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Direito subjetivo e sua histórica relação com a Administração Pública

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22/03/2016 às 11:23
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3 BREVE ANÁLISE SOBRE O SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DO DIREITO ADMINISTRATIVO: UMA HISTÓRIA CONTADA DE FORMA EQUIVOCADA.

Para a realização da análise proposta ao fim do tópico anterior, comecemos com a investigação da situação deste ramo da ciência do direito no Antigo Regime, em época pré-revolucionária na França, bem refletida no discurso do Rei Luís XV perante o Parlamento de Paris, em 03 de março de 1766:

Os direitos e os interesses da nação dos que se ousam fazer um corpo separado do monarca estão necessariamente unidos com os meus e não repousam mais que em minhas mãos. [...] Em minha pessoa unicamente reside o poder soberano, cujo caráter próprio é o espírito de conselho, de justiça e de razão... A plenitude desta autoridade, que os Tribunais não exercem mais que em meu nome, permanece sempre em mim e seu uso não pode ser jamais usado contra mim. (ENTERRÍA, 2001, p. 101, tradução nossa)

Acreditamos, com Enterría, que neste discurso repousa a idéia básica e central do direito administrativo anterior à Revolução Francesa e que pode ser resumido no seguinte brocardo: “todos estão obrigados em algo ao Rei, o Rei não está obrigado nunca com nenhum”[5] (ENTERRÍA, 2001, p. 101, tradução nossa).

Não nos parece demasiado afirmar que em um cenário como esses a defesa de uma relação jurídica travada com o Estado era inviável. Essa máxima transcrita rechaça, de forma peremptória, toda e qualquer possibilidade de vinculação jurídica passiva a ser refletida no Rei ou em eventual príncipe.

O que se passava no direito de cunho público, então, a essa época, era o seguinte: com a consolidação das monarquias absolutistas o mandatário do poder era visto como uma figura que estava acima das leis, bem por isso, defendia-se a sua ligação direta com o divino, com o direito natural, não necessitando, em momento algum, se submeter às vicissitudes das leis positivas de seu tempo.

O discurso proliferado por aqueles estudiosos do Direito Público[6], portanto, buscava legitimar a quebra do direito comum, que regulava as relações de cunho privatístico, em favor do Rei, e postulava a justificação das exorbitâncias do Poder Público e das derrogações das leis até então estabelecidas. Tudo se fazia para evidenciar que não seria possível a ocorrência de relações jurídicas diretas com o Poder estabelecido; ao súdito, em face da autoridade e de seu poder inesgotável restaria apenas a veneração, a obediência e a fidelidade: “não há outros direitos que os que encerram o uso do poder em paz e em guerra, próprio do Rei” (ENTERRÍA, 2001, p. 100).

Porém, como cediço, adveio a Revolução Francesa em 1789 e com ela substancial mudança no regime político, ascendendo ao poder uma camada da sociedade amplamente influenciada por novas idéias, tidas por liberais, e que se pautaram decisivamente pelas lições da Escola do Direito Natural e das Gentes, a qual, como relembrado, concedia ao sujeito a condição de detentor de direitos inescusáveis até mesmo em face do monarca pré-estabelecido.

Para consumação destas garantias, consolidou-se o que chamamos nos estudos hodiernos de Estado do Direito, submetendo todas as nuances do poder aos ditames da legalidade, na qual deveriam estar reguladas todas as matérias imprescindíveis para a convivência do ser humano. Seria a Lei, portanto, o objeto de regulação e liberdade do cidadão contra os desmandos, seja de um particular, seja do Poder Público.

Ao lado desta inovação jurídica, estaria também uma nova forma de organização do Estado, onde restaria aplicada a teoria da separação de poderes, encontrando em seu expoente maior o francês Montesquieu.

