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Princípio da autonomia da vontade e o direito fundamental na escolha de tratamento médico

11/03/2016 às 14:08
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O paciente tem o direito à vida assegurado e esse direito inclui gozar da vida com autonomia e liberdade, podendo deliberar sobre sua vida mesmo em questões médicas.

Direitos humanos ou direitos do homem são termos usados com mais frequência entre os doutrinadores anglo-americanos e latinos. É a nomenclatura própria das declarações de direitos universais, objetivando reforçar a ideia de que só o homem é responsável por si próprio. Atualmente os direitos humanos vêm sendo bastante discutidos, com o intuito de salvaguardar que todos os indivíduos sejam tratados sem distinção de cor, condição social, religião ou sexo.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]

(Constituição da Republica Federativa do Brasil 1988)

A pessoa humana tem capacidade de autogovernar-se. A Declaração Universal dos Direitos Humanos expressa isso nos artigos 18 e 19:

 “Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.”

“Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.”

Em torno da liberdade de crença e de consciência transcrita nesses artigos está a liberdade de crer ou não crer, manifestar publicamente suas crenças e convicções pessoais assim também como agir de acordo com essas.

Assim, a autonomia ou autodeterminação moral só pode ser realmente usufruída pelos destinatários do direito se lhes for permitido agir de acordo com suas ideias. Sem essa dimensão, tanto a liberdade de consciência como de crença religiosa será completamente inútil.

Com base na importância dos direitos humanos, é importante salientar a atual mudança encontrada no âmbito da relação médico-paciente, uma vez que nesse campo se dá um aparente conflito entre direitos fundamentais.

Ainda hoje, casos relacionados ao direito de escolha do individuo em determinar seu próprio tratamento médico mediante suas convicções pessoais e/ou religiosas, são vistos com bastante polêmica e resolvidos por meio da mera aplicação do “principio da proporcionalidade”. Diversos juízes, por encararem a questão como um conflito entre dois direitos fundamentais: o direito à vida e o direito à liberdade de consciência e crença religiosa, fizeram vigorar o direito à vida, uma vez que têm essa como um bem supremo e indisponível. 

Um exemplo corriqueiro com relação a essa discussão é a recusa, por parte dos indivíduos pertencentes à religião Testemunha de Jeová, da terapêutica da hemoterapia. No entanto, fazendo uma analise mais veemente sobre o assunto e sobre os princípios utilizados para defender a realização da transfusão de sangue forçada em paciente capaz e maior, o que se constata é que o mesmo não poderia ser utilizado como fundamento a fim de obrigar o paciente a receber tratamento contrário às suas convicções pessoais, filosóficas e religiosas.

O presente artigo tem por intuito analisar possíveis equívocos existentes no nosso sistema de saúde e jurídico quanto aos casos envolvendo o direito de escolha do paciente a tratamento médico que não fira seus preceitos religiosos.


2. AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ E SUA POSTURA DIANTE DA MEDICINA E DOS TRATAMENTOS MÉDICOS

As Testemunhas de Jeová se baseiam na bíblia para tomarem suas decisões, isso inclui decisões de natureza médica. Por estimarem a vida e encará-la como dádiva de Deus, Jeová, as mesmas se empenham e se preocupam com sua saúde, procurando sempre um atendimento médico profissional na tentativa de salvaguardar o bem precioso que é a vida.

Os adeptos da religião se abstêm de tratamentos que utilizam transfusão de sangue total assim também como seus quatro componentes primários, ou seja, glóbulos brancos, plaquetas, plasma e glóbulos vermelhos. Agindo assim os mesmos estão obedecendo à ordem bíblica de abster-se de sangue.

Quanto aos medicamentos, procedimentos e exames elaborados a partir de frações menores de sangue ou que envolva o uso do próprio sangue do paciente, as testemunhas de Jeová acreditam ser uma questão pessoal visto que a bíblia não fornece orientação especifica quanto a isso, sendo assim, cabe a cada paciente individualmente decidir.

Com o avanço da medicina o que pode se perceber é que existem tratamentos alternativos ao uso da hemotransfusão e a esses métodos as testemunhas de Jeová não são avessas. Visando preservar sua boa relação pessoal com Deus os membros da organização buscam tratamento médico que esteja em conformidade com os princípios bíblicos.

