4. DA PROIBIÇÃO DE CLÁUSULA QUE ESTABELEÇA A PERDA TOTAL DE PRESTAÇÕES PAGAS EM BENEFÍCIO DO CREDOR NA RESOLUÇÃO DO CONTRATO CELEBRADO A PRESTAÇÕES
Outra questão que também explicita a preocupação do legislador com o consumidor, até mesmo quando se subsume à condição de inadimplente da obrigação contraída junto ao fornecedor de produto ou serviço, concerne aos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia.
Nesses tipos de contrato, por disposição expressa do caput do artigo 53, do Código de Defesa do Consumidor, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
As disposições contratuais dessa natureza, que preveem a perda total das parcelas pagas ou a restituição de quantia ínfima se comparada ao montante pago, são comumente chamadas pela doutrina de “cláusula de perdimento” ou “cláusula de decaimento”.
Tais disposições ainda são utilizadas com frequência no setor de consórcios de bens duráveis (geralmente bens de alto valor), seja com ou sem alienação fiduciária, bem como no setor da construção civil, por construtoras ou incorporadoras imobiliárias.
Cláudia Lima Marques (2013, p. 1.278), ao explicar a mens legis desse dispositivo legal que impede a estipulação de cláusula de decaimento abusiva, ensina que “a base desta declaração foi ora o caráter leonino da estipulação, ora a proibição do enriquecimento sem causa, ora as normas do próprio sistema contratual e a noção de boa-fé na execução das relações contratuais”.
Embora a impossibilidade de perda total das parcelas pagas tenha sido estabelecida pela disposição legal em comento, deixou a Lei de estabelecer outras particularidades a esse respeito, como (i) se pode haver retenção de algum numerário em caso de resolução do contrato, seja por culpa exclusiva do fornecedor, seja por culpa exclusiva do consumidor, (ii) em sendo possível a retenção, o percentual que pode ser por ele retido, e (iii) o modo pelo qual o fornecedor deve efetuar a devolução, ou seja, à vista ou em parcelas.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de caso que envolvia a resolução de um contrato de promessa de compra e venda de imóvel, resolveu duas das questões lacunosas, quais sejam, a possibilidade ou não de retenção de parte do valor pago e a maneira pela qual deverá haver a devolução do valor pago.
No bojo do Recurso Especial nº 1300418/SC, que tramitou sob o regime dos Recursos Repetitivos, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça assim fixou entendimento sobre as referidas questões:
RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. DIREITO DO CONSUMIDOR. CONTRATO DE COMPRA DE IMÓVEL. DESFAZIMENTO. DEVOLUÇÃO DE PARTE DO VALOR PAGO. MOMENTO. 1. Para efeitos do art. 543-C do CPC: em contratos submetidos ao Código de Defesa do Consumidor, é abusiva a cláusula contratual que determina a restituição dos valores devidos somente ao término da obra ou de forma parcelada, na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel, por culpa de quaisquer contratantes. Em tais avenças, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento. 2. Recurso especial não provido.
(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2013).
Desta forma, resta pacificado no Superior Tribunal de Justiça (e a tendência é que assim seja decidido nos Tribunais de Justiça do país) o entendimento de que a retenção de parte do valor pago só se faz possível quando foi o consumidor quem deu causa à resolução do contrato, ou seja, quando o desfazimento do negócio dele partiu. Nos casos em que o contrato foi resolvido a pedido ou por culpa do fornecedor, nenhuma retenção é devida, devendo haver a devolução integral do valor pago.
Além disso, a devolução deverá ser imediata, sendo abusiva e nula de pleno direito a cláusula que previr a devolução parcelada do montante a ser devolvido ou que postergar a devolução a momento futuro, como, por exemplo, quando do término da obra.
