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Cessão temporária de útero e filiação

26/04/2016 às 17:16
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A quem compete o reconhecimento da maternidade nos casos de cessão temporária de útero?

INTRODUÇÃO

A Constituição da República provocou uma crise de legitimidade do direito de família. Consagrou-se na Carta Magna a prioridade absoluta das relações existenciais em detrimento das relações patrimoniais e uma nova ordem pública fundada na solidariedade social e na dignidade da pessoa humana. Diante disso, houve a necessidade de reconstrução do Direito de Família construído à luz de um modelo patriarcal.

A família vigente no antigo Código Civil era apenas aquela formada por relações consanguíneas, isto é, uma relação biológica entre os membros de uma relação matrimonial. O casamento era fundamental para a constituição de uma família.

Entretanto, com o passar do tempo, surgiram filhos oriundos de relações não matrimonias que foram tratados de forma desigual diante de filhos advindos de um casamento. Surgiu, então, a Constituição Federal de 1988 que estabeleceu, além da paridade dos filhos, a igualdade entre homens e mulheres, pondo fim ao poder despótico do marido sobre a mulher.

A família hoje se tornou plural, democratizou-se, transformando-se em um instrumento privilegiado de convivência, de amor e liberdade, voltada para a plena realização dos filhos.

Entende-se que a filiação não é somente aquela resultante de laços de sangue, mas também aquela que se forma pelo afeto, amor, convivência e carinho, sendo chamada de filiação socioafetiva.

Assim, são considerados pais ou mães aqueles que possuem uma relação de afeto com o filho, contraindo responsabilidades e deveres independentemente do vínculo biológico e, indo além, nada mais justo reconhecer como pai e mãe aqueles que antes da própria concepção desejaram intensamente a vida do filho, tendo contribuído ou não com o material genético para a projeção de um projeto parental.

É dentro desse projeto parental precedente ao nascimento dos filhos que está inserida a cessão de útero, também chamada de barriga de aluguel.


NOÇÕES GERAIS

A busca por práticas terapêuticas contra a infertilidade corresponde a um desejo perseverante do casal infértil, mantida pela evolução científica e pelos progressos que surgem. A mãe de substituição aparece, muitas vezes, como o último recurso, depois de vários tratamentos fracassados.

A mãe substituta é entendida por muitos doutrinadores como sendo a mulher que cede seu útero para a gestação do filho, concebido pelos gametas masculino e feminino de terceiros, a quem a criança deverá ser entregue incontinenti após o nascimento, assumindo a fornecedora do óvulo a condição de mãe.

Essa técnica é conhecida por vários nomes, tais como útero de empréstimo, útero de aluguel, gestação sub-rogada, mãe substituta, barriga de aluguel, entre outros.

A prática é ancestral, sendo, inclusive, citada em algumas passagens da Bíblia, como em Gênesis 16, aonde Sara, mulher de Abraão, incapaz de procriar, pede a seu marido que lhe proporcione a maternidade através de Hagar, sua criada.

Os primeiros casos de empréstimo de útero datam de 1963 no Japão e de 1975 nos Estados Unidos. Entretanto, somente em 1988, com o caso “Baby M” nos Estados Unidos foi que ocorreu grande repercussão sobre o tema.

O casal de cientistas William e Elizabeth Stern assinou um contrato de locação de útero com Mary Beth Whitehead, casada e com dois filhos, para que esta carregasse a criança concebida com o esperma concedido pelo senhor Stern. Apesar da remuneração fixada em USS 10.000,00, adicionada de USS 2.000,00 para despesas variadas, a mulher recusou-se a entregar a criança após o parto. O caso foi levado a julgamento e a Suprema Corte de New Jersey decidiu a favor do casal Stern e a sentença fundamentou-se no melhor interesse para a criança em ser educada por uma família com mais recursos.


ASPECTOS MÉDICOS

A técnica da cessão temporária de útero consiste em utilizar-se de uma terceira pessoa para assegurar a gestação, quando a gravidez apresentar riscos para a mãe ou quando o útero materno estiver impossibilitado de desenvolver normalmente o ovo fecundado.

A partir dos avanços da medicina e da evolução do conhecimento cientifico na área de reprodução humana, houve uma evolução da inseminação artificial às atuais técnicas de fertilização in vitro com a transferência de embrião.

É indicada para mulheres portadoras de deficiências de nascença ou adquiridas, as quais  são impossibilitadas de levar à termo uma gravidez.

