3. A AUTONOMIA PRIVADA E O DIREITO INDIVIDUAL DO TRABALHO
Viu-se linhas atrás que o direito do trabalho possui um arcabouço principiológico forte no tocante à proteção da parte mais débil da relação de emprego, quer seja o trabalhador.
3.1 CONCEITO DE AUTONOMIA PRIVADA INDIVIDUAL
Como foi visto, a autonomia privada consiste na observância dos pressupostos de validade para a constituição de uma relação jurídica.
Para o Luigi Ferri, autonomia privada é o poder de criar, dentro dos limites estabelecidos em lei, normas jurídicas. Para o autor, a autonomia privada não constitui expressão de uma simples licitude ou faculdade, mas manifestação do poder, especificamente, do poder de criar normas jurídicas dentro dos limites estabelecidos em lei[28].
Sendo o negócio jurídico forma de expressão da vontade, ele pode ser visto sob a perspectiva estatal, afinal a vontade privada não é fonte direta e imediata de efeitos jurídicos, mas tem sua eficácia subordinada à mediatização da lei, de sorte que o Estado pode atuar conformando esta vontade, mediante um limite positivo ou negando eficácia a essa vontade, por meio de um limite negativo[29].
Assim, não há uma necessária coincidência entre a vontade e a autonomia privada. Elas só irão coincidir na medida em que a vontade se consubstancie dentro dos ditames do ordenamento jurídico.
Nas palavras de Enzo Roppo:
Entre dogma da vontade e tutela da autonomia privada não há, de facto, coincidência necessária: nem sempre é verdade que para garantir o respeito substancial da autonomia, da liberdade e, portanto, dos interesses dos contraentes, seja preciso prestar absoluto e incondicionado obséquio às suas tornadas de posição psíquicas. Muitas vezes, inversamente, é verdade o contrário: isto é, acontece que a lógica da operação econômica levada a cabo pelas partes só possa ser salvaguardada, evitando dar excessiva relevância à sua vontade, entendida, no sentido restrito, como momento psicológico da iniciativa tomada[30].
Poder-se-ia ainda pensar numa relação entre autonomia privada e a ideia de densidade legislativa, maior ou menor, no poder de atuação da mesma. Desta maneira, a norma poderia trazer um estado de atuação maior ou menor para o ente privado, o que não descaraterizaria a liberdade negocial.
Deste jeito, haveria uma correlação entre a idéia de autonomia privada e a idéia de densidade, maior ou menor, da regulação legal dela decorrente. Autonomia privada consiste em liberdade de atuação, mas a norma pode deixar um espaço maior ou menor para esta liberdade[31].
Entende-se, assim, que a autonomia privada ganha espaço dentro de um ordenamento jurídico organizado, afinal os particulares só podem configurar relações jurídicas que sejam reconhecidas pelo ordenamento jurídico, que estejam em conformidade com o mesmo. Sem um ordenamento jurídico que consagre o mínimo de liberdade entre as pessoas, não se pode falar em autonomia privada[32], que é expressão do direito maior de liberdade.
E este ordenamento jurídico pode consagrar maior ou menor liberdade negocial, sem que isso aniquile a autonomia privada. Pelo contrário, quando um ordenamento conforma a autonomia privada com princípios outros como eticidade, boa-fé contratual, função social etc está, em verdade, reforçando a autonomia privada, afinal para que esta possa ser exercida em sua plenitude é necessário o respeito aos princípios constitucionais e legais, além dos trazidos pela doutrina e jurisprudência civilista.
Por fim, a autonomia privada encontra respaldo em diversos ramos do ordenamento jurídico e não só no direito civil. Com a pluralidade de relações existentes, vê-se que a liberdade negocial prospecta-se por diversos ramos outros do ordenamento, inclusive ramos considerados protecionistas e, conseqüentemente, de difícil acesso da autonomia privada.
Exemplo deste é o direito do trabalho, ramo marcado na individualidade pela relação entre o hipossuficiente e o empregador. Ainda com tais características, a autonomia privada encontra respaldo em certos casos. Ademais, no direito coletivo do trabalho, a autonomia privada assume papel de protagonista na negociação coletiva.