Quanto à outra omissão legal, referente ao valor ou percentual que pode ser retido pelo fornecedor quando o negócio foi desfeito por iniciativa do consumidor, são recorrentes no Tribunal de Justiça de São Paulo decisões que fixam o limite em 30% (trinta por cento) do valor pago, conforme segue:
PRELIMINARES Alegações de cerceamento de defesa, carência de ação e impossibilidade jurídica do pedido Meras tentativas da ré de impedir a rescisão contratual com a perda do imóvel Preliminares afastadas. RESCISÃO CONTRATUAL C/C REINTEGRAÇÃO DE POSSE - Ação julgada parcialmente procedente - Irregularidade ocupacional verificada - Ausência de anuência da CDHU - Pedido de transferência do bem - Impossibilidade de regularização da situação da ocupante do imóvel - Entidade apelada que trabalha com um sistema de inscrição de interessados - Compradora inadimplente que tem o direito de obter a devolução de valores quando da rescisão contratual por falta de pagamento - Inteligência dos artigos 51, inciso IV, § 1º e 53, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor - Devolução que deve ser imediata e de uma só vez - Ocupação do imóvel que representa valor econômico - Retenção de 30% (trinta por cento) que se mostra suficiente - Sentença mantida - Recurso desprovido.
(SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo, 2014c).
Importante frisar que há decisões muito díspares a esse respeito, podendo ser encontradas, no mesmo Tribunal, decisões que permitiram a retenção de apenas 10% (dez por cento) do montante quitado (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo, 2015b), bem como decisão recentíssima que permitiu retenção de 50% (cinquenta por cento) dos valores pagos (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo, 2016).
Já o Superior Tribunal de Justiça tem, com elevada frequência, fixado o intervalo entre 10 e 25% do montante pago como possível de ser retido (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2015a; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2015b), devendo esse montante refletir os dispêndios efetivamente arcados pelo fornecedor para a venda do lote (despesas administrativas, comissão de corretagem, publicidade etc.).
5. DAS OUTRAS DISPOSIÇÕES LEGAIS APLICÁVEIS AO CONSUMIDOR INADIMPLENTE
Outra vertente do nítido protecionismo do consumidor, até mesmo na condição de inadimplente, é o estabelecimento de um limite percentual máximo de multa de mora decorrente do inadimplemento de obrigações no seu termo.
A esse respeito, o artigo 52, § 1º, do diploma consumerista dispõe que “as multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação”.
No presente caso, o legislador pátrio entendeu por bem “tarifar”, limitar o percentual da multa aplicável pela mora no cumprimento da obrigação do consumidor, sendo certo, portanto, que tal limitação (dois por cento) se aplica apenas e tão somente nas relações de consumo, não necessitando ser observada tal limitação nas demais relações e obrigações (civis, interempresariais, locatícias, tributárias etc.).
No sentido da aplicação exclusiva dessa limitação percentual à multa de mora estabelecida em contratos firmados na seara consumerista (e, consequentemente, da maior liberdade contratual para a fixação da multa de mora nas relações regidas por outros regimes jurídicos), assim têm decidido os Tribunais pátrios:
APELAÇÃO CÍVEL. LOCAÇÃO. AÇÃO DE DESPEJO POR FALTA DE PAGAMENTO CUMULADA COM COBRANÇA. MULTA CONTRATUALMENTE PREVISTA. INCIDÊNCIA. INAPLICABILIDADE DO CDC. LIMITAÇÃO REJEITADA. As relações locatícias possuem regramento específico, sendo inaplicável o CDC ao caso concreto. Mostra-se legal a multa, devidamente pactuada, de 10% sobre o valor do débito. JUROS DE MORA. TERMO INICIAL. Os juros de mora incidem à taxa de 1% ao mês, por aplicação do art. 406. do CCB c/c art. 161, § 1º, do CTN, contados do vencimento dos locativos, pois se trata de obrigação positiva e líquida, a teor do art. 397, do Código Civil. Incidência a partir da citação afastada. Mora ex re. APELAÇÃO DESPROVIDA.
(RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2015).
