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Legitimidade nos crimes sexuais contra vulneráveis

29/02/2016 às 08:38
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Não cabe dizer que a primeira assistência a ser dada ao menor é por parte da família, depois pela sociedade e por fim ao Estado. A todos esses entes cabe, de forma concorrente, sua proteção.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu Habeas Corpus(HC 123971) que discutia a legitimidade de atuação do Ministério Público para ajuizar ação penal pública em crime sexual contra vulnerável, ocorrido em 10 de setembro de 2007. Por maioria de votos, os ministros consideraram legítima a atuação do Ministério Público ao ajuizar ação penal pública.

Na época dos fatos, o artigo 225 do Código Penal estabelecia a ação penal privada como regra nos crimes contra os costumes. A propositura de ação penal pública era prevista em apenas dois casos: se o menor ou seus pais não pudessem custear as despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção da família, ou se o crime fosse cometido com abuso do pátrio poder, ou por padrasto, tutor ou curador. Posteriormente, a Lei 12.015/2009 alterou o artigo 225, passando a prever a ação penal pública condicionada à representação do ofendido como regra e, na hipótese de a vítima ser menor de 18 anos ou pessoa vulnerável, a ação penal pública, pelo Ministério Público, passou a ser incondicionada. No caso dos autos, que corre em segredo de Justiça por se tratar de menor de idade, o agressor foi condenado à pena de seis anos de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática do crime de atentado violento ao pudor contra menor de 14 anos (após a reforma penal instituída pela Lei 12.015/2009 esse delito passou a ser tipificado como estupro).

O ministro Luís Roberto Barroso apresentou o voto que conduziu o resultado do julgamento, propondo solução específica para as peculiaridades do caso. Ele explicou que a ação penal privada proposta pelo pai da vítima foi rejeitada por ausência de legitimidade, sob o entendimento de que cabia ao Ministério Público atuar no caso. Com a recusa da queixa-crime pelo Judiciário, o ministro entendeu ser legítima a atuação do MP, com base na total proteção da criança, estabelecida no artigo 227 da Constituição Federal, “porque do contrário a menor ficaria completamente desprotegida”. “Nesse caso, como o Estado disse que não cabia ação penal privada, o Supremo deve aceitar a ação penal pública pela incidência da regra do artigo 227 [da Constituição]”.

Ele votou pelo indeferimento do HC e dispensou a fixação de tese quanto à recepção ou não do artigo 225 do Código Penal, na redação anterior à Lei 12.015/2009, pela Constituição Federal de 1988. Esse entendimento foi acompanhado pelos ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Já os ministros Edson Fachin e Rosa Weber também indeferiram o pedido, mas com o fundamento da não recepção do artigo 225 do Código Penal, nas hipóteses em que a vítima de crime é criança ou adolescente.

Já o relator, ministro Teori Zavascki, ressaltou que, sob qualquer ângulo, não se verifica a legitimidade do MP para propor a ação penal. Segundo ele, a jurisprudência é no sentido da aplicação da ação penal privada. Ele demonstrou preocupação quanto às revisões criminais.

A pretexto de proteger uma vítima nesse caso, nós podemos reabrir muitos processos – que, na vigência de um entendimento do Supremo e do STJ, consagrados até agora – foram ajuizados por meio de ação penal privada e estão condenados.

O ministro Teori Zavascki votou no sentido de conceder parcialmente a ordem de habeas corpus, reconhecendo a ilegitimidade ativa do MP, com o consequente arquivamento dos autos. Ele foi acompanhado pelo ministro Marco Aurélio e pelo presidente da Corte, ministro Ricardo Lewandowski, que ficaram vencidos na votação.

À luz do artigo 227 da Constituição:

"É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."

Consta dos autos, em síntese, que, (a) em sede de embargos infringentes opostos contra o acórdão da apelação, o paciente restou condenado à pena de 6 anos de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática do crime de atentado violento ao pudor contra menor de 14 anos (art. 214 c/c art. 224, “a”, do CP, com redação anterior à Lei 12.015/2009); (b) alegando ilegitimidade do Ministério Público para o oferecimento da denúncia, a defesa impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, que denegou a ordem; (c) inconformada, a defesa impetrou outro HC no Superior Tribunal de Justiça, que também denegou a ordem.

Necessário atenção com relação a lei que trata dos delitos sexuais.

A Lei 12.015/2009 deu novo tratamento a matéria.

Isso porque além das alterações na parte material, subsumindo ao mesmo tipo penal as condutas que caracterizavam o atentado violento ao pudor, sob o título de estupro(artigo 213 do Código Penal), ocorreram várias alterações, notadamente com relação a titularidade da ação penal.

Antes da reforma o tratamento era este:

a) Ação penal privada: era a regra. Como estes ilícitos penais afetam sobremaneira a intimidade da vítima, optou-se por dar a ela o próprio exercício de ação;

b) Ação penal pública condicionada: não tendo a vítima condição financeira, a sua hipossuficiência trazia para o Ministério Público a titularidade da ação, dependendo, todavia, de representação;

c) Ação penal pública incondicionada: se a violência utilizada para a prática da infração provocasse lesão corporal grave ou morte ou ainda se ocorresse o abuso do poder familiar ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador.