Os embriões são coletados da mãe e transferidos para a mãe de substituição durante o ciclo natural ou induzido.

Tal procedimento pode se dividir em duas hipóteses distintas: a mãe portadora, que é aquela que apenas cede se útero, sendo uma mulher fértil que recebe um ou mais embriões obtidos pela fecundação in vitro, a partir dos óvulos e dos espermatozoides do casal solicitante.

Ao invés da primeira pode se ter a mãe de substituição que é aquela que além de ceder seu útero doa seus óvulos, ou seja, é uma mulher fértil que será inseminada com o esperma do marido da mulher que não consegue conceber e, caso ocorra a gravidez, ela dará, após o nascimento, a criança ao casal.


DISPOSIÇÕES LEGAIS APLICÁVEIS À CESSÃO TEMPORÁRIA DE ÚTERO

A Constituição Federal de 1988 não trata sobre assunto, sendo as Resoluções n. 1358/1992, n. 2.013/13 (já revogada) e n. 2.121/15, todas  do Conselho Federal de Medicina, as normas que fazem  referência à gestação por outrem.

De acordo com a Resolução 1358/1992, a utilização da gravidez por substituição pode ocorrer desde que haja impedimento físico ou clínico para que a mulher, doadora genética, possa levar a termo uma gravidez, estando tal prática restrita ao núcleo familiar, com o intuito de coibir qualquer caráter lucrativo ou comercial na relação estabelecida.

VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO

(DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO)

As Clínicas, Centros ou Serviços de Reprodução Humana podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética.

1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.

2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.

Ressalte-se que tal norma apenas dispõe de regras de caráter facultativo, por não ter força de lei, posto que seu desrespeito pelos médicos implica em sanções apenas administrativas.

Sobre este ponto preceituam Edson Borges Júnior e Deborah Ciocci Oliveira que a gestação por substituição é regida fundamentalmente pelo ordenamento existente e, enquanto não aprovado nenhum projeto de lei a respeito, seus limites são impostos pelo controle informal, da própria sociedade.

A Resolução n. 2.121/2015, que revogou a Resolução n. 2.013/2013, trouxe inovações ao tema, permitindo o uso da técnica de reprodução assistida em pacientes com mais de cinquenta anos de idade; reforçou a possibilidade da gestação de substituição para casais homoafetivos, já prevista na norma anterior revogada; e a possibilidade de as pessoas envolvidas não serem do mesmo núcleo familiar, desde que haja autorização do Conselho Regional de Medicina respectivo.

Buscou-se com as disposições de tais limites restringir a crescente procura pelas mães substitutas por famílias desprovidas de capacidade psicológica para enfrentar as consequências dessa técnica de reprodução artificial.


FILIAÇÃO

Outro aspecto bastante relevante em relação à cessão temporária de útero é saber a qual mulher deve ser atribuída a maternidade: à doadora do material genético ou à que carregou em seu ventre a criança.

Frequentemente atribui-se a maternidade à doadora do material genético, pois caso fosse considerado filho da cedente do útero poderia ajuizar ação de investigação de paternidade/maternidade, na qual se constataria seu vínculo genético com outro pai/mãe, culminando no reconhecimento dos efeitos sucessórios daí decorrentes.

A Lei n. 8089/1990, Estatuto da Criança, em seu artigo 19 traz o princípio da preferência da família natural sobre a substituta:

Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

Desse modo, afirma-se que a mulher doadora do material genético pertence à família natural da criança e, o Estatuto a prefere como mãe.

Preleciona Sílvio de Sávio Venosa:

Quanto à maternidade, deve ser considerada mãe aquela que teve o óvulo fecundado, não se admitindo outra solução, uma vez que o estado de família é irrenunciável e não admite transação. Nem sempre será essa, porém, uma solução eticamente justa e moralmente aceita por todos. A discussão permanece em aberto. Muito difícil poderá ser a decisão do juiz ao deparar com um caso concreto. Tantos são os problemas, das mais variadas ordens, inclusive de natureza psicológica na mãe de aluguel, que o mesmo projeto de lei sobre reprodução assistida citado, em tramitação legislativa, proíbe a cessão do útero de uma mulher para gestação de filho alheio, tipificando inclusive essa conduta como crime. Sem dúvida, essa é a melhor solução. No entanto, a proibição não impedirá que a sociedade e os tribunais defrontem com casos consumados, ou seja, nascimentos que ocorreram dessa forma, impondo-se uma solução quanto à titularidade da maternidade. Sob o ponto de vista do filho assim gerado, contudo, é inafastável que nessa situação inconveniente terá ele duas mães, uma biológica e outra geratriz. Não bastassem os conflitos sociológicos e psicológicos, os conflitos jurídicos serão inevitáveis na ausência de norma expressa

Ademais, a Resolução n. 2.121/2015 visou esclarescer a questão da filiação estabelecendo a garantia do registro civil da criança pelos pais genéticos, devendo a documentação exigida ser providenciada durante a gravidez.

