O operador do Direito que milita nos juizados da infância e da juventude, com competência cível, é bem conhecedor daqueles frequentes pedidos de guarda judicial formulados por avós, que, com muita timidez e dificuldade, tentam descrever o requisito legal da falta eventual dos pais.
É que, não raras vezes, a guarda de fato exercida pelos avós não vem necessariamente acompanhada da situação da excepcionalidade exigida pelo Estatuto da Criança (Art. 33, §2º), para deferimento da guarda judicial.
A falta eventual dos pais não pode e nem deve ser entendida como o desejo dos pais de não exercer ou de se recusar a exercer o poder familiar.
O não exercício do poder familiar pelos pais, a completa ausência na vida dos filhos, quanto a sua criação e educação, não resta isentada pelo solitário e sobrenatural esforço e dedicação dos avós com relação a seus netos menores.
Indagados a respeito do desejo de não estar ao lado dos filhos, todos os tipos de escusas e apelos infundados – e inaceitáveis! – são lançados por aqueles casais que, no fundo, o que mais querem é se ver longe dos filhos. Claro, há ainda aqueles que, como único argumento, limitam-se a erguer aquele formulário padrão de consentimento de guarda feito em casa.
Nesses casos, o que se percebe claramente é que o que justifica o pedido de guarda dos avós não é a falta eventual dos pais, desejada pelo §2º, do Art. 33, do ECA, mas, sim, a falta de amor dos pais.
A preferência pelo novo namorado, pelo chopinho depois do trabalho, a vontade de viver uma vida desimpedida, “livre, leve e solto(a)”, a incompatibilidade de gênios, a agenda preenchida pelas aulas de academia ou stand up paddle, ser muito jovem ou ter engravidado muito cedo, entre outras justificativas apresentadas para se desfazer definitivamente do filho, não se constitui em “falta eventual dos pais”, mas falta de amor mesmo.
Não se quer dizer aqui que a convivência entre avós e netos não seja recomendável. Ao contrário, talvez seja uma das mais amorosas e afetuosas relações familiares que um ser humano possa ter em sua vida. Passar um final de semana ou as férias escolares na casa dos avós é um verdadeiro deleite na vida dos netos.
O que se censura aqui não é a necessidade da manutenção do vínculo entre avós e netos. O reprovável é o sentimento dos pais de se desfazer dos filhos, de não desejar estar ao lado destes menores, de se eximir integralmente de criá-los e educá-los, valendo-se eternamente dos avós como instrumento de expiação da culpa.
A profilaxia legal para a falta de amor com relação aos filhos não é a guarda judicial. Sem nenhum rodeio, o caso é mesmo de destituição do poder familiar.
Mas o ECA, em diversos de seus dispositivos, é insistente quanto ao seu desejo de reintegração da criança à família de origem. A família, assim, terá preferência em relação a qualquer outra providência, inclusive a adoção, que é considerada medida excepcional, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa (Art. 39, §1º).
Destarte, segundo o espírito do ECA, o deferimento da guarda avoenga é medida muito mais desejada do que destituir os pais do poder familiar, no caso de falta de amor destes últimos. Salientando que a ação de destituição do poder familiar acabaria também por apagar juridicamente os avós da vida de seus netos, em razão da retificação que seria promovida no registro civil do menor.
Naturalmente, a falta de amor dos pais não deve ser constatada e aceita de plano pelo juiz. Deverá o magistrado, juntamente com sua equipe multidisciplinar formada por comissários, assistentes sociais e psicólogos, persuadir os pais negligentes a assumir o poder familiar, a resgatar o amor que devem ter pelos seus filhos, advertir esses adultos das consequências traumáticas e muitas vezes irremediáveis da rejeição dos genitores.
Quando tudo falhar, quando verificado no processo a absoluta e irremediável falta de amor dos pais com seus filhos, em homenagem à manutenção da criança na família extensa, desejada pelo ECA, dever-se-á deferir a guarda judicial dos netos aos seus avós, combinando-se o Art. 33, §2º, com os Arts. 39, §1,º e 101, §9º.
Casos assim vêm se repetindo com grande frequência nos juizados da infância cível em todo o País. Sabe-se muito bem que avós são pais duas vezes. O encargo de correção, castigo moderado e disciplina dos filhos é responsabilidade natural dos pais. Os juizados da infância com competência infracional estão mergulhados em ações socioeducativas em que a perda da referência paterna e materna desde cedo é uma tragédia na vida dos adolescentes em conflito com a lei. Outro não é o cenário nas unidades de internação socioeducativas.
Não foram poucas as audiências de que participei no juizado da infância infracional aonde os avós, tomados por grande pânico e pavor, confessavam que estavam jurados de morte pelos netos dos quais detinham a guarda judicial, acaso revelassem ao juiz o grau de comprometimento do menor com o comércio ilegal de armas de fogo e com o narcotráfico. Muitos sepultaram seus jovens netos com os corpos crivados de dezenas de balas.
Hoje, a quantidade de pedidos de guarda avoenga vai se aproximando em rápida proporção aos pedidos de revogação de guarda formulados também por esses avós. Reféns dos netos, indomáveis e indisciplinados, a única esperança desses velhos é a revogação da guarda, com a reintegração desses menores aos pais. Por sua vez, estes pais também não desejam ter em sua companhia o filho, sequer são encontrados pelo oficial de justiça.
E esse ciclo se repete todos os dias.
Até quando vamos tolerar essa legislação frouxa, que permite a libertinagem sexual, as sucessivas gravidezes indesejadas, a falta de responsabilidade dos pais com seus filhos? Até quando permitiremos que esses pais negligentes e omissos condenem seus filhos a uma vida na boca-de-fumo à espera da morte trágica e prematura? Até quando sacrificaremos nossos idosos, que suportam calados a eterna boemia desses pais?
Com a palavra, o Congresso Nacional.