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Direito subjetivo e sua histórica relação com a Administração Pública

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22/03/2016 às 11:23
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Por que é tão difícil reconhecer um direito subjetivo perante a Administração Pública? Em meio a poderes e sujeições, o artigo visa estudar tal impedimento na doutrina, tendo a convicção de que este raciocínio vem da gênese da matéria.

Resumo: A abordagem do direito subjetivo perpassa às lições básicas do próprio estudo do Direito. Contudo, em que pese a contumaz utilização do termo pela jurisprudência, doutrina e legislação, é notória a inexistência de um consenso quanto ao seu sentido, o que revela pouca precisão conceitual no trato da matéria. Assim, no presente artigo buscou-se traçar as características do direito subjetivo com o escopo de investigar a relação existente entre este e a Administração Pública, e se é possível, nas bases científicas atuais, inclusive ante a promulgação da Constituição Federal, pleitear o reconhecimento desta espécie jurídica em face do Poder Público.

PALAVRAS-CHAVE: direito subjetivo, Direito Administrativo, Administração Pública.

Sumário: 1. Introdução; 2. Considerações Sobre o Direito Subjetivo; 3. Breve Análise Sobre o Surgimento e Desenvolvimento do Direito Administrativo. Uma história contada de forma equivocada; 4. Reflexões Acerca da Relação entre Direito Subjetivo e a Administração Pública. 5 Conclusões.


1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem o escopo de investigar a relação existente entre o direito subjetivo e o a Administração Pública. Para isso, analisou-se a origem da expressão direito subjetivo e sua evolução com o tempo nas escolas que influenciaram diretamente o Direito aplicado hoje no Brasil. Isto feito, foram traçados as suas principais características e efeitos da na relação jurídica travada entre os sujeitos de direito.

De posse destas conclusões, fez-se um paralelo entre o direito subjetivo e a evolução do Direito Administrativo com o tempo. Visamos, ao final, responder à pergunta de se é possível defender a existência de direitos subjetivos em desfavor da Administração Pública, nos moldes preceituados ao longo do capítulo.


2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO SUBJETIVO

Falar de direito subjetivo é tocar fundo nas lições básicas do próprio estudo do Direito. O termo, contudo, em que pese a contumaz utilização pela jurisprudência, doutrina e legislação não parece possuir o mesmo sentido em todas as vezes que referido, o que revela, talvez, pouca precisão conceitual no trato dos juristas com a matéria. Iniciemos, bem por isso, com uma rápida digressão histórica acerca desta figura jurídica.

Com apoio em Orestano (apud ENTERRÍA, 2001, p. 50), vemos que as primárias utilizações da expressão, tão cara ao estudo desta ciência social, se fizeram em meio de uma ampla e longa batalha do pensamento humano, que almejava a liberação do indivíduo e, por conseqüente, a afirmação daqueles direitos tidos por inatos à sua própria condição[1].

Em meio a este debate histórico, surge a figura de Guilherme de Ockham, que, se valendo de um estudo sobre a estrutura da propriedade, ainda no século XIV, se vale da expressão direito subjetivo tal qual hoje podemos entender. Conta-nos Enterría (2001, p. 52):

A primeira formulação técnica do conceito de direito subjetivo, no sentido de hoje em dia terá uma origem surpreendente: a polêmica sobre a pobreza dos franciscanos, que se desenvolve entre a Santa Sede (então em Avignon) e os teólogos franciscanos durante a primeira metade do século XIV. A figura técnica tem um padre perfeitamente identificado, Guilherme de Ockham, que, a fim de justificar o postulado básico franciscano, segundo o qual nem Cristo nem os apóstolos tiveram propriedade alguma, [...] formula em seu Opus nonaginta dierum, 1332, sob a proteção do imperador em sua disputa com a cúria, uma dissecação da estrutura da propriedade como direito subjetivo, o que leva a elaborar um conceito técnico desta figura assombrosamente moderno. (ENTERRÍA, 2001, p. 51, tradução nossa)

A expressão do jurista espanhol ao final do parágrafo para expressar a sua surpresa com a modernidade do instituto desenhado por Guilherme de Ockham advém da consideração de que este último, já à época, concebia a ligação entre a figura do direito subjetivo e os imperativos da Lei (ENTERRÍA, 2001, p. 53), ou seja, o surgimento do direito subjetivo estaria atado à figura de um texto regulador das relações entre os seres humanos.