EMBARGOS DO DEVEDOR- CONTRATO DE LOCAÇÃO LOJA EM SHOPPING CENTER - FUNDO DE PROMOÇÃO - ARRECADAÇÃO PELA LOCADORA - ADMISSIBILIDADE - MULTA CONTRATUAL DEVIDA NO PERCENTUAL DE 10% COMO PACTUADO - INAPLICABILIDADE DO ART. 52, § 1º, DO CDC - RELAÇÃO DE CONSUMO NÃO CONFIGURADA - PRECEDENTES DO STJ - LIMITE DA DEVOLUÇÃO RECURSAL - INOVAÇÃO - APELO 1 CONHECIDO E IMPROVIDO. Não há obstáculo a que a proprietária do shopping center e locadora arrecade de seus locatários a verba do fundo de promoção, porque não se observa nos estatutos da Associação de Lojistas ou mesmo no Regimento Interno do Shopping a exclusividade de alguma pessoa jurídica na cobrança de tais verbas ou a impossibilidade de tal cobrança ser efetuada pela Locadora. Insustentável o pedido de redução da multa contratual para 2% (dois por cento), com supedâneo nas regras do Código de Defesa do Consumidor, pois tais normas não se aplicam à locação de bem imóvel para fins comerciais, o qual não guarda a menor similitude com as relações de consumo protegidas por aquele ordenamento, entendimento que está balizado na iterativa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. [...].
(PARANÁ. Tribunal de Justiça do Paraná, 2002).
O dirigismo contratual, fenômeno mitigador da autonomia privada decorrente da intervenção estatal na liberdade de contratar, sobretudo por meio da atuação do Poder Judiciário, faz-se bastante presente nos casos de estipulação de multa moratória em descompasso com o dispositivo legal em questão.
Nesse sentido, diuturnamente, os Tribunais brasileiros vem anulando cláusulas contratuais que estabelecem, em contratos de consumo, multas moratórias em patamar superior ao legal, reduzindo-as a dois por cento, conforme segue:
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICO-HOSPITALARES - RELAÇÃO DE CONSUMO - MULTA CONTRATUAL PACTUADA EM 10% - OFENSA AO ART. 52, § 1º, DO CDC REDUÇÃO PARA 2% - RECURSO PROVIDO EM PARTE. A cobrança de multa moratória no patamar de 10% (dez por cento), não obstante prevista no contrato de prestação de serviços, afronta o art. 52, §1°, do Código de Defesa do Consumidor devendo, por isso, ser reduzida para 2% (dois por cento) sobre o valor devido.
(SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo, 2015a).
Assim, resta inequívoco que a limitação da multa de mora em 2% (dois por cento) se aplica única e exclusivamente nas relações consumeristas, sendo certo que nas demais relações inexiste limite nesse sentido.
Por fim, outra questão que merece comento diz respeito ao disposto no artigo 43, § 2º, que estabelece que “a abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele”.
Tal dispositivo legal serve de guarida para a responsabilização do fornecedor-credor e/ou do mantenedor do banco de dados que registrar um débito do consumidor inadimplente sem antes lhe comunicar por escrito. Nesse sentido:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. INCLUSÃO DO NOME DO DEVEDOR EM CADASTRO RESTRITIVO DE CRÉDITO. AUSÊNCIA DE PRÉVIA NOTIFICAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ART. 43, § 2º, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ENUNCIADO 359 DA SÚMULA DO STJ. DANO MORAL CONFIGURADO. VERBA REPARATÓRIA QUE NÃO DESTOA DOS PARÂMETROS DESTA EGRÉGIA CORTE. 1. A teor do art. 43, § 2º, do CDC, o consumidor deve ser comunicado sobre a inscrição de seu nome em cadastro de inadimplentes por meio de notificação postal. 2. Os órgãos mantenedores de cadastros possuem legitimidade passiva para as ações que buscam a reparação dos danos morais e materiais decorrentes da inscrição, sem prévia notificação, do nome de devedor em seus cadastros restritivos, inclusive quando os dados utilizados para a negativação são oriundos do CCF do Banco Central ou de outros cadastros mantidos por entidades diversas. 3. A ausência de prévia comunicação ao consumidor da inscrição do seu nome em cadastros de proteção ao crédito, prevista no art. 43, §2º do CDC, enseja o direito à compensação por danos morais. (REsp 1.061.134/RS, submetido ao rito do art. 543-C do CPC). 4. Agravo regimental a que se nega provimento.