Os praticantes da religião buscam manter o bem precioso que é a vida sem precisar sacrificar a sua relação de amizade com Deus. Dessa forma não buscam confrontar a classe médica e sim se beneficiar dos avanços da medicina na hora de escolher tratamentos que não firam sua consciência treinada pela bíblia. Na realidade, eles não são contra a medicina apenas buscam que o seu direito de escolher um tratamento médico que não seja contrario às suas crenças seja respeitado.


3.  A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRESSUPOSTO DO DIREITO DE ESCOLHA DO TRATAMENTO MÉDICO

Foi proposta uma conceituação jurídica por Ingo Wolfgang Sarlet (2001), que diz:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.

Baseado nessa definição qualquer ato contrário que desabone os direitos fundamentais previstos na CF/1988 fere o princípio da dignidade humana que apesar de não ser conferida pelo ordenamento jurídico é a base, o núcleo dos direitos fundamentais. Uma vez que a liberdade do paciente não é respeitada fere o artigo 5º da nossa legislação pátria e fere consequentemente a dignidade da pessoa humana.

Na tentativa de explanar o significado da dignidade da pessoa humana Alexandre de Moraes aduz:

A dignidade da pessoa humana concede unidade aos direitos e garantias fundamentais , sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

Essa compreensão da dignidade da pessoa humana demonstra que a liberdade e a autonomia completam o sentido de dignidade. Sendo assim, todo e qualquer direito fundamental contem em si uma sentença de dignidade, ou seja, autonomia e liberdade.

O direito a vida, muitas vezes utilizado como justificativa para o uso da transfusão forçada em adultos, capazes de deliberar sobre sua vida, por conseguinte, não pressupõe simplesmente ao fato de existir biologicamente. Esse direito é mais abrangente, pois sendo um direito fundamental consolidado no principio da dignidade da pessoa humana, a vida estabelecida pela Carta Magna é a vida imbuída de autonomia e liberdade.

Desta forma, quando um indivíduo procura atendimento médico e opta por determinado tratamento, seja por convicções pessoais ou religiosas, ele está exercendo com plenitude o direito à vida assegurado na Constituição. Assim sendo, não se pode dizer que a postura das Testemunhas de Jeová em recusarem terminantemente às transfusões de sangue gera um conflito de interesses entre direitos fundamentais, tais como o direito à liberdade religiosa e o direito à vida. Antes, evidencia o exercício desses dois direitos.

Quando as testemunhas de Jeová escolhem tratamentos alternativos, elas não estão abrindo mão ou desprezando o direito a vida. Estão com essa atitude validando seu direito de escolher o tratamento médico consolidado no direito à vida com dignidade, união do existir puramente dito com liberdade e autonomia, conferindo a condição de seres humanos através da junção e exercício desses direitos.

Assim posto, concluiu o Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso um parecer favorável a um paciente Testemunha de Jeová que requeria transferência para outro Estado da Federação, a fim de se submeter à cirurgia cardíaca sem a utilização de hemocomponentes:

Para delimitar o âmbito deste apelo, impõe-se esclarecer que não se está a debater ética médica ou confrontação entre o direito à vida e o de liberdade de crença religiosa.O que se põe em relevo é o direito à saúde e a obrigação de o Estado proporcionar ao cidadão tratamento médico que não implique em esgarçamento à sua liberdade de crença religiosa. (...) O conflito não é entre direitos individuais do cidadão, mas entre o direito à liberdade religiosa e a obrigação e dever do Estado de garantir a saúde de todos, independentemente de crenças religiosas. Se por motivos religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível à submissão do recorrente à cirurgia tradicional, deve o Estado disponibilizar recursos para que o procedimento se dê por meio de técnica que dispense-na, quando na unidade territorial não haja profissional credenciado a fazê-la.

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais com relação à autorização de transfusão de sangue em paciente adulto e capaz deu ênfase ao direito à vida, que o mesmo não se limita à parte biológica, devendo ser respeitada a autonomia e liberdade do paciente:

