28 de janeiro é o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data presta homenagem aos agentes do Ministério do Trabalho mortos em serviço durante uma ação de fiscalização, em 2004, e alerta para a contínua necessidade de combate à escravidão moderna.
O Ministério divulgou o saldo das 140 operações realizadas, em 2015, pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel para combater o trabalho escravo no país. De acordo com balanço, as ações identificaram 1.010 trabalhadores em condições análogas às de escravo, em 90 dos 257 estabelecimentos fiscalizados.
Mantendo a tendência de 2014, a maioria das vítimas de trabalho escravo no Brasil foi localizada em áreas urbanas que concentraram 61% dos casos (607 trabalhadores em 85 ações). Nas 55 operações realizadas na área rural, 403 pessoas foram identificadas.
“Nós não toleramos e não iremos tolerar a submissão de um cidadão brasileiro, de uma cidadã brasileira ou de qualquer país a esta condição degradante que retira sua condição humana. Nossas instituições vêm enfrentando este tema de forma corajosa e determinada há muito tempo. Em 20 anos de atuação do Grupo Móvel, localizamos quase 50 mil vítimas nessa situação”, destacou o ministro do Trabalho e Previdência Social, Miguel Rossetto, ministério que coordena as ações de fiscalização.
Como resultado das operações, a fiscalização emitiu no ano passado 2.748 autos de infração, com pagamento de R$ 3,1 bilhões em indenização para os trabalhadores. Além da emissão de 694 guias para recebimento do Seguro-desemprego e 171 Carteiras de Trabalho e Previdência Social (CTPS).
Os dados revelam que doze trabalhadores resgatados de trabalho escravo em 2015, tinham idade inferior aos 16 anos e que, outros 28 tinham idade entre 16 e 18 anos, atuando em atividades da Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (TIP). Do total de trabalhadores alcançados, 65 deles eram imigrantes de diversas nacionalidades, entre bolivianos, chineses, peruanos e haitianos.
A extração de minérios concentrou 31,05% dos trabalhadores alcançados no ano, com 313 vítimas trabalhando na extração e britamento de pedras, extração de minério de ferro e extração de minérios de metais preciosos. O ramo da construção civil representa 18,55% do total (187 trabalhadores localizados). A agricultura e a pecuária, atividades com histórico de resgate aparecem em seguida com 15,18% e 14,29% do número de trabalhadores identificados em condições análogas a de escravo.
O estado de Minas Gerais liderou o número de trabalhadores resgatados, com 432 vítimas (43%). Em seguida estão o Maranhão com 107 resgates (11%), Rio de Janeiro com 87 (9%), Ceará com 70 resgates (7%) e São Paulo com 66 vítimas (6%). Pernambuco não teve sequer um caso de trabalhador encontrado em situação análoga à de escravo.
O combate ao trabalho escravo no Brasil suscita dúvidas e controvérsias entre órgãos públicos de fiscalização, Poder Judiciário e representantes dos setores patronal e profissional.
Para entender a celeuma, é preciso analisar as normas e tratados internacionais relacionados à matéria, visto que, em virtude dos compromissos assumidos no plano internacional, o Brasil realizou diversas alterações legislativas e age, desde então, para cumpri-los.
Em 28/6/1930, a Organização Internacional do Trabalho – OIT adotou a Convenção n. 29, também denominada como a Convenção sobre o Trabalho Forçado, trazendo conceitos e objetivos, além de regular a realização do trabalho forçado ou obrigatório no mundo.
Mais recentemente, em 5 de junho de 1957, a OIT adotou a Convenção n. 105, em complemento ao tratado internacional anterior, prevendo a necessidade de abolição do trabalho forçado como método de desenvolvimento econômico (dumping social). Há, ainda, no plano internacional, a Convenção sobre a Escravatura de 1926 e o Pacto de San José da Costa Rica.
No âmbito interno, o art. 149 do Código Penal tratou de indicar taxativamente as hipóteses em que se configuraria a existência do trabalho em condições análogas às de escravo:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
O legislador indicou critérios objetivos para caracterização do trabalho moderno em condições análogas às de escravo, como a submissão a trabalhos forçados ou jornadas exaustivas, a sujeição a condições degradantes de trabalho, a restrição à locomoção em virtude de dívida, cerceio ao uso de qualquer meio de transporte ou vigilância ostensiva. Esses elementos balizadores foram complementados através de sucessivas normas infralegais emitidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, todas de duvidosa constitucionalidade, pois estendem os critérios e flexibilizam condições objetivas, que deveriam estar presentes para que se atestasse a existência de trabalho degradante. As normas permitem ampla subjetividade e estipulam penas com base apenas em decisões administrativas tomadas no âmbito do mesmo órgão que aplica as sanções.
Em 17 de novembro de 2003, o Ministério do Trabalho e Emprego, por meio da Portaria nº 1.234, estabeleceu procedimentos para encaminhamento de informações sobre inspeções do trabalho a outros órgãos, criando assim a relação de empregadores que submetem trabalhadores a formas degradantes de trabalho ou os mantêm em condições análogas à de escravo.
