Esse embate pode ser evidenciado pela tabela extraída do site oficial do Supremo Tribuanal Federal de acompanhamento processual do referido caso:
Acompanhamento Processual
ADI 4277 - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
29/05/2011 Petição |
(PETIÇÃO ELETRÔNICA COM CERTIFICAÇÃO DIGITAL) CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL - CNBB - MANIFESTA INTERESSE EM PRODUZIR SUSTENTAÇÃO ORAL. Ao Gabinete do Ministro Relator, sem os autos. |
04/05/2011 Petição |
Exemplo 24819/2011 - 04/05/2011 - ASSOCIAÇÃO EDUARDO BANKS REQUER JUNTADA DE PROCURAÇÃO E/OU SUBSTABELECIMENTO E MANIFESTA INTERESSE EM PRODUZIR SUSTENTAÇÃO ORAL. Ao Gabinete do Ministro Relator, com os autos. |
04/05/2011 |
Decisão: Chamadas, para julgamento em conjunto, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 e a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, após o voto do Senhor Ministro Ayres Britto (Relator), que julgava parcialmente prejudicada a ADPF, recebendo o pedido residual como ação direta de inconstitucionalidade, e procedentes ambas as ações, foi o julgamento suspenso. Impedido o Senhor Ministro Dias Toffoli. Ausente, justificadamente, a Senhora Ministra Ellen Gracie. Falaram, pela requerente da ADI 4.277, o Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, Procurador-Geral da República; pelo requerente da ADPF 132, o Professor Luís Roberto Barroso; pela Advocacia-Geral da União, o Ministro Luís Inácio Lucena Adams; pelos amici curiae Conectas Direitos Humanos; Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM; Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual; Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais - ABGLT; Grupo de Estudos em Direito Internacional da U |
18/05/2011 Expedido telex/fax nº |
2442 em 17/05/2011, à Câmara dos Deputados |
18/05/2011 Expedido telex/fax nº |
2441 em 17/05/2011, ao Senado Federal |
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp
Essa tabela evidencia a participação de setores sociais no debate público sobre os direitos da família homoafetiva. De um lado os Advogados da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e da Associação Eduardo Banks realizaram sustentação oral perante a tribuna do Supremo Tribunal Federal (STF), na qualidade de amici curiae (amigos da Corte), contra pedidos feitos na ADI 4277. Do outro, diversos grupos em defesa dos direitos homoafetivos e dos Direitos Humanos, já mencionados na tabela acima.
"Argumentação", "alegação" e "discurso": são esses princípios comunicativos que direcionam a análise habermasiana. Os direitos de expressão, pensamento e debate, com razoável troca entre iguais, conformam o ideal que interessa a Habermas. O Julgamento da ADI 4277, portanto, entra em conformidade com os ideais habermasianos.
É fato também de que a alegação do advogado da Associação Eduardo Banks, Ralph Anzolin Lichote, não se enquadra na teoria de esfera pública, conforme trecho:
Esse julgamento pode ter consequências inimagináveis para todos se dermos um passo errado. Imaginem o fardo de ter que conviver com esta cruz sabendo que, para a maioria do povo brasileiro, Deus criou o casamento quando criou Adão e Eva.
Essa incoerência entre o discurso do advogado e a Teoria da esfera pública pelo fato de Habermas entender que na verdade, a esfera pública pressupunha uma mudança sociocultural. Deduz-se que as exigências por reformas estatais e governamentais eram mais o efeito do que a causa da formação da esfera pública. O advogado em sua fala, conforme explicitado, inverte a seqüência proposta por Habermas, inferindo que qualquer mudança legal proposta pelo julgamento iria provocar consequências sociais. O que de fato também é verdade, mas ele não atentou para as mudanças socioculturais que promoveram esse embate na esfera pública.
No tocante a discussão que foi promovida durante o julgamento e ao longo de todo o processo, nota-se que os grupos religiosos somente divergem com relação a nova concepção de família. Percebe-se no próprio discurso dos setores religiosos a defesa dos direitos humanos dos homoafetivos, bem como a tentativa de promover dignidade a esse grupo socialmente marginalizado. Na visão habermasiana, essa aproximação é um consenso promovido pela forte discussão a respeito do tema “homoafetividade”.
A votação unânime que inferiu como procedente a ADI 4277 é a máxima expressão desse consenso entre grupos formalmente divergentes, mas que se aproximam na essência, na defesa da pessoa humana e de seus direitos.
BIBLIOGRAFIA
http://jus.uol.com.br/revista/autor-luiz-netto-lobo
LUIZ EDSON FACHIN, Família, direitos e uma nova cidadania
http://stf.jus.br/portal
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Preto (MG), 24.out.01)
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual, o Preconceito e a Justiça. 3. ed.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além
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Horizonte: Del Rey, 2002