Tais exemplos servem para demonstrar que a autonomia privada mantém-se, ainda hoje, e mesmo diante dos problemas referentes às desigualdades sociais, como parte importante do direito privado, de sorte que seu estudo é necessário, ainda mais sob a ótica dos ramos do direito onde se tem uma desigualdade marcante.
Nesta toada, o estudo da autonomia privada na relação de emprego faz-se demasiadamente necessária e interessante. No direito do trabalho, podemos visualizar uma subdivisão nesse conceito de autonomia privada.
Primeiramente, podemos pensar numa autonomia privada individual, que é aquela liberdade negocial, respeitando os primados de validade na constituição da obrigação, que se dá dentro da relação de emprego. Assim, a autonomia privada individual trabalhista se dá em relação aos sujeitos empregado e empregador, diante de um contrato individual de trabalho.
Podemos visualizar ainda a autonomia privada coletiva, que é aquela que se dá no âmbito coletivo das relações laborais. Neste caso, temos a atuação de um sindicato de trabalhadores, negociando diretamente com a empresa (acordo coletivo), ou com um sindicato empresarial (convenção coletiva).
Segundo Walkure Lopes Ribeiro da Silva, a autonomia privada e a autonomia coletiva diferenciam-se quanto aos fins e à estrutura que comportam. Quanto aos fins, é possível afirmar que a autonomia individual visa satisfazer um interesse individual, pertinente a pessoa singularmente considerada, enquanto a autonomia coletiva visa a realizar interesse coletivo, pertinente ao grupo. Quanto a estrutura, verifica-se que os limites internos e externos da autonomia são dados pelo grau de relevância dos interesses envolvidos, se privados, como ocorre com a autonomia individual e coletiva, ou públicos. Nesse ponto, diferencia-se interesse público, distinção que não é relevante para o trabalho[33].
Trataremos, neste ponto, da autonomia privada individual.
3.2 RELAÇÃO DE EMPREGO COMO NEGÓCIO JURÍDICO E SEUS REFLEXOS NA AUTONOMIA PRIVADA INDIVIDUAL
Antes de tratar da autonomia privada individual em si nas relações de emprego, cumpre salientar a natureza jurídica da relação de emprego. Chegaremos a conclusão de que a relação de emprego traz consigo a característica de ser contratual. Para tanto, percorreremos algumas teorias sobre o contrato de trabalho, sintetizadas por Maurício Godinho Delgado[34].
Elenca o Maurício Godinho Delgado dois grandes grupos de teoria contratuais acerca da natureza jurídica da relação de emprego. O primeiro grupo refere-se as teorias contratualistas tradicionais. Neste grupo, há um grande viés civilista. O contrato de trabalho é visto como ajuste de vontades que deve ser encaixado no direito civil. Divide-se em 4 subteorias.
A primeira delas chama-se teoria do arrendamento. Neste caso, o contrato de trabalho é visto como um contrato de locação ou arrendamento. É uma teoria que se inspira na locatio operarum (onde importava o serviço pactuado, assemelhando-se à locação) e locatio operis (onde tínhamos a contratação de um trabalhador por seu resultado, assemelhando-se à empreitada) do direito romano. Hoje é superada, afinal inexiste no contrato de trabalho a separação entre trabalhador e objeto do contrato (prestação do serviço).
A segunda teoria é aclamada pelo nome de teoria da compra e venda. Nela, o obreiro vende sua força de trabalho ao empregado que paga um preço. O contrato é visto como mercadoria. Também é superada, afinal o trabalho é de trato sucessivo, contínuo.
Uma terceira teoria é vista sob a perspectiva do mandato. O empregado seria mandatário do empregador. É precário, afinal não há nas relações de emprego transmissão de poderes do empregador com base na confiança, a não ser nos cargos de confiança.
Por fim, temos a teoria da sociedade, que considera a relação empregatícia como contrato de sociedade. Nota-se que tal teoria também não goza de aplicabilidade na seara trabalhista, afinal o contrato de trabalho não possui affectio societatis.
