O princípio da obrigatoriedade de licitar impõe que, em regra, os destinatários da Lei realizem o procedimento licitatório, antes de contratar obras e serviços. Entretanto, a própria legislação traz ressalvas a esta obrigação, seja devido a hipóteses particulares, demora do rito ou inviabilidade de competição, entre outros motivos.
Conforme premissa estabelecida pelo inciso XXVII, do artigo 22 da Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre normas gerais de licitação. Isso significa que outros entes federativos poderão legislar sobre normas específicas acerca da matéria. Há, portanto, uma competência privativa da União, no que tange às regras gerais, e uma competência comum, no que se refere às regras específicas. De tal assertiva constitucional, conclui-se que todos os entes podem editar leis sobre licitação, em relação às regras específicas; contudo, em relação às regras de natureza geral (materialmente gerais), a competência legislativa privativa pertence à União, devendo todos os demais entes obedecer às regras gerais por ela traçada.
Ciente de que o Constituinte delegou a especificação das hipóteses de contratação direta para a legislação e que estabelece competência legislativa privativa para as normas gerais de licitação, cabe uma interessante indagação: enquanto norma, qual a natureza jurídica da regra legal que estabelece uma hipótese de contratação direta, para fins de definição da competência legislativa? Será norma geral, devendo, nos termos constitucionais, ser aprovada privativamente pela União?
Apesar de, na Lei nº 8.666/93, o legislador ter previsto o termo “norma geral”, esse conceito guarda certa imprecisão, visto que não há consenso na doutrina, quiçá no Supremo Tribunal Federal, sobre a definição de tal expressão, dificultando o entendimento acerca dos limites da competência da União.
No julgamento da ADI nº 927-3 (MC), o STF reconheceu que as normas de caráter específico contidas na Lei nº 8.666/93 são aplicáveis apenas à própria União, não vinculando, assim, os Estados e os Municípios, os quais poderão dispor em contrário em suas respectivas legislações. O então Ministro Carlos Velloso, em seu voto, consignou que “normas gerais devem apresentar generalidade maior do que apresentam, de regra, as leis. Penso que 'norma geral', tal como posta na Constituição, tem o sentido de diretriz, de princípio geral. A norma geral federal, melhor será dizer nacional, seria a moldura do quadro a ser pintado pelos Estados e Municípios no âmbito de suas competências” [1].
O citado Ministro avançou mais em seu raciocínio, suscitando que não seriam normas gerais aquelas que se ocupassem de “detalhamentos, pormenores, minúcias”; para ele, as normas deveriam conter o mínimo indispensável ao cumprimento dos preceitos fundamentais, permitindo espaço para que fossem explorados “aspectos diferentes, diversificados, sem desrespeito a seus comandos genéricos, básicos” [2].
Em outro momento, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 3.059[3], consignou que a relativização do princípio da isonomia é matéria legislativa que compete à União, no caso de normas gerais e nos temas relacionados à licitação pública. Desse modo, apesar da inexistência de um conceito concreto sobre “normas materialmente gerais”, é possível depreender, a partir da análise jurisprudencial da Suprema Corte, que tal termo relaciona-se aos princípios, fundamentos e diretrizes do procedimento licitatório.
Se o dever de licitar traduz-se como regra geral[4], as exceções a esta obrigatoriedade são feitas por normas também de caráter geral. Por consequência, tratando-se as hipóteses de contratação direta como regra geral (obrigatoriedade), a competência legislativa para criá-las é da União Federal. Nessa feita, tem-se defendido que, diante da competência privativa da União, decorrente do art. 22, inciso XXVII, da CF/88, em legislar normas gerais de licitação, as hipóteses de dispensa apenas podem ser estabelecidas por Lei Federal, a qual, diante da competência privativa para legislar, estabelecida no artigo 22 da Constituição federal, acaba vinculando Estados, Municípios e o DF.[5]
O Tribunal de Contas da União já encampou tal entendimento. Nesse sentido, a Corte de Contas firmou que as entidades do Sistema S não podem instituir em seus regulamentos novas hipóteses de contratação direta, haja vista que a matéria deve ser disciplinada por norma geral, de competência privativa da União[6]. Outrora, o Tribunal também já consolidara que tais entidades não poderiam inovar na ordem jurídica, por meio de seus regulamentos próprios, instituindo novas hipóteses de dispensa e de inexigibilidade de licitação, haja vista que a matéria deve ser disciplinada por norma legal, de competência privativa da União.[7]
Em síntese, conforme raciocínio construído por nossa jurisprudência, conclui-se que as regras legais que estabelecem as hipóteses de contratação direta caracterizam-se como normas materialmente gerais de licitações, sendo de competência privativa da União e vinculando os demais destinatários do princípio da obrigatoriedade de licitar, em sua perspectiva burocrática.
Notas
[1] ADI 927 (MC)/RS. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso. J. em 03/11/1993, p. em DJ 11/11/1994, p. 30.635
[2] ADI 927 (MC)/RS. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso. J. em 03/11/1993, p. em DJ 11/11/1994, p. 30.635
[3] ADI 3059 (MC)/RS. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carlos Britto. Julgado em 15/04/2004, p. DJ 20/08/2004, p. 36
[4] TCU. Acórdão[4]2832/2014-Plenário, relator Ministro Walton Alencar Rodrigues, 22/10/2014.
[5] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 7ª edição. Salvador: Jus Podivm, 2015. P.56.
[6] TCU. Acórdão 3195/2014-Plenário, revisor Ministro Bruno Dantas, 19.11.2014.
[7] TCU. Acórdão 1785/2013 – Plenário – Info TCU 59