Nesta nova forma de repartição do poder, restaria ao Parlamento, órgão máximo de representação popular, elaborar as imprescindíveis leis gerais e abstratas que seriam executadas pelo Poder Executivo, e aplicadas pelo Poder Judiciário, de forma indistinta a todos os cidadãos. Em apertada síntese, e para caber na exigüidade deste estudo, a leitura que se faz desse novo regime é a prevalência da vontade geral expressa na Lei em face dos demais poderes, que deveriam estar sujeitos às sempre prévias manifestações do Parlamento. E o direito aplicado à Administração Pública, supostamente, não restaria isento de transformações perante esse amplo espectro de mudanças políticas.

Narra a história oficial do direito administrativo que com a Loi de 28 do pluviose do ano VII - editada em 1800, organizando e limitando, de forma externa, a atividade realizada pela Administração Pública - se passou, pela primeira vez na história, a limitar objetivamente a atuação administrativa (BINENBOJM, 2008, p. 10). Ou seja, após a promulgação deste programa legal se consubstanciaria o ideal da Administração mera executora da Lei - faceta da aplicação do princípio da separação dos poderes, vale dizer -, que deveria estar subordinada e atada aos ditames do Direito.

Não por outra razão que autorizados doutrinadores defendem que a simples existência da reportada Lei representa não apenas o fenômeno da submissão do poder do mandatário e da Administração Pública à Lei, mas também a criação própria do direito administrativo. Vejamos o representativo escólio de ninguém menos que Caio Tácito:

O episódio central da história administrativa no século XIX é a subordinação do Estado ao regime de legalidade. A lei, como expressão da vontade coletiva, incide tanto sobre os indivíduos como sobre as autoridades públicas. A liberdade administrativa cessa onde inicia a vedação legal. O Executivo opera dentro dos limites traçados pelo Legislativo sob a vigilância Poder Judiciário. (apud BINENBOJM, 2008, p. 10)

A leitura tradicional da doutrina administrativista, portanto, encontra neste episódio o manancial para defender uma mudança vertiginosa no tratamento deste ramo do direito. Operou-se, aqui, verdadeiro milagre[7]: subjugou-se a vontade do soberano à vontade geral do Parlamento. Com esta simples manobra política, como que quase todos os problemas do abuso de autoridade, da exacerbação do poder estariam eliminados: a Administração Pública, agora, estaria sujeita nada mais, nada menos, que ao imperativo da Lei.

A revolução liberal, assim, sobrelevaria uma mudança de paradigma: da representação do divino pelos reis à representação popular pelo Parlamento (COSTA, 2011, p.29). E o resultado disso seria a saída de um regime autoritário para um sistema baseado na liberdade do administrado, que estabeleceria relações jurídicas com o soberano pautadas diretamente em diplomas normativos. Da autoridade à garantia dos administrados. Uma história, portanto, essencialmente de liberdade, do direito dos administrados contra a Administração Pública, muito bem resumida nas palavras de Enterría (2001, p. 110):

A substituição do monarca pelo povo implica também, portanto, uma mudança do instrumento de governo; o Rei era uma vontade singular, que se legitimava como representante do divino, e que, portanto, [...] podia excepcionar ou dispensar em qualquer momento a norma geral de uma Lei prévia [...].

Desde a situação geral de liberdade na qual a sociedade civil se constitui [...] a relação política do cidadão com o poder deixará de ser uma relação de sujeição ou subordinação pessoal [...]; será, de agora em diante, uma relação jurídica de simples obediência à Lei.

Em um panorama como esse, poderíamos sustentar facilmente que a consolidação de direitos subjetivos não poderia ser mais do que o normal no dia-a-dia da relação entre a Administração e o particular. Afinal, se a atividade administrativa está pautada na Lei, e esta última, como acima rememorado, por força de sua aplicação, gera situações ativas ao particular, não haveria como escapar ao reconhecimento de poderes e/ou faculdades a serem exercidas em detrimento do Poder Público.

