O prenúncio da edição de um novo Código de Processo Civil reavivou as esperanças na superação das dificuldades que obstaram a consecução da efetividade processual durante as décadas de vigência do CPC de 1973. Em resposta às expectativas depositadas, as linhas mestras da nova codificação revelam um esforço claro do legislador no sentido de promover o efetivo cumprimento da função sócio-político-jurídica do processo: a viabilização plena e tempestiva do acesso à Justiça.
Neste escopo, encomendou-se a tarefa de realizar um novo CPC que traduzisse os anseios normativos de seu lugar e de seu tempo; um código inserido no seio do contexto social, político e jurídico, onde (e para o qual) foi criado; uma norma acreditada da esperança, pontualmente declarada em sua Exposição de Motivos, de “converter o processo em instrumento incluído no contexto social em que produzirá o seu resultado”.1
Todavia, a par de haver logrado o intento em substanciosa parte de seu texto, a análise acurada da nova codificação revela que o NCPC, em ao menos um ponto, perdeu o fio de sintonia para com a realidade que o alimenta. Fala-se da nova regra de impedimento constante do art. 144, inciso IX.
Seu teor segue transcrito:
“Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo:
(...)
IX – quando promover ação contra a parte ou seu advogado.”
Com efeito, a norma em comento presume, em absoluto, a parcialidade do magistrado que tenha ajuizado ação judicial contra uma das partes, proibindo-o peremptoriamente de funcionar no feito, por reputar que o problema pessoal revelado pelo juiz poderia comprometer a isenção de seu julgamento.2
Como se vê, o inciso em questão não deixa margem a qualquer juízo de valor: trata-se de subsunção conducente ao inexorável impedimento do magistrado.
Ocorre que, a pretexto de enaltecer a imparcialidade do juiz - em aparente coerência com os auspícios de um processo devido - o indigitado dispositivo acabou por ignorar, candidamente, o contexto de sociedade de massa em que está inserido, cujas marcas de produção em larga escala e concentração industrial há muito sujeitaram os cidadãos brasileiros - incluindo os magistrados - à idêntica condição de consumidores, hipossuficientes frente aos desmandos dos grandes conglomerados.
Como resultado, a norma fatalmente ensejará o impedimento de grande parcela da magistratura brasileira para julgar a maior parte dos litígios submetidos ao crivo jurisdicional, isto é: as ações ajuizadas contra os grandes fornecedores de bens e serviços, notadamente, bancos e prestadoras de serviços essenciais como o de telefonia. 3
Segundo os dados colhidos no estudo “O uso da Justiça e o litígio no Brasil”, patrocinado pela Associação dos Magistrados do Brasil – AMB4, além da administração pública, justamente os bancos, instituições de crédito e prestadoras de serviços de telefonia e comunicações figuram como os maiores litigantes nos processos em trâmite no Poder Judiciário.5
Em um simples exemplo: o juiz de pequena comarca do interior que tenha proposto uma ação contra o “Banco do Brasil” estará, fatalmente, impedido de julgar todas as demandas propostas pelos seus jurisdicionados em face dessa instituição financeira. Neste exemplo, a variável “Banco do Brasil” poderia ser facilmente substituída por outro banco ou empresa prestadora de serviços, sem que o resultado se alterasse.
Com o perdão pelo recurso ao exagero, poder-se-ia, então, pontuar as seguintes consequências (uma delas já adiantada): a) juízes que tenham figurado como autores em ações contra os grandes bancos e telefônicas (v.g.), estariam, automaticamente, impedidos de julgar as demandas propostas por milhares de pessoas lesadas, ensejando, via de consequência, a remessa dos autos ao seu substituto legal, o que representará, fatidicamente, grave prejuízo à efetividade e à duração razoável do processo; b) juízes que porventura não tenham proposto ações contra bancos e outros grandes prestadores, caso almejem exercer jurisdição nesses feitos, absurdamente, deverão suportar eventuais violações e abdicar de postularem a sua correção pela via jurisdicional para não se tornarem “maculados” pela imparcialidade6.
Exsurge claro, portanto, que, a par das boas intenções propugnadas pelo inciso IX do art. 144 do NCPC, a nova regra é inadequada ao seu contexto social.
Para além disso, mostra-se desnecessária. Isso porque, a bem da verdade, a hipótese de suspeição descrita no inciso IV do art. 145 do NCPC já atenderia muito bem ao escopo de preservar a imparcialidade do magistrado no feito: ao prever a suspeição do juiz "interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes", este dispositivo funda a análise de parcialidade no eventual interesse (concreto) do magistrado no feito, permitindo, assim, um melhor equacionamento de cada situação, a proporcionar soluções muito mais racionais do que a vazia presunção de parcialidade contida na regra de impedimento.
Diante do que brevemente se expôs, entende-se que a nova hipótese de impedimento trazida pelo inciso IX do art. 144 do NCPC, ao embasar a aferição da parcialidade do magistrado no simples fato de possuir ação ajuizada contra uma das partes, acabou traindo a finalidade declinada em sua própria exposição de motivos: amoldar-se a seu contexto social. Por olvidá-lo, está a um passo de minar a tão almejada efetividade do processo, norte maior do diploma em que veio insculpida.
1Ideias essas já preconizadas por Cândido Rangel Dinamarco, em sua clássica obra “A Instrumentalidade do Processo". 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
2. GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos; OLIVEIRA Jr., Zulmar Duarte de. “Teoria Geral do Processo - Comentários ao CPC de 2015 - Parte Geral.” iBooks. p. 753
3Como é cediço, o advento da sociedade de massa propiciou o aumento exponencial da litigiosidade nos diversos âmbitos sociais, desde os mais vulneráveis, que ao longo dos últimos anos passaram a melhor conhecer e a dispor de meios para reivindicar os seus direitos; como, evidentemente, os setores historicamente cônscios de seus direitos e dos meios de os fazerem valer – pirâmide no topo da qual se encontram os juízes.
4Conforme os dados colhidos, o bloco econômico representado pelo setor financeiro é o principal demandado em primeiro grau de jurisdição nos seguintes Tribunais de Justiça: Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo. O setor financeiro predomina também como parte passiva em Segundo Grau entre os 100 maiores litigantes em sete Unidades da Federação: Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, São Paulo e Santa Catarina. Esse quadro se repete no polo passivo das Turmas Recursais: as empresas do setor financeiro novamente foram as que mais concentraram processos em seis das 11 Unidades da Federação onde realizada a pesquisa (Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Santa Catarina e São Paulo).
5<https://www.placardajustica.com.br/assets/files/placardajustica_o_uso_da_justica_e_o_litigio_no_brasil.pdf>. Acesso em: 19 de janeiro de 2016.
6 - Neste caso, poder-se-ia até mesmo cogitar de possível infringência, embora indireta, ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5o, XXXV)