Outro grupo de teorias refere-se às teorias contratuais modernas. Nelas, aceita-se o caráter contratual, mas rejeita-se a ideia de inclusão do contrato de trabalho em uma das categorias de contrato civil. Aqui a vontade é tida como elemento essencial para a configuração da relação contratual.
De outro lado, tem-se a teoria anticontratualista, que acredita que o contrato de trabalho não pode ser considerado sob o viés do negócio jurídico. Orlando Gomes[35] critica veementemente as teorias anticontratualistas, pautando-se nos equívocos por ele analisados sobre esta teoria: confunde-se formação e conteúdo da relação, bem como confunde-se liberdade e vontade.
Para o autor, na formação da relação de emprego, é essencial o consentimento das partes, ainda que este seja por adesão, o que demonstraria a contratualidade ali existente. O trabalho é livre e não obrigatório, de sorte que o consentimento do trabalhador não pode ser dispensado.
No tocante à confusão liberdade e vontade, tem-se que a vontade de formar o vínculo sempre é manifestada, ainda que a liberdade esteja mitigada, em razão da necessidade daquele emprego. O obreiro não é totalmente livre para discutir as cláusulas contratuais, mas sempre manifesta vontade de contratar ou não.
Nesta perspectiva, nota-se que Orlando Gomes considera o contrato de trabalho um contrato de adesão, onde a vontade manifestada revela-se pela opção sim ou não, no tocante à formação do vínculo. Entende-se que o contrato de trabalho não poderia ser resumido a um contrato de adesão, afinal há como haver uma discussão no tocante ao seu conteúdo, ainda que minimamente. Ademais, não se demonstra, em todos os casos, que a vontade do trabalhador apenas consubstancia-se na recusa ou aceitação.
O que se tem por certeza é que o contrato de trabalho possui natureza contratual, de sorte a ser considerado um negócio jurídico.
Neste ponto, justifica-se o porquê da relação de emprego ser um negócio jurídico. Pautada na vontade dos contraentes, a relação de emprego deve preencher os requisitos legais para a sua configuração, quer sejam: pessoalidade, onerosidade, subordinação jurídica e não-eventualidade. Note-se que o preenchimento dessas características configura a relação de emprego, mas isso não é impeditivo da mesma passar pelo crivo dos planos da existência, validade e eficácia dos negócios jurídicos civis.
Como negócio jurídico que é, deve preencher as condições de validade para existir e possuir validade no ordenamento. A partir de tal constatação, observa-se que a relação de emprego é resultado de uma autonomia privada individual. Nesse sentido, Luciano Augusto de Toledo Coelho:
A autonomia privada funda-se na capacidade de a pessoa autoregular autônoma e responsavelmente sua vida. Isso somente se torna possível quando uma parte na relação negocial não tem sobre a outra uma posição de supremacia e controle, de maneira a conformar a decisão do pólo mais fraco. É dado ao trabalhador, hoje, o direito de não contratar, desde que aceite as implicações de seu ato no mundo capitalista[36].
No entanto, questiona-se se a autonomia privada individual sofre limitações em razão da existência de um sistema protetivo trabalhista, por conta deste desequilíbrio na relação negocial. É este o ponto que será abordado adiante.
4 AUTONOMIA PRIVADA INDIVIDUAL E NEGOCIAÇÃO (OU DISPONIBILIDADE) DE DIREITOS TRABALHISTAS
Dado o fato de ser a relação individual de emprego marcada pela existência de um contrato de trabalho, questiona-se se haveria uma liberdade negocial plena diante da existência de direitos trabalhistas garantidos pelo Estado, bem como se esta autonomia privada se sustentaria diante do sistema protetivo característico do Direito do Trabalho.
A priori, é fácil entender que a autonomia individual na relação de emprego é mitigada, em decorrência do princípio protetor. Contudo, tal afirmativa deve ser analisada sob outra perspectiva. Acredita-se que o sistema protetivo adentrou no ordenamento jurídico na busca de um reequilíbrio das partes. Deste modo, estando as partes em situação de igualdade, seria possível uma autonomia privada na realização do contrato de trabalho.
Dessa maneira, os princípios protetivos e os direitos trabalhistas consagrados na Constituição seriam vistos como um meio de se atingir a autonomia privada, afinal, estando os sujeitos contratantes em pé de igualdade, ter-se-ia uma liberdade negocial plena.