Enquanto não existe lei específica que trate da matéria, cabe ao Poder Judiciário a análise do caso, sendo que o melhor interesse da criança orientará a decisão judicial.

A Corregedoria Geral de Justiça proferiu decisão sobre reprodução assistida no Processo n. 2009/104323, abaixo transcrita.

PARECER Nº 82/2010\n PROCESSO Nº 2009/104323

Data inclusão: 21/05/2010 (082/10_E)

REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS - Assento de nascimento - Filha gerada mediante fertilização in vitro e posterior inseminação, artificial, com implantação do embrião em mulher distinta daquela que forneceu o material genético - Pretensão de reconhecimento da paternidade pelos fornecedores dos materiais genéticos (óvulo e espermatozóide) - Cedente do óvulo impossibilitada de gestar, em razão de alterações anatômicas - "Cedente do útero", por sua vez, que o fez com a exclusiva finalidade de permitir o desenvolvimento do embrião e o posterior nascimento da criança, sem intenção de assumir a maternidade - Confirmação, pelo médico responsável, da origem dos materiais genéticos e, portanto, da paternidade biológica em favor dos recorridos - Indicação da presença dos requisitos previstos na Resolução nº1.3588/1992 do Conselho Federal de Medicina, em razão das declarações apresentadas pelos interessados antes da fertilização e inseminação artificiais - Assento de nascimento já lavrado, por determinação do MM. Juiz Corregedor Permanente, com consignação da paternidade reconhecida em favor dos genitores biológicos - Recurso não provido.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça:

1. Trata-se de recurso interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra r. decisão do MM. Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito de Barão Geraldo, da Comarca de Campinas, que afastou a recusa de lavratura de assento de nascimento de criança com imputação da paternidade aos fornecedores de materiais genéticos utilizados para fertilização in vitro e inseminação artificial em mulher que, sem ser a produtora do óvulo, autorizou a prática do ato com a exclusiva finalidade de permitir o desenvolvimento do embrião e o seu futuro nascimento.

O recorrente alega, em suma, que a maternidade é presumida pela gestação, sendo mãe aquela que pariu a criança. Afirma que o contrato celebrado entre os envolvidos, intermediado por médicos do Centro de Reprodução Humana de Campinas, ligado à Faculdade de Medicina da Unicamp, não supera o princípio da maternidade certa pela gestação e parto. Assevera que, no presente caso, não existe segurança jurídica da origem dos materiais genéticos que resultaram na fertilização artificial, para o que seria necessária a produção de exame de confronto do DNA da criança com os dos requerentes, prova cuja produção o presente procedimento administrativo não comporta. Diz que devem prevalecer os interesses da criança, o que ocorrerá com a lavratura de assento de nascimento que retrate a estrita veracidade quanto à paternidade e maternidade, de forma a assegurar a preservação da dignidade humana. Considera que a lavratura do assento de nascimento na forma pretendida não possibilitará o futuro conhecimento, pela criança, de sua real origem, porque ocultará a verdadeira maternidade. Além disso, não existe regulamentação legal para a prática pretendida pelos recorridos, o que impõe maiores cautelas e impede, por sua vez, a presunção de paternidade e maternidade tão só pelas declarações apresentadas pelos interessados, nas quais se inclui a do médico responsável pela fertilização e pela inseminação. Tece comentários sobre a possibilidade de manipulação genética vedada ou ilegal. Afirma, por fim, que a genitora que deu à luz não tem parentesco com os supostos pais biológicos, o que contraria resolução do Conselho Federal de Medicina destinada a impedir a comercialização do útero. Requer o provimento do recurso para que seja determinada a lavratura do assento de nascimento em nome da mulher indicada como genitora na Declaração de Nascido Vivo, com remessa dos interessados às vias ordinárias para a solução de eventual litígio relativo à paternidade e maternidade.