Mas, “tal história seria esclarecedora, e até mesmo louvável, não fosse falsa” (BINENBOJM, 2008, p. 11). Se nos aprofundarmos nos detalhes, veremos antes que o direito administrativo hodierno mais teve sua gênese em uma perpetuação da autoridade e do poder do Antigo Regime, que da garantia de situações jurídicas ativas aos administrados. Vejamos.

Primeiramente, observe-se que após a eclosão da Revolução Francesa e a conseqüente tomada de poder pelos liberais, instaurou-se nos revolucionários o medo de que os Tribunais Judiciários recebessem com hostilidade a nova ordem de governo, suprimindo, assim, ampla margem de ação de suas autoridades administrativas ditas revolucionárias. Não se poderia permitir, por sua vez, que o julgamento das causas em que estivesse envolvido o aparato administrativo chegasse ao conhecimento do Tribunal Judiciário da época.

Procedeu-se, bem por isso, a uma específica releitura do princípio da separação dos poderes apregoada por Montesquieu. Ao invés de se enveredar por um caminho de apreciação dos atos administrativos por um órgão imparcial e neutro, qual seja, o Poder Judiciário, se proliferou uma máxima consistente em que “julgar a Administração ainda é administrar” (OTERO, 2008, p. 275).

Esta ideia, que por muito tempo entenderam os administrativistas revelar uma garantia aos administrados, em verdade, é uma das condicionantes da permanência de seu gérmen de autoridade. E isto porque, no momento em que a Administração Pública assim declara, suprime a competência do Poder Judiciário de julgar os conflitos em que esteja envolvida e os entrega para um órgão distinto, que à época se apresentou como o Conselho de Estado Francês. Cria-se, com isso, um Tribunal Administrativo apartado do Poder Judiciário comum.

Acontece que este órgão, nomeadamente o responsável pelo desenvolvimento dos institutos do Direito Administrativo de hoje em dia, se encontrava vinculado diretamente ao Poder Executivo, sendo que suas decisões se afiguravam como meras propostas passíveis de apreciação e acatamento de parte do Chefe daquele poder[8]. Ou seja, em que pese a mudança advinda com o paradigma liberal, a Administração Pública continuava julgando a si própria. E isto não representa mudança alguma ao estilo anterior à Revolução, tanto que Tocqueville assinalou com precisão que “nesta matéria apenas encontramos a fórmula; ao Antigo Regime pertence a idéia” (apud OTERO, 2008, p. 275).

Mas essa manobra política representou ainda mais. A legitimidade concedida ao Conseil D´Etat para julgar este tipo de contenda propiciou que o mesmo construísse ao longo do tempo o manancial de conceitos a serem trabalhados no Direito Administrativo, resultado da consolidação de seus precedentes jurisprudenciais.

Em um primeiro momento, a institucionalização deste sistema jurídico, em que a Administração Pública literalmente foge ao controle exercido pelo Poder Judiciário, começou a legitimar a criação de soluções de cunho processual bastante distintas e evidentemente derrogadoras do Direito Comum.

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Por meio da jurisprudência do Conselho de Estado francês consolidaram-se princípios que limitavam ou reduziam a matéria a ser questionada no ato emanado pela Administração Pública; entendiam pela isenção de determinados atos do controle do Tribunal, a exemplo dos atos de governo e dos atos políticos; e, ainda, preceituavam a apertada legitimidade processual ativa para figurar em uma demanda perante a Administração Pública (OTERO, 2008, p. 276). Ou seja, resta aqui um raciocínio embrionário para a existência de um Direito Processual diferenciado pelo tão só fato de estar em litigância com a Administração Pública.

Momento posterior e lógico à criação – jurisprudencial e não legal, vale dizer – deste típico direito processual, foi o avanço das decisões do Conselho de Estado sobre as atividades realizadas pela Administração Pública, ou seja, sobre o direito material que iria reger as relações travadas pelo particular em face daquela.