No entanto, esta não é o quadro que se vê na prática. A sociedade, como um todo, vive uma crise de desrespeito. Direitos fundamentais são constantemente violados, ainda mais na relação de emprego. Dado o fato de que não há um respeito aos princípios e direitos trabalhistas, as partes nunca se encontram numa situação igualitária para a negociação. Desta sorte, os princípios e direitos trabalhistas acabam por funcionar, em regra, como limites à autonomia privada, afinal a liberdade plena de negociação por vezes esbarra no princípio da proteção ou no leque de direitos fundamentais dos trabalhadores consagrados na Constituição.
Tratando-se de uma relação entre uma parte débil e outra detentora de um poder social, o respeito ao princípio protetor em face da autonomia privada não é uma limitação ruim, mas vem para garantir a fruição dos direitos fundamentais pelo trabalhador, enquanto trabalhador e cidadão. Assim, não atinge somente direitos trabalhistas, mas também direitos da personalidade do trabalhador, que devem se encontrar amparados pelo princípio protetor para que os trabalhadores possam ter uma vontade que seja livre, uma liberdade real, material.
Restrições à autonomia privada individual se justificam por se tratar de uma relação que é, historicamente, desigual. Ver-se-á, adiante, que esta premissa não se mantém diante da autonomia privada coletiva, onde, em regra, há entes iguais e a autonomia privada alcança sua plenitude.
Mas pode-se afirmar que em todos os casos a autonomia privada individual é restrita ou limitada, perante o contrato individual de trabalho?
Neste momento, busca-se inspiração na teoria defendida por Juan María Bilbao Ubillos, que defende graus de aplicação da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações particulares. O autor defende que se deve ponderar, caso a caso, o direito fundamental com a autonomia privada do particular[37]. O autor ainda afirma que a desigualdade é elemento essencial para o desenvolvimento da eficácia imediata.
Reconhece-se a condição de desigualdade existente entre as partes, de maneira que, quanto maior for a desigualdade existente, maior deve ser a proteção à parte mais fraca daquela relação, admitindo-se a incidência dos direitos fundamentais para promover o equilíbrio entre as mesmas.
Transportar-se-á tal teoria ao direito do trabalho, de modo a se estabelecer graus de liberdade negocial diante dos direitos individuais trabalhistas.
4.1 GRAU FRACO, QUASE INEXISTENTE: RELAÇÕES TÍPICAS, ONDE SE CONSTATA DESEQUILÍBRIO GRANDE
No tocante ao confronto entre autonomia privada individual e direitos trabalhistas, vê-se, a priori, a necessidade de garantia dos direitos sociais. A própria estrutura brasileira demanda uma atuação efetiva na proteção dos direitos fundamentais sociais, haja vista que o país ainda sofre com os problemas relacionados à desigualdade social. Fator importante no tocante a esta desigualdade é o trabalho. Não existe emprego para todos e estes, quando existentes, não são capazes de garantir o mínimo existencial para uma vida digna.
Sarmento salienta que as instituições brasileiras ainda preservam um ranço escravocrata[38], favorecendo ainda mais as desigualdades no âmbito das relações trabalhistas. O trabalhador, muitas vezes, não contesta tal postura por parte do empregador em razão da real necessidade que este possui de estar empregado, de possuir uma renda, ainda que mínima.
A própria estrutura do contrato de trabalho demonstra necessidade de atuação dos direitos fundamentais sociais no âmbito deste tipo de pacto, haja vista que o trabalhador, ao celebrar esse contrato, cede ao empregador sua força de trabalho, de modo a gerar uma relação de “dependência” entre estes[39]. O empregador depende da força laborativa do empregado para a realização de sua atividade enquanto o empregado depende daquele emprego para sua subsistência.
Evidentemente, esta relação encontra-se desequilibrada. No Brasil, faltam empregos e sobram pessoas que querem trabalhar. Para o empregador, a situação é bem conveniente, uma vez que este tem a opção de substituir o empregado. Já para o trabalhador, a situação é desesperadora. Este se submete a diversas ofensas aos seus direitos fundamentais em razão da necessidade do emprego. Não se vislumbra, aqui, uma liberdade negocial plena, afinal como poderia o trabalhador negociar algo dada a sua premente necessidade do emprego?
