Foi assinada Medida Provisória com a justificativa de evitar demissões, implementando novas regras de acordos de leniência.
Formalmente a medida é inconstitucional, pois não atende aos pressupostos constitucionais exigidos pelo artigo 62 da Constituição Federal, que são a urgência e a relevância.
A matéria deveria ser objeto de discussão e levada ao Congresso Nacional em projeto de lei, não havendo razões para urgência.
O texto assinado pela presidente Dilma Rousseff, numa solenidade no Palácio do Planalto, no dia 18 dezembro do ano passado, mudava a chamada Lei Anticorrupção, em vigor há pouco menos de dois anos. A partir dali, as empresas não mais precisavam admitir prática de crime para aderir ao acordo. Quem assinasse passava a ficar liberado para voltar a contratar com o governo.
A versão original determinava que as empresas teriam que reparar integralmente o dano causado aos cofres públicos. Essa era a “obrigação necessária” para a assinatura de um acordo de leniência em que companhia envolvida em irregularidades pudesse pagar pelos atos de corrupção, e começar de novo a operar com o setor público. Também sumiu da versão final outro trecho estabelecendo que forma, prazo e condições da reparação deveriam constar dos termos do acordo. Na solenidade daquele dia 18, a exigência de reparação integral chegou a ser citada no discurso da Presidente da República.
De outro modo ela afronta aos princípios da moralidade, da eficiência, da razoabilidade, que devem nortear o comportamento da administração, consoante o artigo 37 da Constituição Federal.
Isso porque, de forma dissimulada, acoberta empresas corruptas por permitir que as companhias, mesmo sem sanções, possam assinar novos contratos com o Poder Público. Seu objetivo é escandaloso, permitindo que empresas com cultura de corrupção, que francamente participaram de um processo afrontoso aos interesses da população, continuem a contratar com o Governo Federal.
Afronta-se o que se pode entender como acordo de leniência.
Leniência é brandura, suavidade, mansidão. É algo que já se aplica no direito penal, Lei 9.807/99. Ainda se aplica em sede de direito econômico, na defesa da livre concorrência.
O acordo de leniência é o ajuste que permite ao infrator participar da investigação, com o objetivo de prevenir ou reparar dano de interesse coletivo.
Objetiva o acordo de leniência a extinção da ação punitiva da administração pública ou redução de penalidade que seria imposta.
No Brasil, a ineficácia dos instrumentos de combate aos atos de concentração de mercado fez com que as autoridades antitrustes vissem, nesse instituto, um caminho para a ampliação dos seus poderes de investigação, através do incentivo aos agentes econômicos para que forneçam provas que ajudem a condenar todos os demais membros dos cartéis e acabar com os efeitos nocivos sobre a economia popular.
Em decorrência desses efeitos práticos, surgiram 3 posições a respeito da aplicabilidade do acordo de Leniência.
A primeira posição entende que a norma atribuiria à SDE (Secretaria de Desenvolvimento Econômico) a faculdade de firmar o programa de leniência, e este acordo, na esfera administrativa, impede que o Ministério Público ingresse com a ação criminal.
A segunda posição nega total aplicabilidade das regras do Acordo de Leniência na esfera penal e tem como fundamento o Princípio da Indisponibilidade da Ação Penal Pública.
A terceira posição entende que o consentimento do Ministério Público é imprescindível para a realização do Acordo e para decretação da extinção da punibilidade. Neste sentido, embora a lei 8884/94 não seja expressa a respeito da extinção da punibilidade, ao realizarmos uma interpretação teleológica, poderemos concluir que a concordância do Ministério Público para o Acordo de Leniência dá o necessário suporte a sua aplicação. Isso porque os crimes contra a ordem econômica são de ação pública incondicionada e só o Ministério Público, como titular da ação penal, poderá, nos casos previstos pela lei, dispor ou restringir a sua aplicação. É a importação, para o sistema brasileiro, do princípio da oportunidade e da plea bargain dos E.U.A.
O Ministério Público deve participar do acordo de leniência, para que o seu cumprimento resulte em renúncia da ação penal.
O princípio da obrigatoriedade da ação penal - assim como na Lei 9.099/95, em espaço infraconstitucional - deve ser mitigado a exemplo dos eficazes institutos do plea bargain norte-americano e do pattegiamento italiano.
O acordo de leniência celebrado com a participação da Advocacia Pública e do Ministério Público impede o ajuizamento ou o prosseguimento da ação já ajuizada contra a pessoa jurídica.
Lembre-se, por certo, nesse cenário, que existem pessoas jurídicas que são verdadeiros instrumentos de organização criminosa, no sentido de ocultar ativos e dissimular interesses daquela que, embora transitoriamente, serviu a propósitos obscuros ou ilícitos de seus dirigentes.
Em verdade, esse ato normativo vem na contramão das tentativas levadas a combater a corrupção no Brasil. Isso porque a Lei 12.846/13, dentro de um modelo próprio de sanção, exige que as empresas cooperem com as autoridades públicas, investiguem os ilícitos e ostentem estruturas internas independentes e efetivas nas apurações das infrações. As empresas não podem usar o compliance como fórmula de mera blindagem de responsabilidade de seus dirigentes, mas, como instrumento de investigação privada de ilícitos e prevenção efetiva de infrações, como já afirmou Medina Osório.
A medida provisória vem envolta em uma “cortina de fumaça”.
As multas estabelecidas por ela são inadequadas à gravidade da conduta infringida. Com isso as empresas envolvidas não estarão inibidas diante das penalidades. Ao contrário, Continuarão a atuar visando garantir seu lugar no mercado através de mecanismos e instrumentos sabidamente antissociais.
A medida provisória traz um erro de origem ao não determinar que uma empresa envolvida em práticas de corrupção faça a devida delação. Ao não denunciar, elas ficarão na chamada “zona de conforto” e continuarão com suas práticas perniciosas mesmo que por outras vias.
A questão é bem mais complexa do que se sugeriu quando se afirmou, como da edição da Medida Provisória, de que “deve-se punir o CPF; não o CNPJ”.
A Medida Provisória permite a plena contratação de empreiteiras corruptas para retornarem àquelas mesmas obras públicas que causaram bilhões de prejuízos aos cofres públicos e as empresas estatais. Elas poderão, sem que nada tenha acontecido, submeterem-se a novas concessões e novas obras em todos os níveis.
Observa-se a corrupção da própria lei de forma nociva e altamente danosa.
A famigerada MP 703 está em plena vigência. Basta que seja firmado entre a CGU e uma santificada empreiteira um Termo de Ajustamento de Conduta – em que foi cinicamente transformado o acordo de leniência previsto na Lei Anticorrupção – para que cessem quaisquer medidas judiciais contra ela já propostas pelo Ministério Público Federal.
O que é pior: mesmo tratando-se de medida provisória, onde não pode constar qualquer matéria penal, por força do texto da Constituição, noticia-se que parlamentares apresentaram emendas para incluir a possibilidade de livrar da prisão os executivos e os acionistas das empresas.
Anistia-se a corrupção.
A Medida Provisória citada é um verdadeiro prêmio à impunidade.
É caso de ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade.