A desapropriação do direito autoral por interesse social

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30/03/2016 às 15:48
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4 A DESAPROPRIAÇÃO DO DIREITO AUTORAL

Uma intervenção já é prevista no Decreto Lei 3.365/1941, o enquadramento desta situação como caso de Desapropriação em utilidade pública, “Art. 5º Consideram-se casos de utilidade pública: o) a reedição ou divulgação de obra ou invento de natureza científica, artística ou literária” (BRASIL, 1941). Caberia aqui portanto a desapropriação.

Para melhor compreender o assunto, inicialmente pode-se analisar um conceito elaborado sobre o tema onde a “Desapropriação é ato estatal unilateral que produz a extinção da propriedade sobre um bem ou direito e aquisição do domínio sobre ele pela entidade expropriante, mediante indenização justa” (JUSTEN FILHO, 2009, p. 531).

A partir da conceituação formulada, cabem várias análises a serem feitas. Primeiramente, pode-se constatar que o processo de desapropriação deve seguir os elementos formais explicados nas leis específicas para que haja validade nos atos.

Para isso deve-se haver a fase da declaração do motivo da desapropriação, seja por meio de decreto ou lei, mas que demonstre fielmente todos os detalhes referentes ao procedimento a ser exercido.

O ato deve ser completo para alcançar seus objetivos, conforme explana Rubens Limongi França (1987, p. 40):

O ato declaratório, seja lei ou decreto, deve indicar o sujeito passivo da desapropriação, a descrição do bem, a declaração de utilidade pública ou interesse social, a destinação específica a ser dada ao bem, o fundamento legal e os recursos orçamentários destinados ao atendimento da despesa.

É importante compreender e perceber quem são os sujeitos da relação jurídica abordada, algo vital para o bom avanço da discussão. De um dos lados da relação jurídica está a Administração Pública, representada pessoalmente ou por quem ela delegar tal função.

Do outro o expropriado, que pode ser pessoa física ou jurídica, proprietária do bem jurídico em questão, que é o objeto visado na desapropriação, que será tomado pela Administração após o procedimento.

Há de se perceber, ainda retirando-se informações dos conceitos trazidos, que a desapropriação é um ato unilateral, ou seja, a vontade do Estado é que prevalece no caso específico.

Existe, obviamente, uma possível discussão referente ao valor da indenização, que deve ser justa, devendo as partes entrar em um acordo inclusive mediante processo judicial, mas a unilateralidade da relação gera certa vantagem para a Administração.

O particular pode aceitar os valores oferecidos como ressarcimento pela Administração, assim sendo processo encerra-se administrativamente.

No entanto o resultado da oferta pode não ser razoável no entendimento do particular, sendo assim cabe então recorrer ao Poder Judiciário, que determinará o valor justo e certo e emitirá ordem jurisdicional sobre a desapropriação, tudo isso mediante o devido processo legal.

Apesar da unilateralidade, existem direitos que são reservados ao particular e proprietário do bem. Quem explana sobre o assunto é Marçal Justen Filho (2009, p. 543). Há o direito a todo o procedimento administrativo dentro da legalidade, antes da instauração de qualquer litígio. Importante ressaltar que este procedimento deve abranger os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Outro direito pertencente ao particular é o de apresentar todas suas razões que entende serem válidas para servir de argumento contra a validade e a conveniência da prática da desapropriação. O particular também pode questionar os valores da indenização que lhe for proposta, seja administrativamente ou perante o juízo competente, como já foi explanado.

Há por fim o direito de receber o pagamento da justa indenização pelo bem expropriado. Tais valores devem ser pagos previamente e preferencialmente em dinheiro, ressalvadas várias exceções constitucionais ou de leis específicas, sendo diversas as possibilidades da indenização.

Contudo, na avaliação dos valores a serem disponibilizados para o investimento em uma desapropriação alguns fatores devem ser levados em conta, conforme comenta Manoel de Oliveira Franco Sobrinho (1989, p. 97):

Compete à Administração, conhecida a motivação e instaurado processo administrativo, apreciar se a coisa, na qualificação física, responde à finalidade perseguida ou está em condições de prover o interesse público consubstanciado em planos materiais.

Ou seja, verificar a real necessidade do ato e o quanto isso custará ao Poder Público, em uma espécie de avaliação de custos e benefícios é essencial e fundamental para que a prática seja realizada dentro da lei.