A douta Procuradoria Geral de Justiça opina pelo não provimento do recurso (fls. 60/63).

Opino.

2. Hélio Ferreira da Cunha Júnior e Sandra Regina Locatelli formularam ao Oficial de Registro Civil de Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito de Barão Geraldo, da Comarca de Campinas, solicitação para que figurem como genitores no assento de nascimento de Marina Locatelli Cunha, nascida em 27 de julho de 2009.

Essa solicitação foi instruída com "Declaração de Nascido Vivo" expedida pelo Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher - CAISM - Unicamp, em que Mônica Emi Tsuruda se encontra identificada como genitora por se cuidar daquela que deu à luz.

Foram apresentados pelos recorridos, ainda; a) "Termo de Consentimento para Substituição Temporária de Útero" em que Hélio Ferreira da Cunha Júnior e Sandra Regina Locatelli figuram como "Pais Genéticos", ou seja, fornecedores do óvulo e do espermatozoide, e Anderson Ferreira da Cunha e Mônica Emi Tsuruda figuram como "Doadores do Útero" (fls. 4/8); b) "Termo de Consentimento Pós Informado para FIV/ICSI" (fls. 09/10); c) "Termo de Consentimento Pós-Informado para Criopreservação de Pré-Embriões/Embriões após Fertilização In Vitro" (fls. 11/12); d) declaração prestada pelo médico Carlos Alberto Petta confirmando a origem dos materiais genéticos que resultaram na fertilização e inseminação artificiais; e) declaração de Mônica Emi Tsuruda no sentido de que foi submetida à inseminação artificial de embrião fertilizado com uso de materiais genéticos alheios e de que não tem pretensão de assumir a maternidade da criança assim gerada (fls. 25).

3. O MM. Juiz Corregedor Permanente, fundado na inexistência de vedação legal para o procedimento adotado na fertilização e inseminação artificiais, na natureza relativa das presunções de paternidade e maternidade decorrentes da lei, e no melhor interesse da criança, determinou a lavratura do assento de nascimento com consignação de que é filha de seus pais biológicos, ou seja, fornecedores dos materiais genéticos utilizados na fertilização in vitro, com arquivamento do procedimento pelo Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais para fornecimento, aos interessados, de certidão relativa ao seu conteúdo, mediante prévia autorização judicial (fls. 32/41).

4. Presume-se a maternidade em favor daquela que consta no termo do nascimento do filho (artigos 1.603 e 1.608 do Código Civil), elaborado em consonância com a Declaração de Nascido Vivo (artigo 10, inciso IV, da Lei nº 8.069/90) e a paternidade em favor do marido quanto aos filhos nascidos na constância do casamento, ainda que havidos por inseminação artificial heteróloga consentida (artigos 1.597 e 1.600 do Código Civil).

Além disso, presume-se a maternidade e a paternidade em favor daqueles que, não sendo casados, a reconhecerem voluntariamente (artigos 1.607 e 1.609 do Código Civil, artigo 59da Lei nº 6.015/73 e artigos 1º e 2º da Lei nº 8.560/92).

Cuida-se, por sua vez, de presunções relativas, o que possibilita a contestação da maternidade e da paternidade pelos legitimados na forma da lei (artigos 1061 e 1608 do Código Civil), ressalvada a irrevogabilidade do reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento (artigo 1609 e 1610 do referido Código).

Admite-se, outrossim, que na falta ou defeito do termo de nascimento seja a prova da filiação realizada por qualquer modo admissível em direito quando houver começo de prova escrita, proveniente do pai ou da mãe, e quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos (artigo 1.605, incisos I e II, do Código Civil).

5. No caso em exame, não incide a presunção de paternidade em favor de Anderson Ferreira da Cunha, qualificado como "doador de útero" no "Termo de Consentimento para Substituição Temporária de Útero" (fls. 4), porque o próprio Anderson declarou não ser o fornecedor do material genético, nem ter autorizado a fecundação heteróloga de sua companheira com a finalidade de gerar prole para o casal.

Ademais, foi posteriormente apurado que Mônica Emi Tsuruda, que figurou como cedente do útero é solteira, (fls. 25 e 26) fato não alterado pela eventual manutenção de união estável com Anderson Ferreira da Cunha porque não há, nesta esfera administrativa, presunção de paternidade para o companheiro sem que expressamente a declare para efeito de estabelecimento de filiação mediante registro.