Neste momento é importante se recordar da inferioridade constrangimento. Lembra-se que a inferioridade constrangimento afeta o consentimento do contratante fraco em seu componente de liberdade. Ele não é livre para aceitar ou recusar e isto é bem visto na celebração do contrato de trabalho. Há uma dependência do trabalhador daquele posto de trabalho, de modo que sua liberdade negocial fica praticamente anulada diante da celebração do contrato de trabalho.
Observa-se, em decorrência dessa relação de “dependência”, diversas limitações à liberdade pessoal do trabalhador, bem como ofensas aos seus direitos fundamentais. Contudo, tais limitações e ofensas não podem ficar à mercê da vontade do empregador, devendo ser tuteladas pelo direito do trabalho. E é a partir desta constatação que surgem:
derecho al trabajo con sus diferentes derechos especiales, tales como la libre elección de la profesión, los derechos a um puesto de trabajo, a un salario justo, a condiciones de trabajo adecuadas, a la protección para determinados grupos de personas (mujeres, adolescentes). al descanso, a un subsidio por desempleo, el derecho de coalición y de huelga, como así también el derecho de cogestión[40].
Assim, num confronto entre autonomia privada individual e direitos trabalhistas, diante de um contrato de trabalho padrão devem prevalecer os direitos trabalhistas, afinal não há como haver uma liberdade negocial plena dado o desequilíbrio patente existente na relação. Também não há como haver uma disposição de direitos trabalhistas pelo obreiro, afinal este é titular de direitos fundamentais individuais na condição de trabalhador e também é portador de direitos fundamentais na condição de cidadão, reconhecendo-se os direitos elencados na seara trabalhista (artigo 7º da CF), bem como aqueles direitos inerentes aos demais cidadãos previstos no texto constitucional[41].
Dessa maneira, garante-se a dignidade do trabalhador enquanto cidadão, evitando-se que o sujeito seja tratado como mera mercadoria integrante do contrato de trabalho. O empregado é muito mais do que somente uma força laborativa, que pode ser substituída a qualquer tempo. É um ser humano e como ser humano integrante do ordenamento jurídico deve ser tratado como tal, de maneira a serem assegurados direitos inerentes à sua condição de cidadão, bem como os direitos trabalhistas.
4.2 GRAU MÉDIO: RELAÇÕES ONDE HÁ ALGUMA POSSIBILIDADE DE NEGOCIAÇÃO
Viu-se, linhas atrás, que é princípio do direito do trabalho a irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas. Viu-se, ainda, que esta irrenunciabilidade encontra-se consagrada em razão de um desequilíbrio existente no contrato de trabalho, que motiva as regras protetivas inerentes ao ramo objeto desta pesquisa.
No entanto, constatou-se que poderiam haver exceções à regra da limitabilidade da autonomia privada em sede de contrato de trabalho, afinal, diante de um caso concreto, poder-se-ia verificar um certo grau de negociação.
Gilberto Stürmer, embora não trate especificadamente do tema em debate, defende que o Estado não deve ter tamanha ingerência nas relações trabalhistas. Neste sentido:
A verdade é que, com crise ou sem crise, ao final da primeira década do século XXI, o mais importante é lembrar que a tese de que capital e trabalho são inconciliáveis está fora de moda e de contexto no mundo globalizado. O moderno Direito do Trabalho é aquele que necessária e obrigatoriamente une o social e o econômico. As soluções já existem e dispensam a presença do “pai Estado”[42].
Nessa senda, os direitos trabalhistas e a liberdade negocial podem coexistir harmonicamente. Como já esposado anteriormente, entende-se que tal convivência só seria possível se a relação estivesse equilibrada, com sujeitos atuando no mesmo patamar.
Assim, dever-se-ia verificar, caso a caso, a existência de uma paridade de partes na relação contratual trabalhista, para então afirmar que naquela relação a um certo grau de autonomia privada. Este grau mediano traz consigo à ideia de que certos direitos poderiam ser negociados, enquanto outros não.