Vale lembrar que os valores a serem gastos nas indenizações aos particulares devem constar no planejamento orçamentário da entidade expropriante, seja União, Estados, Municípios ou Distrito Federal, objetivando que sempre haja transparência e responsabilidade no trato do dinheiro público além de não promover o enriquecimento sem causa de particulares. Manoel de Oliveira Franco Sobrinho (1989, p. 97) ainda complementa sobre o mesmo assunto dizendo o seguinte:

Como compete de igual maneira, ainda na fase administrativa, examinar as vantagens conseqüentes da desapropriação, as econômicas e as de custo. Não é pela economia ser pública que se deve dar ao luxo de expropriar enfrentando investimentos onerosos.

Tal comentário confirma a importância de grande avaliação prévia na necessidade e viabilidade além de prevenir para que absurdos ocorram em casos de desapropriação, situações que são inclusive comuns nos atos dos administradores brasileiros.

Após explicação dos conceitos da expropriação, cabe agora observar que existem também os pressupostos da desapropriação divididos em três possibilidades, que são as chamadas modalidades de desapropriação previstas: necessidade pública, utilidade pública ou interesse social. 

Hipóteses destacadas no texto da Constituição Federal, conforme o inciso XXIV do artigo 5º. É muito importante concluir que não basta a Administração apenas demonstrar no ato qual dos pressupostos é que está sendo invocado, necessitando, mais que isso, embasamento e fundamentação para a prática, agindo desta forma dentro dos princípios da administração, neste caso especialmente o princípio da finalidade.

Mesmo sendo apenas três possibilidades e apesar das modalidades serem muito parecidas e aparentemente buscar o mesmo fim, cada uma tem sua definição e particularidades, por esta razão cabe uma análise especial sobre cada um dos tipos de desapropriação. Para uma compreensão abrangente, a seguir é apresentado em que se consiste cada um dos casos.

a) Desapropriação por Necessidade Pública

Necessidade pública é tratada na doutrina como o momento no qual a Administração Pública precisa agir diante de algo indispensável e de extrema importância para ela.

Existe necessidade pública quando a Administração está diante de um problema inadiável e premente, isto é, que não pode ser removido, nem procrastinado, e para cuja solução é indispensável incorporar, no domínio do Estado, o bem particular (DI PIETRO, 2009, p. 169).

Diante do conceito doutrinário entendem-se necessidade pública como casos onde a atuação da Administração é imprescindível para analogicamente colocar em ordem o bom andamento do próprio Estado.

b) Desapropriação por Utilidade Pública

Casos de utilidade pública são trazidos no Artigo 5º do Decreto-Lei nº 3.365/41, bem como em outras leis especiais. Cabe neste modelo de desapropriação uma visão mais voltada ao interesse coletivo, sem deixar de destacar a validade e vantagem da Administração no ato expropriatório. 

Isso pode ser bem observado conforme conceito que Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2009, p. 169) apresenta, “Há utilidade pública quando a utilização da propriedade é conveniente e vantajosa ao interesse coletivo, mas não constitui um imperativo irremovível”.

Grande parte das vezes estes dois modos de desapropriação são tratados por doutrinadores dentro de um mesmo tópico, isto porque configura uma figura ampla e geral e, conforme visto nos conceitos acima demonstrados, estes pressupostos são realmente bem semelhantes.

c) Desapropriação por Interesse Social

O interesse social é visto como o de caráter mais direto ao interesse do povo em si, buscando melhorar condições de vida da população, visando ainda à diminuição da desigualdade social, seja através de uma melhor distribuição das riquezas geradas, ou distribuição de terras realizando reforma agrária, utilizando este caso como exemplo. 

Ainda pode ser visto como uma situação que proporciona a sociedade um maior acesso ou até mesmo o acesso a algum direito que lhe é concernente. Sendo este o ponto onde a questão da supremacia do interesse da sociedade sobre o do particular é mais evidente devendo ser valorizado e respeitado. O interesse social é algo de definição complexa e mutável, variando o seu foco no decorrer do tempo e situações específicas.

Não desmerecendo as outras modalidades previstas na Constituição, mas o interesse social é um dos pontos referentes à desapropriação que mais merece destaque dado não só a complexidade, quanto à importância para a coletividade.

Diante de todo o assunto já abordado, chega-se enfim ao assunto principal deste artigo e fica a questão: uma obra, que não tem cumprido sua função social pode ser objeto de desapropriação?

Já foi esclarecido em que consiste o direito autoral, o que se entende pela função social de uma obra e como se dá o processo de desapropriação. Pode haver uma junção disso e falar em desapropriação de obras por motivo de interesse social ou outro dos pressupostos da desapropriação?