Baseado sempre na ideia da disparidade supostamente verificada entre as relações travadas entre os privados - solucionadas pelo Direito Comum e no âmbito do Tribunal Judiciário - e as relações jurídicas estabelecidas perante o Estado - que ensejariam a intervenção de um Tribunal Administrativo - a Administração Pública, por meio de uma decisão tomada no âmbito do Poder Executivo, passou a avaliar e qualificar as suas próprias condutas, como sendo consoantes ou não com o ordenamento jurídico[9]. E isto se fazia em meio a um suposto vácuo legislativo, que legitimava a criação de soluções pautadas sempre na ideia de desigualdade, como demonstra Otero (2008, p. 280):

No quadro de um sistema em que a explicação da origem do Direito Administrativo se encontra na necessidade de criar um grupo de normas especificamente reguladoras da actividade do poder executivo, afastando-se a aplicação do Direito Comum de natureza substantiva – tal como já antes, num momento imediatamente anterior, se haviam afastado os meios processuais comuns de reacção contra as decisões administrativas – começam a desenhar-se os contornes materiais de um novo ramo de Direito derrogatório de muitas das soluções normativas decorrentes do Direito Comum e genericamente animado por uma desigualdade do estatuto jurídico das partes envolvidas, isto por efeito da atribuição de prerrogativas especiais de autoridade ao poder executivo. (grifos nossos)

Após esta última ideia, residente em suposta constatação de diferenciação entre as atividades administrativas e aquelas laboradas pelos particulares, começou-se a solidificar específicos entendimentos no direito administrativo que se reflete até a atualidade.

Reconhecia-se naquele momento, de forma concomitante, não a validade do Direito Comum para a solução de seus casos, mas a existência de um direito especial, criado no âmbito da Administração Pública, e que era notoriamente desvantajoso ao particular na medida em que, dentre alguns exemplos: concede poderes exorbitantes de definição do direito aplicável ao caso concreto á Administração Pública; prevê a possibilidade de execução forçosa de suas decisões em determinados casos; reconhece a titularidade da definição unilateral da norma à regular o caso concreto; sem contar com as já mencionadas garantias processuais distintas daquelas veiculadas no Tribunal Judiciário em sentido comum.

E isto tudo representa uma contradição flagrante com a ideia basilar de submissão direta e irrestrita de toda e qualquer atividade dos sujeitos de direito a uma atividade legislativa prévia proveniente dos representantes do povo, ou seja, ao princípio da legalidade que colocaria em pé de igualdade todos os participantes da sociedade. Como acima relembrado, foi lição recorrente dentre os liberais que, evocando Montesquieu e a Rousseau e os artigos 5º a 8º da Declaração dos Direitos do Homem, a Lei deveria ser a medida de todas as coisas e o supedâneo único dos poderes advindos de qualquer sujeito de direito, sem distinção (ENTERRÍA, 2001, p. 82).

 O que se passou com o direito administrativo, no entanto, foi literalmente o contrário. Não se vinculou a vontade administrativa em nenhum momento aos ideais do Parlamento, mas à jurisprudência laboriosa de um órgão integrante do Poder Executivo, que se queria, declaradamente, distante dos Tribunais Judiciários. Vê-se, pois, que a evolução deste ramo do direito não é produto da lei, “antes se configura como uma intervenção decisória autovinculativa do Executivo sob proposta do Conseil D´Etat” (OTERO, 2008, p. 271). E, como bem pontuou Binenbojm (2008, p. 15), se há algum sentido de garantia que norteia e inspira o surgimento e o desenvolvimento da dogmática administrativa, “este foi a favor da Administração, e não dos cidadãos” (BINENBOJM 2008, p. 15).

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Sobre o autor
Fernando Araújo

Graduado pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Graduado em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Fernando. Direito subjetivo e sua histórica relação com a Administração Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4647, 22 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47191. Acesso em: 5 nov. 2024.

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