Mas como saber quais seriam os direitos com possibilidade de negociação na relação trabalhistas? Ao revés, quais direitos não poderiam ser negociados?
Tais indagações devem ser respondidas à luz dos princípios do direito do trabalho. Primeiramente, deve-se observar o princípio da proteção, de sorte que cláusulas contratuais que desvirtuem os preceitos trabalhistas sejam consideradas inválidas, tal como preconiza o art. 9º da CLT.
Ademais, deve ser observado o princípio do não-retrocesso social em seara trabalhista. Neste caso, a liberdade negocial só será considerada válida se respeitar as conquistas já obtidas no tocante aos direitos trabalhistas.
Afora tais aspectos, questiona-se se os direitos da personalidade[43] do trabalhador podem sofrer disposição parcial diante de um contrato individual de trabalho. Segundo André Rodrigues Corrêa, a autonomia privada também é espaço de atuação dos direitos da personalidade e, logo, de realização da dignidade humana. A ideia de dignidade, para o autor, é a base que se assentam os direitos da personalidade, de sorte que seu exercício só pode se dar de forma autônoma, ou seja, por intermédio da autonomia privada[44].
Diante de tal perspectiva, poderia o obreiro exercer seus direitos da personalidade por meio do contrato individual de trabalho. Neste caso, exige-se o consentimento do empregado na realização daquele negócio, bem como o respeito à sua honra.
Assim, a título de exemplo, a empresa pode utilizar-se da imagem do empregado como decorrência do contrato de trabalho, como, por exemplo, por meio de cláusulas que assegurem que a imagem do empregado pode ser veiculada para fazer propaganda da empresa. Neste caso, faz-se necessário um detalhamento do negócio jurídico, a fim de que tal uso do direito da personalidade seja fruído sem nenhum abuso. Nestes termos:
Tais negócios devem ser formalizados da maneira mais complexa possível, mediante autorização expressa e escrita, detalhando como a pessoa deverá aparecer, em que trajes e posições, em quais lugares, com quem, com que objetos, quando, a que veículos de comunicação o uso da imagem se destina e por quanto tempo, além da remuneração, se for o caso. Dessa forma, garante-se a proteção aos direitos de personalidade da pessoa que autorizou o uso de sua imagem por terceiros e, ao mesmo tempo, permite-se a esse sujeito a fruição econômica do uso de seu direito à imagem[45].
No entanto, poderia o empregador determinar, por meio de cláusula contratual, determinados tipos de comportamento ao empregado, tais como uso de certas vestimentas, de maquiagem, de corte de cabelo etc., limitando sua liberdade negocial sobre tais aspectos de sua personalidade?
Neste caso, entende-se, a priori, que a imposição pelo empregador de certos comportamentos ao obreiro encontra barreira nos direitos da personalidade do empregado, bem como no princípio da proteção. Primeiramente, não pode o empregador determinar a forma de exercício dos direitos da personalidade do empregado. Uma coisa é haver uma renuncia parcial daquele direito da personalidade, com a anuência e ciência do empregado sobre todas as condições em que se dará a renuncia. Outra coisa é a imposição, como condição para a celebração do contrato de trabalho ou permanência no emprego, de certos comportamentos. Aqui volta-se a uma situação de inferioridade na negociação, de sorte que a autonomia privada incidiria em sua versão mais fraca, exposta no ponto anterior.
Não se pode, contudo, generalizar a situação. Em certos casos, em razão da função exercida, pode-se haver a imposição de certos hábitos de vestimentas ou comportamentos. Exemplo disso são as trabalhadoras de shopping que devem utilizar vestimentas da loja como uniformes e devem utilizar maquiagem e cabelos muitas vezes considerados extravagantes. Tal comportamento se justifica em razão da função exercida, quer seja o labor com moda, onde se procura passar a visão daquela marca ou loja onde o trabalho é prestado.
Outro exemplo é a imposição de determinados comportamentos por questões sanitárias e de saúde. Trabalhadores de restaurantes devem manter cabelos presos, envoltos por uma tela de proteção que faça com que não haja contato com o alimento, barba, no caso de homens, e unhas devem estar curtas e higienizadas, dentre outros comportamentos.