Segundo já visto também previsão legal para isso existe através do Decreto Lei 3.365/1941. No entanto, a alínea “o” do artigo 5º que trata desta hipótese nunca foi aplicada de fato em algum caso concreto, sendo uma letra de lei um tanto quanto esquecida no tempo.

4.1 O CONTEXTO HISTÓRICO DO DECRETO 3.365/1941

Para compreender o motivo de existir esta determinação é interessante avaliar o contexto histórico em que esta norma foi criada. Este texto normativo foi editado e decretado por Getúlio Vargas na década de 40. Ocorre que nesta época o Brasil passava por um período de grandes necessidades populares.

Pressões por parte de setores da sociedade levavam o governo da época a agir de modo a garantir direitos à população em geral não apenas aos interesses dos mais favorecidos. Pressões relativas, visto que o que era visado mesmo naquela época era como manter-se no governo, para isso Getúlio Vargas soube lidar muito bem com todas as esferas da sociedade.

Visando popularidade e salvar uma situação que se encaminhava para uma crise Getúlio Vargas tomava decisões a satisfazer os anseios que o povo vinha solicitando, obviamente não há como negar que as ações funcionavam como uma excelente estratégia política de algo semelhante ao conceito de Bem Estar Social, promovendo avanços em áreas vitais para que mantivesse a massa em sua mão e assim prosseguir com seu regime.

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Entre as políticas adotadas impossível não se lembrar das leis trabalhistas criadas e consolidadas na época também, um pouco mais tarde em 1943 pelo próprio Getúlio, exemplo de como promoveu situações que colocassem seu nome como popular na época e bem quisto pela população.

O Decreto de 1941 visou tratar da desapropriação com objetivo em regular a reforma agrária, problema vivenciado na época e até hoje, que ainda gera grandes debates, além de tratar de explicar que a desapropriação caberia em casos de utilidade pública visando sempre o avanço do país.

Dentre as situações apresentadas no caso, há uma possível antinomia em relação específica a qual modalidade de desapropriação a questão de obras e direito autoral se enquadraria. Não sendo a princípio caso de utilidade pública, apesar de ser o que a lei apresenta expressamente.

4.2 APLICAÇÃO DO TERMO INTERESSE SOCIAL

Um dos últimos pontos sobre a apresentação de casos de utilidade pública abordados no decreto é a questão da reedição ou divulgação de obra ou invento de natureza científica, artística ou literária. Por que motivo isto consta no texto elaborado? Uma questão intrigante, mas que possui resposta clara e objetiva a princípio.

Porque foi percebido que esse ato era de interesse social e caso de utilidade pública e que através de desapropriações neste sentido poderiam ser alcançados avanços para o nosso país. Ocorre que no caso dos direitos autorais a expressão utilidade pública não é a mais adequada a ser utilizada, sendo mais correto utilizar-se do termo e do tipo de modalidade de desapropriação por interesse social.

O debate entra no possível erro cometido pelo legislador ao tratar como utilidade pública o que deveria ser interesse social. Uma antinomia na lei, algo comum no direito brasileiro.

O interesse da sociedade na questão encaixa-se perfeitamente na idéia de interesse social já delineada anteriormente, gerando a troca da modalidade de desapropriação a fim de se aplicar o termo a o método correto no caso.

Sendo assim, agindo conforme a autorização prevista na legislação, com a devida correção, este ato da Administração Pública tiraria parte do direito autoral do autor e utilizaria para que a obra cumprisse sua função social, ou seja, proporcionar conhecimento a sociedade.

Vale ressaltar que este direito a ser tomado pelo Estado não é o direito pessoal do autor, sobre isso Marçal Justen Filho (2009, p. 538) aborda da seguinte forma:

Bens personalíssimos não podem ser desapropriados. Os direitos da propriedade industrial podem ser objetos de desapropriação no tocante à utilização econômica. Assim, uma patente de invenção pode ser objeto de desapropriação, mas isso não transfere a autoria do invento para o ente expropriante.

Tal consideração sobre a patente de uma invenção pode ser transferida e utilizada analogicamente para o caso tratado, isto é, a aplicação em obras científicas. Conforme visto, a desapropriação aconteceria apenas no elemento material do direito do autor. Tendo em vista a impossibilidade de se alterar a paternidade da obra. Seria utilizado assim, apenas e tão somente, a fim de reeditar a obra ou colocá-la para divulgação promovendo o acesso.