Por tais motivos, prevalecem, in casu, as declarações de Hélio Ferreira da Cunha Júnior no sentido de que é o genitor biológico da criança gerada por meio de fertilização in vitro e dela reconhece a paternidade (fls. 2 e 4/12).

Dessa forma decorre dos artigos 1.609, inciso II, do Código Civil, 59 da Lei nº 6.015/73 e 1º, inciso II, da Lei nº 8.560/92, anteriormente citados, cabendo observar que o reconhecimento de paternidade contou com as anuências de Monica Emi Tsuruda (fls. 25) e de Sandra Regina Locatelli (fls. 2).

Não havia, portanto, impedimento para a lavratura do assento de nascimento (já promovido) com imputação da paternidade ao genitor biológico da criança que foi gerada por meio de fertilização in vitro e posterior inseminação artificial.

6. Por outro lado, o Código Civil, em seu artigo 1.597, incisos III a V, estabelece presunção de paternidade do marido em relação aos filhos havidos por inseminação artificial homóloga (incisos I e II) e por inseminação artificial heteróloga previamente consentida (inciso III).

A legislação pátria, contudo, não contém ressalva para a presunção de maternidade decorrente do parto (artigos 1.603 e 1.608 do Código Civil e 10, inciso IV, da Lei nº8.069/90), seja a criança gerada por fertilização natural ou artificial.

Presume-se, portanto, mãe aquela que deu à luz, independente da origem do óvulo, o que se faz em atendimento ao princípio mater semper certa est.

7. Diante da inexistência de legislação específica, o Conselho Federal de Medicina, no campo da ética, regulamentou a conduta de seus membros, na denominada "gestação de substituição", por meio da Resolução nº 1.358/92 que assim dispõe:

"VII - SOBRE A GESTAÇAO DE SUBSTITUIÇAO (DOAÇAO TEMPORÁRIA DO ÚTERO)

As Clínicas, Centros ou Serviços de Reprodução Humana podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética.

1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.

2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial".

Fora, porém, do campo da ética na conduta dos médicos, encontra-se na doutrina jurídica divergência sobre o tratamento a ser dispensado aos casos de gestação por substituição, em que ocorre a fertilização do óvulo de outrem, in vitro, e a sua posterior inseminação, por meio artificial, naquela que acaba por suportar a gestação e realizar o parto.

Rolf Madaleno, sobre o tema, assim se posiciona:

"Anota Belmiro Pedro Welter ser definida a maternidade pelo parto e esta é a orientação que tem prevalecido de ser mão aquela que dá à luz a criança, sendo negados efeitos jurídicos aos contratos de gestação substituta e que a quase totalidade dos países consideram inclusive um ilícito penal"(Curso de Direito de Família, 2008, Rio de Janeiro: Forense, 1ª ed., págs. 395/396).

Paulo Lôbo, seguindo linha não dissonante, diz que:

"O Brasil, ao lado maioria dos países, não acolheu o uso instrumental do útero alheio, sem vínculo de filiação (popularmente conhecido como "barriga de aluguel"). Com a natureza de norma ética, dirigida à conduta profissional dos médicos, a Resolução n. 1.358, de 1992, do Conselho Federal de Medicina, admite a cessão temporária do útero, sem fins lucrativos, desde que a cedente seja parente colateral até o segundo grau da mãe genética"(Direito Civil: famílias, 2008, São Paulo: Saraiva, págs. 199/200).

O referido autor, além disso, prossegue esclarecendo que o §1.591 do Código Civil alemão, com a redação dada por lei de 1997, prevê que a maternidade da mãe parturiente não pode ser anulada por falta de ascendência genética, nem desafiada por ação de investigação de maternidade"(obra citada, pág. 200).