Conclui-se, neste ponto, que a versão média da autonomia privada dependerá muito do caso em questão, de sorte que deve ser analisada com muita cautela, partindo-se sempre de uma relação paritária e com respeito aos princípios trabalhistas.
4.3 GRAU ALTO: GARANTIA DA LIBERDADE NEGOCIAL. CASO DE EMPREGADOS ALTAMENTE ESPECIALIZADOS E CELEBRIDADES
Pensa-se, neste momento, numa versão forte da autonomia privada, de modo a consagrar uma ampla liberdade negocial entre empregado e empregador no âmbito do contrato de trabalho. Tal situação será possível quando as partes estiverem num parâmetro de equilíbrio contratual exacerbado, tal como ocorre com os empregados altamente especializados e celebridades.
Tais figuras de empregados encontram-se, muitas vezes, numa situação de supremacia no contrato de trabalho, afinal há uma dependência da empresa no tocante aos serviços prestados. Não raro, as empresas do ramo competem por este empregado, realizando um verdadeiro leilão sobre a prestação de serviços do obreiro. A empresa que se dispõe a pagar mais com condições privilegiadas sairá vencedora da disputa por estes empregados.
Diante de tal constatação, percebe-se que a liberdade negocial das partes opera-se de forma plena, afinal não há uma inferioridade ou dependência do empregado em relação ao empregador. Pelo contrário, o empregador é que depende daquela mão-de-obra altamente especializada ou daquela determinada celebridade para o anúncio de seu produto, por exemplo.
Neste ponto, é importante relatar o parecer proferido por Arion Sayão Romita, publicado na Revista de Direito do Trabalho sobre o contrato celebrado entre alto empregado e empresa de grande porte. Na consulta, o empregado havia passado ao cargo de Superintendente de Coordenação Empresarial, cargo este considerado estratégico para a empresa.
No ano de 1996, empregado e empregador firmara termo aditivo ao contrato de trabalho, onde definiu-se que, para o empregado deixar de ocupar cargo considerado estratégico para a Empresa, teria o prazo de 12 meses para decidir se exerceria advocacia externamente, assistindo a empresa e podendo assistir terceiros que não tivessem conflito de interesse com a Companhia. Fazendo esta opção, o empregado gozaria de um período de 3 anos de manutenção do contrato de trabalho, contados a partir da opção, exceto no caso de justa causa.
Desta maneira, firmou-se uma espécie de garantia de emprego de maneira contratual, pautada na autonomia privada entre as partes. Ocorre, no entanto, que o empregado fora demitido sem justa causa pela empresa em 1997. Assim, o empregado formulou a consulta à Arion Romita, no sentido de saber se era válida a estipulação contratual da garantia de emprego.
Verificou-se que a estipulação contratual de garantia de emprego era válida, ajustando-se ao mandamento do art. 444 da CLT, que afirma que as relações contratuais podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas, vedada apenas a violação das disposições de proteção ao trabalho, que não era o caso.
A estipulação contratual de garantia de emprego, para o autor, respeita a autonomia da vontade[46], sem ofender qualquer preceito protecionista do Direito do Trabalho:
Expressão da livre deliberação consensual das partes interessadas, sem malferir qualquer disposição de ordem pública protecionista do trabalho, a garantia de permanência no emprego reverencia o secular princípio da autonomia da vontade, acolhido pelo Direito do Trabalho brasileiro. Portanto, a referida estipulação é válida, à luz do direito positivo vigente[47].
Entende-se que, por se tratar de um empregado especializado que foi posto em cargo estratégico da empresa e, por conseguinte, possuía informações privilegiadas sobre a companhia, a autonomia privada revelou-se no seu grau mais forte. Assim, a negociação sobre uma garantia de emprego fora plenamente válida, estando os sujeitos num grau de igualdade tal que possibilitaria a liberdade negocial em sua plenitude.
Entretanto, ainda em seu grau mais forte, a autonomia privada não pode ser utilizada sob a perspectiva de atentar contra os princípios protetivos constantes no Direito do Trabalho, sob pena de ter seu uso considerado abusivo e, consequentemente, ser invalidada a negociação.