Avançando neste panorama histórico, recorda-nos o brilhante Enterría (2001, p. 53) que o termo direito subjetivo também foi utilizado e precisado na Segunda Escolástica, oportunidade na qual alguns teólogos-juristas espanhóis do século XVI se debruçaram sobre uma corrente jusnaturalista interessante, a dos iura innata, que concede a todo o homem, pelo simples fato de o sê-lo, direitos que devem ser respeitados pelas autoridades civis e eclesiásticas; em suma, direitos que deveriam ser reconhecidos independentemente de qualquer positivação a respeito.

Uma quizila que serviu de pano de fundo histórico para esta corrente de pensamento foi a que girava em torno dos direitos dos indígenas frente às conquistas espanholas ocorridas no referido período e que originou a “Carta Universal dos direitos do índio proclamados pela Coroa”. A idéia essencial que resultou ao fim no documento não apenas reconhecia a impossibilidade de se escravizar qualquer índio, como restringia a realização de confisco em todas as suas terras, devendo este ser tratado, naquele momento, como um súdito qualquer da Coroa Espanhola (ENTERRÍA, 2001, p. 54).

Este legado histórico, por sua vez, vai desembocar nos estudos levados a cabo pela Escola do Direito Natural e das Gentes, a qual se ramificou por grande parte da Europa Ocidental, dos quais se podem citar expoentes famosos como Grocio, Puffendorf, Hobbes e Locke.

Aqui, como bem observou Orestano, uma primeira e imprescindível mudança: a expressão sujeito não mais se emprega no sentido tradicional de pessoa sujeita ou submetida a algo ou alguém, ou seja, afasta-se a noção de pessoa subordinada para fazer prevalecer o sujeito como sujeito de direitos. (ENTERRÍA, 2001, p. 57).

Já Wieacker (1967, p. 279) observa que este Direito da razão foi, depois do Corpus iuris, a força espiritual mais poderosa da história da Europa Ocidental, resultando no fortalecimento da concepção do fundamento último da sociedade e do Estado em um contrato social, idéia esta que vem a ser desenvolvida posteriormente por filósofos como Locke, Hobbes, e tem sua expressão máxima em Rousseau. Quanto ao reflexo desta concepção no sistema jurídico como um todo, voltamos às palavras Enterría (2001, p. 57):

A construção de instrumentos racionais para explicar o sistema jurídico (nova idéia, esta de sistema, por eles introduzido), pôs em primeiro plano a idéia dos direitos, naturais primeiro [...], e dos direitos subjetivos adquiridos a título particular (ocupação, contrato, prescrição, herança, concessão). O homem é visto inicialmente como tal, e não como membro de um grupo ou corporação ou como objeto de vínculos feudais ou religiosos, se impondo, assim, o postulado da igualdade jurídica. Este individualismo deu uma importante base a instrumentos centrais como a propriedade civil e o contrato. (tradução nossa)

Não bastassem as referências expressas a importantes figuras do direito privado, é preciso realçar a inelutável guinada que esta escola jurídica dá no conceito de direito subjetivo. Com o reconhecimento, mesmo que sob as bases de um forte jusnaturalismo, da existência de um direito para além de sua expressão positiva, foram sendo concedidas ao particular facultas, potestas moralis, as quais poderiam e deveriam ser exercidas perante outros sujeitos, e quiçá perante o soberano da vez, ainda que no gozo de toda a sua pujança de poder.