Já para Sílvio de Salvo Venosa:

"Quanto à maternidade, deve ser considerada mãe aquela que teve o óvulo fecundado, não se admitindo outra solução, uma vez que o estado de família é irrenunciável e não admite transação. Nem sempre será essa, porém, uma solução eticamente justa e moralmente aceita por todos. A discussão permanece em aberto. Muito difícil poderá ser a decisão do juiz ao deparar com um caso concreto. Tantos são os problemas, das mais variadas ordens, inclusive de natureza psicológica na mãe de aluguel, que o mesmo projeto de lei sobre reprodução assistida citado, em tramitação legislativa, proíbe a cessão do útero de uma mulher para gestação de filho alheio, tipificando inclusive essa conduta como crime. Sem dúvida, essa é a melhor solução. No entanto, a proibição não impedirá que a sociedade e os tribunais defrontem com casos consumados, ou seja, nascimentos que ocorreram dessa forma, impondo-se uma solução quanto à titularidade da maternidade. Sob o ponto de vista do filho assim gerado, contudo, é inafastável que nessa situação inconveniente terá ele duas mães, uma biológica e outra geratriz. Não bastassem os conflitos sociológicos e psicológicos, os conflitos jurídicos serão inevitáveis na ausência de norma expressa"(Direito Civil: direito de família, 2007, São Paulo: Atlas, 7ª ed., pág. 224).

Por seu lado, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, ao comentar o que denomina como "maternidade-de-substituição", conclui que deve prevalecer a vontade volitiva que se revelar em prol do melhor interesse do filho, o que faz nos seguintes termos:

"No Brasil, contudo, no estágio atual dos valores culturais, religiosos e morais relativamente à maior parte da sociedade, não se mostra possível conceber a licitude da prática da maternidade de substituição, conforme foi analisado, mesmo na modalidade gratuita. Contudo, em havendo a prática - mesmo que de forma ilícita -, logicamente que a criança não poderá ser considerada espúria e, consequentemente, deve ter resguardados os seus direitos e interesses, entre eles o de integrar uma família onde terá condições de ser amparada, sustentada, educada e amada, para permitir seu desenvolvimento pleno e integral em todos os sentidos, cumprindo-se, desse modo, os princípios e regras constitucionais a respeito do tema. Quanto à paternidade, maternidade e filiação originárias, no entanto, é oportuno o observar o mesmo raciocínio anteriormente desenvolvidos a respeito da vontade como principal pressuposto para o estabelecimento dos vínculos, em substituição à relação sexual, já que também na maternidade de substituição - como prática associada às técnicas de procriação assistida - não há que se cogitar na conjunção carnal para o fim de permitir a concepção e o início da gravidez da mulher gestante"(O Biodireito e as Relações Parentais, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, págs. 862/863).

Luiz Edson Fachin, considerando predominantes a verdade biológica ligada à verdade socioafetiva, entende que:

"O avanço da técnica médica presta relevantes serviços aos fins do Direito de Família. Sem embargo, a plena possibilidade de atestar a verdade biológica, em percentuais elevados de confirmação da paternidade pela via do exame em DNA, traduz consigo mesma um paradoxo: a verdade biológica pode não expressar a verdadeira paternidade. Cogita-se, então, da verdade socioafetiva, sem exclusão da dimensão biológica da filiação.

De outra parte, verifica-se que a procriação artificial tem a finalidade de possibilitar a geração de um descendente de sangue. Neste aspecto, também aqui surge o problema da valoração da verdade socioafetiva.

No vazio legislativo ordinário, contempla a temática na perspectiva da inseminação artificial a Resolução n. 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina. Das "Normas Éticas para a Reprodução Assistida" daquela Resolução emergem algumas características: 1) A reprodução assistida é "subsidiária"; 2) Toda manipulação genética deve evitar a seleção da espécie, princípio fundamental para evitar a eugenia; 3) A mulher, para submeter-se à reprodução assistida, deve ser casada ou manter união estável; 4) A Resolução prevê a gestação por substituição, desde que seja com pessoa da família, parentes de segundo grau. Assim, em tese, estaria vedada a contratação de terceiro para realizar a gestação por substituição.

Em suma, parentesco e benemerência, gratuidade e impossibilidade da reprodução pelas vias normais equilibram esse regime de "doação gratuita e temporária" do útero".

8. Verifica-se na doutrina citada que, ante a ausência de regulamentação legislativa, a solução para as situações concretas, ocorridas a fertilização in vitro e a posterior inseminação artificial em "cedente de útero", ou "mãe-de-substituição", deve prevalecer o melhor interesse da criança desse modo concebida e nascida, o que, neste caso concreto, corresponde à lavratura do assento de nascimento com base na verdade biológica da filiação.

