3.2 A QUESTÃO MORAL DA APLICAÇÃO DO INSTITUTO
A despeito da eficiência que a colaboração premiada pode alcançar, no auxílio das investigações e desbaratamento das organizações criminosas, muito se critica a sua utilização, no que diz respeito às premissas éticas do Estado.
Não poderia o Poder Público, segundo os críticos, valer-se de um artifício que surge de um ato ignóbil e imoral, qual seja, a traição dos integrantes das organizações criminosas em relação aos seus comparsas.
Certo é que os criminosos possuem artifícios que o Estado nunca (legalmente) poderá ter. A completa e irrestrita ausência de cerceamento moral é o norte de tais artifícios, dois quais se desdobram outros tantos, como a corrupção de agentes públicos, a percepção de lucros exorbitantes, a prática de atos terroristas, e a imposição da lei do silêncio, apenas para exemplificar.
O debate perpassa, então, para os limites estatais em combater as organizações criminosas. Não há controvérsias no fato de que, por essência do estado democrático de direito, o Estado deve respeito às normas, aos direitos e garantias fundamentais, o que implica na impossibilidade de substituir os indivíduos na prática de condutas criminosas.
Em outras palavras, veda-se a utilização de armas, que não aquelas condizentes com a Constituição Federal, as leis, e o estado democrático de direito, sob pena de ser o próprio Estado um ente criminoso, situação essa que — a história nos mostra — é incomparavelmente mais perigosa.
Cite-se, dentre os críticos mais ferrenhos, o criminalista argentino Eugênio Raul Zaffaroni, o qual argumenta que a cobertura que se dá aos colaboradores, garantindo-lhes a impunidade, é uma séria lesão à eticidade do Estado, princípio que, em suas palavras, forma parte essencial do Estado de Direito. Aduz o autor que “o Estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao preço da sua impunidade para ‘fazer justiça’, o que o Direito Penal liberal repugna desde os tempos de Beccaria”[1].
No Brasil, uma das críticas mais contundente é a sustentada por Alberto Silva Franco, para o qual, independentemente dos fins a que se destina, ou mesmo a rotulagem que se lhe imponha, a colaboração premiada é reprovável, sob o ponto de vista ético. Discorre o autor:
A delação premiada, qualquer que seja o nome que se lhe dê, quaisquer que sejam as consequências de seu reconhecimento, continua a ser indefensável, do ponto de vista ético, pois se trata da consagração da traição que rotula, de forma definitiva, o papel do delator.[2]
Também refuta a colaboração premiada Juarez Cirino dos Santos[3], visto que, no seu ponto de vista, “o cancelamento utilitário do juízo de reprovação estimula o oportunismo egoísta do ser humano, amplia o espaço de provas duvidosas produzidas por ‘arrependidos’, que conservam o direito de mentir”.
Quanto às críticas à postura do Estado, é uma visão pertinente a se considerar. Contudo, no que diz respeito ao incentivo para um comportamento imoral, percebe-se, talvez, a ausência de uma análise crítica mais profunda.
Ora, há de se esperar, de alguma forma, postura digna e comportamento ético de quem integra uma organização criminosa? Veja-se que não se está falando de indivíduos que eventualmente cometeram crimes ou mesmo de criminosos habituais, e sim de indivíduos cuja proposta de vida é burlar as regras de convívio em sociedade, sem tomar conhecimento de conduta ética. Como se falar então em estímulo a uma característica já inerente ao estilo de vida que se adota?
Bem discorre, nesse sentido, Renato Brasileiro de Lima:
De mais a mais, falar-se em ética de criminosos é algo extremamente contraditório, sobretudo se considerarmos que tais grupos, à margem da sociedade, não só têm valores próprios, como também desenvolvem suas próprias leis. Como lembra Cassio Granzinoli, “não é incomum a chefes do tráfico de drogas, por exemplo, determinarem (por vezes e por telefone e de dentro dos próprios presídios onde cumprem penas) a execução de outros membros do grupo ou mesmo de pessoas de bem. Estarão eles, pois preocupados com a Ética, Moral, Religião e qualquer outra forma de controle social, diversa do Direito (uma vez que este prevê maior coerção para os atos que lhe são contrários)? Certamente não.[4]
Que não se chegue aos extremismos, a ponto de defender que “Nenhuma pessoa delatada é Jesus ou Tiradentes”, como indica Ana Luiza Ferro apud Carlos Fernando dos Santos[5], pois tal ponto de vista implica em uma presunção de culpabilidade, como critica Eugênio Pacelli de Oliveira[6] (muito embora o doutrinador arremate o pensamento corretamente, aduzindo-se que “Não há regra moral na omertà, não se pode admitir como obrigação ética o silêncio entre criminosos. Na verdade, a obrigação é com a sociedade”).