4.3 A DESAPROPRIAÇÃO SEGUNDO O DECRETO 3.365/1941

Entra neste ponto específico a desapropriação apontada pelo Decreto Lei 3.365/1941. Por motivos de interesse social caberia ao Poder Público o dever de tomar para si os direitos materiais sobre a obra e reeditar uma obra ou divulgá-la.

Existindo a previsão legal não há dúvidas quanto à legalidade de tal prática, desde que seja realizada conforme os procedimentos presentes dentro do próprio Decreto Lei.

Para a aplicação deste ato administrativo seriam necessárias as seguintes observações:

a) à verificação de que a obra não tem cumprido sua função social;

b) a quantificação do valor a ser pago em função da desapropriação do bem;

c) a declaração de necessidade ou utilidade pública, ou ainda interesse social por parte do órgão competente;

d) e o devido processo legal administrativo no que se refere à desapropriação em si.

Cabe analisar cada um destes requisitos especificadamente:

a) A violação da função social, já destacada em um capítulo a parte seria constatada a partir da inércia dos responsáveis em tornar públicas a obra científica. Somente sendo de acesso ao povo, uma publicação estaria cumprindo seu dever social conforme já foi amplamente exposto anteriormente.

b) Com relação à questão dos valores a serem pagos ao expropriado em razão da desapropriação, é interessante trazer o comentário de Manoel de Oliveira Franco Sobrinho (1987, p. 97). “A partir da motivação, bem antes de atingir a finalidade, a questão já se coloca na reparação indenizatória. De saber se o preço a ser pago no interesse público corresponde à necessidade”.

O valor a ser pago deve ser viável dentro do orçamento da Administração, tudo realizado com previsão orçamentária e definido já antes da execução do ato de desapropriar.

Esta desapropriação ensejaria uma indenização diferente da aplicável nos casos de necessidade ou utilidade pública. Não sendo aplicados os termos de “indenização prévia e justa”, uma vez que a desapropriação seria aplicada quase que como uma sanção ao detentor do direito que não quer disponibilizá-lo. 

A permanência desta idéia iria de encontro ao objetivo da justiça social vislumbrado na ação do Estado. Essa imagem pode ser bem expressa com o que Paulo Jorge de Lima (1965, p. 140) traz na seguinte citação:

Se há um problema social a ser resolvido, é, evidentemente, inadmissível possa a desapropriação, em casos tais, constituir fonte de injusto enriquecimento ou servir à especulação ou à sede de lucro de uns poucos privilegiados, pois isso seria contrário ao propósito de melhor e mais equitativa distribuição da riqueza e da propriedade, que se encontra no fundo da desapropriação por interesse social.

c) Em outro ponto, referente à declaração da razão da desapropriação, ou seja, um dos pressupostos ou modalidades – necessidade pública, utilidade pública ou interesse social – tratados em pontos anteriores detalhadamente, deve ser respeitado para que não ocorra nulidade no ato.

Uma vez que o próprio decreto já coloca esta situação como um caso de utilidade pública não seria muito discutido, podendo, entretanto, ser enquadrado em outros casos, talvez ainda mais evidente na concepção de serem de interesse social, como conforme já visto, esta modalidade é mutável e encaixa-se melhor no caso apresentado no trabalho.

d) Decidida a modalidade a ser aplicada caberia ao detentor do direito, no caso o órgão competente da Administração Pública, a criação da lei que declara o bem passível da desapropriação.

Por fim, deve ser respeitado todo o procedimento legal da desapropriação, detalhado anteriormente neste trabalho. Há de se convir que tal prática seria muito útil e proporcionaria avanços significativos em muitos áreas.

A instituição da desapropriação por interesse social permite não apenas que o Estado interfira diretamente em obras científicas que não estão cumprindo sua função social, como também permite que se dê destinação adequada para o bem, colocando-o a disposição da sociedade.

Com essa atitude da Administração Pública, desapropriando o direito material do autor em obras que não venham cumprindo a função social, seria de extrema importância e muito bem vinda pela população. Assim o avanço no acesso ao conhecimento e a informação seria notável, possibilitando melhores condições de vida à sociedade e ao país de maneira geral.

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Sobre o autor
Amir Lopes Martins Junior

Advogado. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba - UNICURITIBA. Pós-Graduado em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Escola da Magistratura do Trabalho do Paraná - EMATRA 9ª Região. Pós-Graduando em Engenharia e Gestão Ambiental pela Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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