Menos de um ano depois, a Portaria nº 540, de 15 de outubro de 2004, do Ministério do Trabalho e Emprego criou o “Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo”. O Cadastro, mais conhecido como “lista suja do trabalho escravo”, reúne empregadores flagrados cometendo esse crime, após decisão definitiva administrativa dos autos de infração lavrados. As informações do cadastro subsidiavam as empresas signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, estabelecendo restrições quanto à realização de negócios com quem está na “lista suja”.
Por sua vez, a Portaria Interministerial nº 2, de 12 de maio de 2011, do Ministério do Trabalho e Emprego e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, revogou a Portaria n. 540 e atualizou seus termos.
Desde então, o Judiciário tem sido inundado por ações de empresas autuadas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego, questionando a subjetividade das inspeções trabalhistas.
O trabalho de combate à escravidão moderna é importante e deve prosseguir. Porém, atribuir competência aos agentes de fiscalização para atestar a ocorrência de trabalho análogo ao de escravo, aplicar graves penas nas empresas e ainda apreciar as eventuais insurgências foi, sem dúvidas, um erro, que ofende valores e dispositivos constitucionais, como, por exemplo, a exclusividade do exercício da jurisdição pelo Poder Judiciário.
A Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias reagiu às sucessivas inspeções nas empresas de construção civil e ingressou, perante o Supremo Tribunal Federal, com a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5209, requerendo, liminarmente, a imediata proibição da veiculação da Lista Suja (Cadastro de Empregadores), o que foi deferido por decisão do Ministro Ricardo Lewandovski, em 23/12/2014.
Surpreendentemente, notificado para dar cumprimento à decisão da máxima autoridade judiciária do país, o Ministério do Trabalho e Emprego revogou a Portaria Interministerial n. 2 e editou a Portaria Interministerial MTE e SDH nº 02, de 31 de março de 2015 (publicada em Diário Oficial da União em 01/04/2015).
Tratou-se de uma clara tentativa de subterfúgio, para que a ADIN 5209 perdesse seu objeto, em uma triste demonstração de desrespeito institucional. Provocado, o STF determinou o respeito à decisão de seu Ministro Presidente, mantendo a proibição da veiculação do Cadastro de Empregadores.
No entanto, ainda hoje é possível ter fácil acesso à lista, em uma lamentável demonstração de desrespeito à decisão do Supremo Tribunal Federal e de pouco apreço desse governo ao Estado de Direito e às instituições republicanas. Brasil deveria estar em um estágio mais avançado quanto a isso.
Nesse cenário de pouca clareza normativa e de desapego à ordem institucional, enxerga-se com preocupação a alteração promovida, pela Emenda Constitucional n. 81, de 5 de junho de 2014, no artigo 243 da Constituição Federal.
Originalmente, o dispositivo constitucional previa a expropriação para destinação à reforma agrária, sem qualquer indenização ao proprietário, de qualquer imóvel onde forem constatadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas. Com a nova redação, também serão expropriadas as propriedades, rurais ou urbanas, onde for flagrada a exploração de trabalho escravo “na forma da lei”.
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.
Nesse contexto de insegurança e controvérsias jurídicas, causa temor e preocupação a nova disposição constitucional. Há grandes questões que precisam ser respondidas. Na forma de qual lei? Quem será o responsável pela “localização” de tais propriedades, os agentes de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego? A Justiça será necessariamente provocada, ou a ideia desse governo é agir à revelia da lei e das instituições?
Como visto acima, cerca de 20% dos flagrantes realizados em 2015 foram em áreas urbanas no setor da construção civil. Com isso, as incorporações imobiliárias serão expropriadas? E os terceiros de boa fé adquirentes de unidades? Terão seus bens imóveis destinados a assentamentos?
Na maior parte dos casos, a Justiça tem decidido em favor dos empresários os imbróglios envolvendo os “flagrantes” realizados pelo Ministério do Trabalho e Emprego. O conceito de trabalho degradante é de um subjetivismo totalmente indesejável, não havendo consenso sequer entre os próprios órgãos de fiscalização.
Adicionando mais polêmica ao assunto, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado n. 432, do senador Romero Jucá, que, a pretexto de regulamentar a Emenda Constitucional n. 81, pretende alterar o disposto no art. 149 do Código Penal, para retirar as condições degradantes e jornada exaustiva, reduzindo o conceito de trabalho análogo ao de escravo apenas às situações de trabalhos forçados e servidão.
A proposta enfrenta a oposição declarada do Ministério Público do Trabalho e do governo, mas conta com a simpatia dos empresários e dos representantes dos setores atingidos pelas fiscalizações do Ministério do Trabalho. Em 15 de dezembro do ano passado, a proposta quase foi levada à votação no plenário do Senado e permanece em regime de urgência, podendo ser votada no início desse ano.
E é assim, nesse contexto de dúvidas, enfrentamentos institucionais, litígios judiciais, arbitrariedades e persistência da exploração da mão de obra em condições desumanas que o Brasil celebra (?) o seu Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.
A saúde e a segurança do trabalhador brasileiro podem e devem conviver com a livre iniciativa e com a exploração econômica das atividades empresariais. Para tanto, o país pede menos ideologia e mais objetividade no trato desse tema tão importante, que precisa ser de uma vez superado para o Brasil ser afirmar como uma economia de mercado do Século XXI.