Ainda que discordemos, no particular, com as bases pelas quais se erige o jusnaturalismo, é preciso lhe conceder o mérito de erigir, ao menos, o debate acerca de posições ativas dos sujeitos em face do Estado ou de qualquer outro particular. Não por outra razão que estas inovações são essenciais na elaboração de documentos paradigma do mundo moderno, a exemplo da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, na França em 1789[2].

Em que pese todo este reconhecimento, e todo o avanço reportado neste breve relato, verifica-se que a noção de direito nesta época – e, por sua vez, de direito subjetivo - se encontrava ligada intrinsecamente não a um determinado indivíduo, mas a estratos sociais, organizações e comunidades familiares, que se perpetuavam no tempo por mais e mais gerações (ENTERRÍA, 2001, p. 74). Não há, portanto, um modelo individual de situações ativas no direito praticado na época, cuja expressão máxima se vê no conceito de propriedade, a qual se reconhece – com matizes, é verdade – no ordenamento jurídico de hoje em dia.

E é neste momento que Enterría defende o papel de destaque da Declaração francesa de 1789, que, já em seu preâmbulo e artigo 2°, positiva a existência deste arsenal de direitos em favor do ser humano. “Apenas a ignorância, esquecimento ou desprezo dos direitos dos homens, disse o curto preâmbulo da Declaração, são as causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos” (ENTERRÍA, 2001, p. 77).

Aqui, entende o ilustre doutrinador espanhol, ocorre a junção entre o direito subjetivo e o direito objetivo, tão característico de toda e qualquer concepção daquela expressão. Atrela-se, neste momento, a idéia de que o direito subjetivo a uma anterior norma objetiva que lhe dê supedâneo (ENTERRÍA, 2001, p. 80).

À guisa de conclusão, não poderíamos finalizar esta breve análise sem antes nos reportar às contribuições da Pandectística alemã do século XIX, notadamente dos ensinamentos de seu jurista expoente, Federico Carlos de Savigny[3]. De fato, o modelo de concepção de direito por parte de seus cultores[4] estimula a precisão técnica e a relação sistemática entre os conceitos, possuindo o debate do direito subjetivo papel fundamental nesta visão estritamente dogmática do mundo jurídico.

A despeito da famosa discussão travada à época sobre a prevalência da Teoria da Vontade, capitaneada por Savigny e Otto von Gierke, ou da Teoria do Interesse, da qual o expoente maior era Rudolf Von Jhering (MIRANDA, 2000, p. 272/273), na consubstanciação do que seria o sujeito de direito e o direito subjetivo, fato é que com o advento dos ensinamentos desta escola jurídica, consolidou-se de forma extrema o conceito de relação jurídica. Nesta, por sua vez, existiria ao menos uma situação ativa que, por resultado lógico, gerava uma situação passiva. Como resultado nasceriam direito e dever, respectivamente.

Precisando ainda mais esta noção, e já colocando o estudo da expressão em tempos atuais, temos Pontes de Miranda, cuja extensa e vasta obra remonta ao estilo proposto e cultuado no âmbito da Pandectística.

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Da leitura do expoente e notável civilista, percebe-se que o direito subjetivo, em verdade, é algo que surge do estudo da eficácia jurídica, entendida esta como a irradiação de efeitos jurídicos advindos depois da incidência da regra jurídica no suporte fático que lhe é correspondente (MIRANDA, 2000, p. 47).

Analisado sob este ângulo, o direito subjetivo é resultado que se inicia com a verificação de determinado suporte fático, que vem, posteriormente, a incidir em determinada regra jurídica, para tão só irradiar as conseqüências tidas como relevantes pelo ordenamento jurídico. Nas palavras do jurisconsulto:

Rigorosamente, o direito subjetivo foi abstração, a que sutilmente se chegou, após o exame da eficácia dos fatos jurídicos criadores de direitos. A regra jurídica é objetiva e incide nos fatos; o suporte fático torna-se fato jurídico. O que, para alguém, determinadamente, dessa ocorrência emana, de vantajoso, é direito, já aqui subjetivo, porque se observa do lado desse alguém, que é o titular dele. (grifos nossos) 