O Supremo Tribunal Federal entendeu que o estupro era crime complexo, editando a Súmula 608, consagrando que o crime de estupro, praticado mediante violência real, era de ação penal pública incondicionada. Por este entendimento, se o estuprador provocasse apenas lesão leve na vítima, a ação seria pública incondicionada. Violência real é agressão física, englobando a conduta que leva à morte, às lesões corporais e até mesmo às vias de fato. Excluía-se a violência moral(ameaça) e a violência presumida, que caracterizam o estupro, mas, em regra, a ação era privada.

A referida Súmula tinha aplicação ainda ao crime de atentando violento ao pudor, previsto no artigo 214 do Código Penal.

Entendeu-se que com o advento da Lei 12.015/2009 os crimes contra a dignidade sexual previstos no Capítulo I(crimes contra a liberdade sexual – artigos 213 a 216 – A do Código Penal) e no Capítulo II(crimes sexuais contra vulnerável – artigos 217 – A ao 218 – B, Código Penal) passam a ter tratamento uniforme, uma vez que a Súmula 608 do Supremo Tribunal Federal não teria mais aplicação.

Fica assim a situação:

a) Ação penal privada: não mais subsiste, a não ser que haja inércia do Ministério Público, quando terá cabimento a ação penal privada subsidiária da pública;

b) Ação penal pública condicionada: data vênia ao entendimento de autores como TÁVORA e ALENCAR, entendo que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, na Súmula 608, permanece inalterada. A ação penal, no crime de estupro, com lesão grave ou morte, é de ação penal pública incondicionada, porque tanto a lesão corporal grave quanto o homicídio são delitos de ação penal pública incondicionada;

c) Ação penal pública incondicionada: quando a vítima é menor de dezoito anos ou pessoa vulnerável, a teor do artigo 225, parágrafo único, do Código Penal. Vulnerável é o menor de quatorze anos; os portadores de enfermidade ou doença mental que não possuem discernimento para a prática do ato e as pessoas que por qualquer outra causa não puderem oferecer resistência, como as que se encontrem entorpecidas. Não se faz referência à expressão violência presumida que foi substituída por vulnerabilidade.

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A Lei 12.015/2009 ofende de forma clara os princípios da dignidade da pessoa humana e da proibição da proteção deficiente por parte do Estado. Por essa razão a Procuradoria-Geral da República ajuizou ação direta de inconstitucionalidade n. 4.301 contra a previsão daquela norma, Lei 12.015/2009 no sentido de que, no crime de estupro, em que resulte lesão corporal grave ou morte, deve haver ação penal pública condicionada à representação, e não mais por meio de ação penal pública incondicionada.

Tal alteração, insista-se , significa um grave retrocesso em relação aos crimes de estupro dos quais resulte lesão corporal grave e morte, uma vez que a persecução criminal nesses casos, antes incondicionada, passou a depender de representação da vítima ou de seu representante legal.

Na ação penal pública condicionada, que é titulada pelo Ministério Público, justifica-se o fato de ser ela condicionada a um permissivo(representação, requisição), externando pela vítima ou por seu representante legal, a ofensa que se fez a ela em sua intimidade, situação que é tecnicamente denominada de representação. Pode ainda a permissão ser dada na forma de requisição oriunda do Ministro da Justiça como se tem por exemplo nos crimes cometidos contra a honra do Presidente da República e do Chefe do Governo estrangeiro(artigo 114, inciso I, combinado com o artigo 145, parágrafo único do Código Penal).

A representação é uma condição de procedibilidade. Não se trata de condição objetiva de punibilidade. Para ela não se exige rigor formal da representação que pode ser apresentada de forma oral ou por escrito(artigo 39, CPP). Se a vítima apresenta queixa-crime(ação penal privada), por erro, esta pode ser tratada como representação se for o caso de ação penal pública.

Deve-se levar em conta que a Constituição de 1988, entretanto, designou especial atenção às crianças e aos adolescentes e previu que cabe não só a família, mas também ao Estado assegurar à criança todos os direitos ali previstos. A partir dessa premissa, não me parece razoável que a proteção jurisdicional do Estado, em caso de um crime hediondo de extrema gravidade e praticado contra uma menor, seja reservada apenas a um reduzido número de crianças, com fulcro exclusivamente em sua situação econômica.

Sendo assim não cabe dizer que a primeira assistência a ser dada ao menor é por parte da família, depois pela sociedade e por fim ao Estado. A todos esses entes cabe, de forma concorrente, essa proteção.

Concluiu-se, corretamente, que o Parquet é parte legítima para propor a ação penal instaurada para verificar a prática de crime de atentado violento ao pudor contra a criança independente da situação financeira da mesma.

Dir-se-á que tal decisão teria eficácia rescindível em relação a outros entendimentos já havidos em casos semelhantes. Trata-se de caso concreto não se podendo expurgar qualquer que seja o entendimento que venha a ser contrário a Constituição, considerando-o como situação jurídica perfeita.

O julgado praticou perfeita densificação da norma constitucional, exercendo de forma pro-ativa seu papel Constitucional.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Legitimidade nos crimes sexuais contra vulneráveis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4625, 29 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46875. Acesso em: 26 abr. 2024.

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