Assim porque as declarações apresentadas por Hélio Ferreira da Cunha Júnior, Sandra Regina Locatelli (pais biológicos) e Mônica Emi Tsuruda (indicada como genitora na Declaração de Nascido Vivo), são concludentes no sentido de que a concepção e paternidade sempre foi desejada pelos pais biológicos, doadores dos materiais genéticos utilizados na fertilização in vitro, prestando-se Mônica somente a servir para a gestação e parto, sem qualquer intenção de assumir a maternidade da criança, o que fez porque Sandra Regina Locatelli não tem possibilidade de gestar em decorrência de alterações anatômicas (fls. 05).

Nesse sentido são as declarações contidas nos documentos de fls. 02 e 04/08 e, mais, a declaração de fls. 25 em que Mônica Emi Tsuruda afirma:

"DECLARO AINDA que NAO TENHO nenhuma pretensão de assumir a maternidade de tal criança, que não é minha filha, visto que apenas e tão somente doei meu útero para gestação conforme TERMO DE CONSENTIMENTO PARA SUBSTITUIÇAO TEMPORÁRIA DE ÚTERO, constante nestes autos" (fls. 25).

Negada a intenção de assumir a maternidade por aquela que suportou a gestação e parto, porque somente o fez com a premeditada intenção de servir de "mãe-de-gestação" para a filha concebida pelos doadores dos materiais genéticos (espermatozoide e óvulo), torna-se evidente que a lavratura do registro em desconformidade com a verdade biológica será prejudicial à criança que nenhum sustento e educação receberá dessa genitora.

O mesmo ocorre em relação a Anderson Ferreira da Cunha, companheiro de Mônica Emi Tsuruda, porque também manifestou sua anuência com a gestação por substituição visando o nascimento de filho (ou filha) biológica de Hélio Ferreira da Cunha Júnior e Sandra Regina Locatelli (fls. 04/08).

Prevalecendo a verdade biológica, terá a criança estado compatível com sua condição socioafetiva, pois serão presumidos genitores (artigo 1.604 do Código Civil) aqueles que manifestaram, desde a concepção, a posteriormente concretizada intenção de tê-la como filha, assumindo, desse modo, a responsabilidade por todos os devedores inerentes ao poder familiar, em especial os de sustento e educação.

E a possibilidade de prevalência da verdade socioafetiva não é estranha à legislação civil, porque abarcada pelo artigo 1.593 do Código Civil, cabendo, novamente, ressaltar que neste caso concreto a paternidade socioafetiva correspondente à biológica.

No mesmo sentido encontra-se o r. parecer do douto Procurador de Justiça, Dr. Luiz Felippe Ferreira de Castilho Filho, com o seguinte teor:

"É certo que não se tem certeza absoluta se o embrião introduzido no útero de Mônica Emi Tsuruda é, de fato, produto da inseminação do espermatozóide do requerente Hélio no óvulo da requerente Sandra. No entanto, não há nos autos nenhum indício que levante dúvidas a respeito disso, sendo certo que nem mesmo um exame de DNA garantiria a certeza absoluta sobre seu resultado. Além do mais, o registro será sempre passível de contestação e de correção, caso não exprima verdade biológica. Há, ainda, a questão da vinculação socioafetiva, que, no caso presente, existe a partir do momento em que os requerentes aceitaram realizar o procedimento médico, cientes de todos os riscos que um procedimento desta natureza possui.

Também não há que se falar em ofensa à preservação da história da criança, já que o que se está buscando é justamente garantir que seu registro de nascimento espelhe a verdade biológica e afetiva, sendo indiferente se quem a pariu foi sua mãe biológica ou terceira pessoa. Mesmo porque a própria Mônica Emi Tsuruda manifestou no sentido de que não é a mãe da criança, sendo que apenas cedeu seu útero para que a gestação fosse levada até o fim, reconhecendo a maternidade da requerente (fls. 25). Em termos práticos, o útero de Mônica Emi Tsuruda equivale a uma incubadora, já que, por mais altruísta que tenha sido a conduta, foi apenas o meio utilizado para que o feto pudesse sobreviver"(fls. 62/63).

Cabe, outrossim, anotar que tendo Mônica Emi Tsuruda e Anderson Ferreira da Cunha declarado a existência de união estável, assumindo a primeira a qualidade de cunhada dos genitores biológicos (fls. 4), não há que se falar na ausência de parentesco por afinidade entre a "mãe de substituição" e os pais biológicos, na linha colateral, porque também existe nessa forma de constituição de família (artigo 1.595, parágrafo 1º, do Código Civil).