Não se quer, de forma alguma, pré-julgar os colaboradores ou seus pares por ele apontados, mesmo porque a consolidação da colaboração premiada ocorre com a comprovação das informações prestadas com outras provas. O que não se pode é querer obstar a utilização deste importante instituto em função de uma suposta regra de conduta moral do Poder Público em face daqueles que — acaso venha se comprovar o efetivo envolvimento em atividades ilícitas —não têm entre si, nem em relação ao meio social, conduta limpa e reta.
Melhor resolve a questão Hélio Schwartsman[7], em cujas poucas palavras se sintetiza e resolve-se a controvérsia: “Embora simples perspectiva de o poder público estimular a delação cause ojeriza, deve-se lembrar que nenhuma teoria geral do Estado reza que é dever das autoridades zelar pela observância da ética entre meliantes”.
Igualmente, nesse sentido, discorre Guilherme de Souza Nucci, ao contextualizar a moralidade da traição no seio das organizações criminosas:
No contexto das pessoas de bem, sem dúvida, a traição é desventurada, mas não se pode dizer o mesmo ao transferir a análise para o âmbito do crime, por si só, desregrado, avesso à ilegalidade, contrário ao monopólio estatal da resolução de conflitos, regido por leis esdrúxulas e extremamente severas, totalmente distantes dos valores regentes dos direitos humanos fundamentais.[8]
Endossa a defesa da colaboração premiada, de forma pragmática, Márcio Alberto Gomes Silva, ao justificar a técnica pelos fins obtidos, quais sejam, as benesses alcançadas pela sociedade com o desbaratamento das organizações criminosas.
A colaboração premiada (...) desperta discussão acerca do respeito a premissas éticas pelo Estado. Seria ético e moral estimular legalmente acordos que redundam em estímulo à traição (ainda que esta se manifeste no seio da organização criminosa)? Penso que não há o menor problema em ofertar benesses ao membro da agremiação criminosa que tenciona delatar seus comparsas e/ou desnudar as práticas delitógenas dos seus convivas. Cumpre lembrar que estamos tratando de indivíduos que diuturnamente se ocupam de atacar o Estado, de maneira sorrateira e por meio de práticas danosas ao tecido social. O desbaratamento de organizações criminosas e o bem que isso traz ao restante da população justifica (e muito) a utilização da técnica.[9]
O autor ainda destaca o posicionamento de Guilherme de Souza Nucci[10], para o qual a delação premiada constitui-se um “mal necessário”, uma vez que se trata de mecanismo que tutela o estado democrático de direito, ao passo que a criminalidade organizada tem o condão de desestabilizá-lo.
Some-se a isso o fato de que o espectro da colaboração premiada estabelecido pela Lei nº 12.850/13 é mais amplo que a simples delação de comparsas, como destacam Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, porquanto os benefícios possam ser obtidos sem enveredar o colaborador por esse caminho. É o caso, por exemplo, do inciso V do art. 4º, no qual basta o auxílio da localização de eventual vítima, com a sua integridade física preservada.
Por outro lado, critica-se ainda a desproporcionalidade que a concessão de benefícios ao colaborador poderá gerar na cominação das sanções, em relação a autores do mesmo fato criminoso. Neste ponto, assevera Luiz Rascovski que a colaboração premiada “viola o princípio da proporcionalidade, posto que enseja a aplicação de sanções diversas àqueles que perpetraram o mesmo crime”[11].
A bem da verdade, a crítica não tem fundamento, pois é mister constitucional que se proceda à individualização da pena, fato este que acarretará, independentemente de ter ocorrido a colaboração premiada, na consideração de condições subjetivas quando se realiza a dosimetria da pena, como bem visto nas norma acima indicadas.