Colocando-se a questão do direito subjetivo sob estes termos, compreende-se o porquê de Miranda insistentemente em sua obra observar que, nada obstante a proximidade das noções de direito objetivo e subjetivo, não podem ser os mesmos reduzidos a verso e anverso do mesmo conceito. A regra jurídica, ou norma objetiva, necessariamente, no entender do jurista, se faz presente em momento anterior, e, por força de sua incidência, um – e não o - efeito é a criação de situação de vantagem a determinado sujeito em face de outro. Mais uma vez, pela clareza, retornamos ao pensamento do tratadista:

Quando, porém, se pensa em direito subjetivo, já se está longe da regra jurídica; porque, em relação à regra jurídica, o direito subjetivo é efeito. Supõe ter havido o suporte fático, a regra jurídica e o fato de incidência. Supõe mais: supõe após isso, o que aliás é imediato à incidência, o fato jurídico. Sem esse encadeamento, seria obscuro chegar-se à noção de direito subjetivo.

Com base nesta última lição, vemos que o direito subjetivo surge como o resultado de um longo processo desencadeado pela aplicação de determinada norma jurídica. Bem por isso, não é algo que se concebe no plano abstrato e de forma independente da regra jurídica que lhe serviu de supedâneo.

O legado desta última corrente de pensamento, assim, é a ligação final e atávica do direito subjetivo e objetivo - ainda que não representem causa e conseqüência um do outro - e a explicação do que de fato ocorre no âmbito jurídico para que se possam atribuir certas faculdades e/ou poderes a determinados sujeitos.

Com base em todos os aspectos históricos agora delineados, a começar pelas lições basilares de Gulherme de Ockham, entende-se que é possível compreender que, a despeito da discussão do que é o direito subjetivo, o traço característico deste instituto jurídico é a situação ativa dele decorrente em um sujeito de direito, face de outro determinado, e que nesta posição assumida se encerra um poder, uma faculdade, ou ambos (MIRANDA, 2000, p. 274).

Ao lado dessa situação ativa, existiria também, necessariamente e de forma correlata, um dever por parte do sujeito passivo da relação jurídica, o qual tem de prestar obséquio ao exercício daquele que se encontra no seu pólo ativo.

E decorre deste último aspecto o efeito de limitação do direito subjetivo, à medida que este restringe o sujeito passivo ao respeito de determinada conduta por aquele que é o titular de um direito subjetivo. Como bem relembra Miranda (2000, p. 270) “Todo direito subjetivo, como produto da incidência da regra jurídica, é limitação à esfera de atividade de outro, ou de outros possíveis sujeitos de direito”.

O reconhecimento da posição jurídica ativa a um sujeito de direito, assim, conduz a uma inevitável redução de condutas passíveis de outro que está em situação de desfavor na relação jurídica. E o exercício em desacordo com os efeitos da relação jurídica, ou a simples omissão – quando necessário agir para cumprir a prestação - na conduta daquele que se vê em posição passiva é o que faz nascer o efeito da pretensão, entendida como a possibilidade de exigir judicialmente ou extrajudicialmente o cumprimento de determinado direito subjetivo (SILVA, 1991, P. 135).

Mas, traçados estes contornos essenciais do direito subjetivo, faz-se necessário indagar: como se dá - e se deu - essa relação entre direito subjetivo e a Administração Pública? É possível sustentar a existência de situações ativas do administrado em face do Poder Público?

Para respondermos a esta pergunta de forma satisfatória, entendemos imprescindível analisar, ainda que de forma sucinta, o desenvolvimento do direito administrativo desde o seu nascedouro até os dias atuais, realçando as características principais que se consolidaram neste ramo do direito com o passar do tempo.

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Sobre o autor
Fernando Araújo

Graduado pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Graduado em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Fernando. Direito subjetivo e sua histórica relação com a Administração Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4647, 22 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47191. Acesso em: 18 mar. 2024.

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