(...) o direito à vida não se exaure somente na mera existência biológica, sendo certo que a regra constitucional da dignidade da pessoa humana deve ser ajustada ao aludido preceito fundamental para encontrar-se convivência que pacifique os interesses das partes. Resguardar o direito à vida implica, também, em preservar os valores morais, espirituais e psicológicos que se lhe agregam. (...) É necessário, portanto, que se encontre uma solução que sopese o direito à vida e à autodeterminação que, no caso em julgamento, abrange o direito do agravante de buscar a concretização de sua convicção religiosa, desde que se encontre em estado de lucidez que autorize concluir que sua recusa é legítima. Sim, porque não há regra legal alguma que ordene à pessoa natural a obrigação de submeter-se a tratamento clínico de qualquer natureza; a opção de tratar-se com especialista objetivando a cura ou o controle de determinada doença é ato voluntário de quem é dela portador, sendo certo que, atualmente, o recorrente encontra-se em alta hospitalar e não há preceito normativo algum que o obrigue a retornar ao tratamento quimioterápico se houver a perspectiva de ocorrer a transfusão sangüínea. É conveniente deixar claro que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer outro tratamento clinico, desde que não envolva a aludida transfusão; dessa forma, tratando-se de pessoa que tem condições de discernir os efeitos da sua conduta, não se lhe pode obrigar a receber a transfusão, especialmente quando existem outras formas alternativas de tratamento clinico [...].

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O Judiciário deixou claro que sua preocupação em ambos os casos não era analisar qual direito possuía maior relevância ou era superior em relação ao outro na ordem jurídica. O objetivo das decisões foi preservar a dignidade da pessoa humana haja vista que o direito à vida em sua plenitude engloba tanto a liberdade como a autonomia.


4. LIBERDADE E EXERCÍCIO DE CRENÇA RELIGIOSA EM UM ESTADO LAICO

A partir da Proclamação da República, o Brasil se tornou um país laico, ou seja, não possuía uma religião oficial, com isso garantiu a liberdade de crença. A Carta Magna vigente prescreve essa liberdade e assegura esse direito.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VI - e inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

(Constituição Federal da República 1988)

Alexandre de Moraes (2005) aduz que “a conquista constitucional da liberdade religiosa é verdadeira consagração de maturidade de um povo, pois, como salientado por Themistocles Brandão Cavalcanti, é ela verdadeiro desdobramento da liberdade de pensamento e manifestação”.

A escolha das testemunhas de Jeová em se recusarem a receber tratamento médico com o uso de transfusão está em harmonia com direitos fundamentais já mencionados, tem respaldo científico, se harmoniza com os progressos da Medicina, haja vista que existem diversos tratamentos alternativos à hemoterapia, e possui como base a liberdade religiosa prevista em Constituição.

O ser humano se pauta em valores criados e construídos por crenças religiosas, convicções filosóficas e pessoais para definir sua identidade pessoal no mundo. Desta forma, ao garantir o direito ao individuo de professar uma determinada religião a Constituição também garante ao indivíduo o direito de reger sua vida de acordo com esses preceitos frente a outros e também ao Estado.

Desconsiderar a vontade de um paciente, sendo ele Testemunha de Jeová ou não, que tem como desejo gozar do direito à vida por meio de tratamento quenão fira sua consciência e seus princípios, anula a própria essência e condição humana.


5. CONCLUSÃO

Diante de tudo posto no presente artigo, nota-se que desrespeitar a escolha do tratamento médico feita por paciente adulto e capaz fere a Constituição da República Federativa do Brasil e fere também o princípio que rege todos os direitos fundamentais, o princípio da dignidade da pessoa humana, e que concede ao ser humano a condição de cidadão.

O que se percebe não é uma aversão à medicina e sim a busca incansável e incessante de não permitir que os direitos fundamentais previstos e assegurados na Carta Magna percam a validade e sejam desrespeitados. Os pacientes tem na própria medicina uma aliada para o cumprimento dos seus direitos, visto que com o avanço da mesma os pacientes contam com tratamentos alternativos eficientes para salvaguardar a vida.

Dessa forma, o que podemos concluir é que o paciente tem o direito à vida assegurado e que esse direito inclui gozar da vida com autonomia e liberdade, podendo o mesmo deliberar sobre sua vida mesmo em questões médicas. Em harmonia com os avanços da medicina e com os direitos fundamentais, o que se busca é o respeito e o cumprimento da liberdade de crença e da escolha de tratamento médico que não vá contra as convicções do próprio individuo.

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Sobre a autora
Ariel Obolari Durço

Acadêmica do curso de Direito, estagiária na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DURÇO, Ariel Obolari. Princípio da autonomia da vontade e o direito fundamental na escolha de tratamento médico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4636, 11 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46989. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Esse artigo foi apresentado na forma de banner no III Congresso Nacional Diversidade, Ética e Direitos Humanos da UESB – III CNDEDH, o I Congresso Integrador Nacional do Programa “O Ministério Público e os Objetivos do Milênio” e a XVI Semana Jurídica da UESC e foi publicado nos anais do evento.

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