(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 2011b).
A obrigatoriedade de o órgão mantenedor do cadastro de proteção ao crédito notificar o consumidor inadimplente previamente ao registro do débito em seus sistemas foi alvo de muita discussão, cristalizado por meio da Súmula nº 359, do Superior Tribunal de Justiça, que estabelece que “Cabe ao órgão mantenedor do cadastro de proteção ao crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição”.
Essa questão foi regulamentada no Estado de São Paulo pela Lei Estadual nº 15.659, de 9 de janeiro de 2015, que, em seu artigo 1º, estatui que:
Artigo 1º - A inclusão do nome dos consumidores em cadastros ou bancos de dados de consumidores, de serviços de proteção ao crédito ou congêneres, referente a qualquer informação de inadimplemento dispensa a autorização do devedor, mas, se a dívida não foi protestada ou não estiver sendo cobrada diretamente em juízo, deve ser-lhe previamente comunicada por escrito, e comprovada, mediante o protocolo de aviso de recebimento (AR) assinado, a sua entrega no endereço fornecido por ele.
Complementa o parágrafo único do artigo 2º da Lei em comento que “deverá ser concedido o prazo mínimo de 15 (quinze) dias para quitação do débito ou apresentação de comprovante de pagamento, antes de ser efetivada a inscrição do nome do consumidor nos cadastros de proteção ao crédito”.
Não obstante a boa intenção do autor do projeto que deu origem a essa Lei, por certo é ela inconstitucional, sobretudo no ponto que diz respeito à necessidade de aviso de comunicação mediante protocolo assinado pelo devedor com aviso de recebimento (parte final do artigo 1º), uma vez que tal disposição contraria o disposto no artigo 43, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal), que não faz qualquer exigência nesse sentido.
Aliás, o próprio Superior Tribunal de Justiça já havia decidido, após muita discussão sobre o citado dispositivo do codex consumerista, que “é dispensável o aviso de recebimento (AR) na carta de comunicação ao consumidor sobre a negativação de seu nome em bancos de dados e cadastros”, sendo essa a transcrição literal da Súmula nº 404.
Tanto é assim, que a Lei Estadual nº 15.659/15 é alvo de 3 (três) Ações Diretas de Inconstitucionalidade, quais sejam a ADIn nº 5.224, proposta pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas, a ADIn nº 5.252, ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, e a ADIn nº 5.273, distribuída pelo Estado de São Paulo.
Corroborando a tese da inconstitucionalidade da Lei em referência, Luiz Antonio Rizzatto Nunes (2015) assevera que:
Quanto a Lei estadual, percebe-se que a intenção do legislador estadual foi, de um lado, permitir anotações sem aviso ao consumidor e, de outro, protege-lo na determinação de envio de correspondência com AR (art. 1º). Parece-me que, em ambos os casos, há conflito com o estabelecido no CDC. Não se trata de suplementação ou preenchimento de lacuna, mas de direta alteração da imputação normativa da Lei Geral. É que o § 2º do art. 43. do CDC dispõe que “a abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele”, que, inclusive, após anos de discussão judicial gerou a Súmula nº 359 do Superior Tribunal de Justiça, que diz: “Cabe ao órgão mantenedor do cadastro de proteção ao crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição”.
Quanto ao aviso de comunicação mediante protocolo assinado pelo devedor com aviso de recebimento (AR) dá-se exatamente o mesmo. Não só o CDC não o exige, como depois de muita discussão solidificou-se o entendimento de sua dispensabilidade, também em matéria sumulada no STJ: “É dispensável o Aviso de Recebimento (AR) na carta de comunicação ao consumidor sobre a negativação de seu nome em bancos de dados e cadastros" (Súmula nº 404).
Seja a Lei bandeirante em comento constitucional ou não, resta inequívoco que o consumidor tem o direito de ser previamente notificado acerca da inclusão de seu nome nos bancos de dados de instituições de proteção ao crédito quando inadimplente, prerrogativa esta da qual não gozam devedores de obrigações de outras naturezas, como mercantis, por exemplo.