Assim, no caso concreto, prevalente a paternidade biológica, Anderson Ferreira da Cunha, que era companheiro de Mônica Emi Tsuruda na época da inseminação artificial, será tio paterno da criança nascida após a fecundação artificial (fls. 14 e 30).

9. Por fim, anota-se que mediante determinação do MM. Juiz Corregedor Permanente (fls. 51) já foi lavrado o assento de nascimento da criança, conforme se verifica pela certidão copiada às fls. 55.

10. Ante o exposto, o parecer que respeitosamente submeto ao elevado critério de Vossa Excelência é no sentido de negar provimento ao recurso.

Sub censura.

São Paulo, 19 de março de 2010.

José Marcelo Tossi Silva

Juiz Auxiliar da Corregedoria

DECISAO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Auxiliar da Corregedoria e por seus fundamentos, que adoto, nego provimento ao recurso interposto.

Publique-se.

São Paulo, 26 de março de 2010.

Des. ANTONIO CARLOS MUNHOZ SOARES.

Corregedor Geral da Justiça.

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CONCLUSÃO

Com o progresso cientifico das últimas décadas, surgiu toda uma gama de direitos, sob o prisma do homem como meio para experimentos científicos na área da saúde. No mesmo sentido apareceu uma lacuna não só no ordenamento jurídico brasileiro, como também nas normas jurídicas de outros países.

Com essa lacuna, para a solução dos conflitos que surgiram, fez necessário recorrer às normas sociais, éticas e analogicamente à norma de direito utilizada para solucionar as demais indagações e conflitos.

Na evolução das práticas de Reprodução Assistida e na possibilidade das mães de substituição, os julgamentos norteadores para a determinação da maternidade modificaram-se.

Atualmente, não se admite que sejam levados em conta apenas os tradicionais aspectos biológicos, gestacionais e afetivos, ou até mesmos legais. Estes pontos são insuficientes, devendo se priorizar os interesses da criança enquanto sujeito de direitos que deve ser tutelado.

Assim sendo, determinar a quem será dada a maternidade usando os aspectos meramente legais tradicionais, seja à mãe biológica, que espera esse filho até mesmo antes da concepção, seja à mãe gestacional, que estabelece um vínculo emocional com o filho, muitas vezes caracteriza uma decisão não razoável, dada a subjetividade da questão como também pelo impacto afligido à parte que teve a maternidade negada.

Nesse sentido tais decisões jurídicas precisam ser fundadas no interesse da criança, não sendo possível escolher, unicamente, quem tem o direito de ser mãe, mas, sobretudo, acolher a maternidade que melhor responderá às necessidades da criança em questão.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIÇA – SP. Processo 104.323/2009. Disponível em: http://www.tjsp.jus.br/cco/obterArquivo.do?cdParecer=1672 . Acesso em 14/02/2016.

DIAS, Caroline Mendes. Aspectos legais da “barriga de aluguel”. Disponível em: http://www.resinamarcon.com.br/artigo/96/aspectos-legais-da-barriga-de-aluguel/. Acesso em 04/02/2016.

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, Lei 8.080/90. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm. Acesso em 05/04/2016.

Christine Keler de Lima. Mães substitutas e a determinação da maternidade: implicações da reprodução mediamente assistida na fertilização in vitro heteróloga. Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1310. Acesso em 03/03/2016.

OLIVEIRA, Deborah Ciocci Alvarez de, BORGES JUNIOR, Edson. Reprodução Assistida: até onde podemos chegar? Compreendendo a ética e a lei. São Paulo: Gaia, 2000.

SILVA, Flávia AlessandraNaves. Gestação de substituição: direito a ter um filho. Revista de Ciências Jurídicas e Sociais, Guarulhos, v. 1, n. 1, 2011. Disponível em: http://revistas.ung.br/index.php/cienciasjuridicasesociais/article/viewFile/914/894. Acesso em 04/04/2016.

SILVA, Cláudia. Barriga de aluguel ou Cessão temporária gratuita de útero. Disponível em: http://direitocacausilva.blogspot.com.br/2011/06/barriga-de-aluguel-ou-cessao-temporaria.html. Acesso em 03/04/2016.

VENOSA, Sílvio de Sávio. Direito Civil: volume 6: direito de família. 7. Ed. Editora Atlas S.A: São Paulo, 2007. 

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FREITAS, Hannah Yasmine Lima. Cessão temporária de útero e filiação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4682, 26 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48268. Acesso em: 18 abr. 2024.

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