Corrobora com essa visão a explicação de José Paulo Baltazar Júnior:
Em minha posição, a colaboração premiada é indispensável no âmbito da criminalidade organizada, e os ganhos que podem daí advir superam, largamente, os inconvenientes apontados pela doutrina. O instituto vem, na verdade, na mesma linha da confissão, do arrependimento eficaz e da reparação do dano, nada havendo aí de imoral (TRF2, HC 200302010155542, Maria Helena Cisne, 1ª T., 6.10.04), residindo a sua racionalidade no fato de que o agente deixa de combater crimes e passa a colaborar com o Estado para minorar seus efeitos, evitar sua perpetuação e facilitar a persecução. (grifos nossos)
E, a respeito da característica invasiva da colaboração premiada, nunca se pode perder de vista que o direito penal, em si, essencialmente irá adentrar na intimidade dos indivíduos, a fim de produzir provas e, posteriormente, caso ocorra uma condenação, privando-o de sua liberdade, ou restringindo direitos.
Nesse sentido, também já argumentou Guilherme de Souza Nucci[13], ao concluir que a colaboração premiada é instrumento útil, como tantos outros já utilizados legalmente pelo Estado, a exemplo da interceptação telefônica, que fere a intimidade com o intuito de combater a criminalidade.
No mais, ainda que não se conceba a adoção do perdão judicial a um autor de fato criminoso como uma solução satisfatória, ou mesmo uma pena inferior à que se considera proporcional à ofensa provocada, trata-se de um sacrifício em prol da efetividade do exercício do jus puniendi.
É saber, para alcançar resultados impensáveis com os métodos tradicionais de investigação, o Estado abre mão parcialmente de seu direito de punir, sob pena de não exercê-lo em sua integralidade, dando um passo que pode ser considerado satisfatório, ao alcançar até mesmo o desfazimento de organizações criminosas, cuja perpetração seria incomparavelmente mais gravosa que a renúncia parcial do jus puniendi.
3.3 A CONSOLIDAÇÃO DA JUSTIÇA NEGOCIADA NO BRASIL E A EFICÁCIA DA COLABORAÇÃO PREMIADA
A Lei das Organizações Criminosas estabelece, de forma definitiva no Brasil a chamada justiça negociada (plea bargaining, no direito americano). É Necessário ressaltar que não se trata de uma inovação em nosso ordenamento, já que previstas em leis anteriores, como a Lei dos Juizados Especiais (n° 9.099/95) e a Lei nº 8.137/90, que prevê o acordo de Leniência para crimes tributários.
Outrossim, ainda se demonstrou alhures que diversas outras a partir da Lei nº 8.072/90 previram institutos de direito penal ensejadores de perdão ou redução da pena. Contudo, o que diferencia a Lei nº 12.850/13 é a amplitude que a alcança o sistema negocial, antes restrito a determinados delitos específicos, ou de menor potencial ofensivo.
Nesse sentido, explica Eduardo Araújo da Silva, que a colaboração é um instituto “bem mais amplo que a delação premiada até então consagrada em várias leis brasileiras, a qual se restringe a um instituto de direito material, de iniciativa do juiz, com reflexos penais (diminuição da pena ou concessão de perdão judicial)”[1]. Aqui, importante ressaltar que o juiz não tem iniciativa, sendo esta do Ministério Público ou do delegado de polícia.
Ainda sobre a amplitude da que atingiu a negociação a partir da Lei das Organizações Criminosas, discorre Eugênio Pacelli de Oliveira:
Mas não se pode negar que a Lei nº 12.850/13 pretende instituir uma modalidade de negociação penal, com parcial flexibilização do princípio da obrigatoriedade da ação penal, com contornos mais complexos que aquele previsto na conhecida transação penal da Lei nº 9.099/95. Diferença perfeitamente explicável: esta última cuida de infrações penais de menor potencial ofensivo, enquanto a outra, a primeira, trata de organizações criminosas, associadas, em regra, a crimes de maior relevância jurídico-penal.[2]
Ora, a despeito de se ver todo tipo de crítica à colaboração premiada, mormente no que tange à moralidade de sua utilização pelo Estado, não se verifica muita resistência na doutrina ao alargamento da justiça negociada no Brasil. E nem deveria ser, afinal, a sua utilização, embora não esteja próximo do mundo ideal (com a garantia da impunidade a um membro de organização criminosa), é uma perda que se aceita para não se perder, completamente, a possibilidade de alcançar a justiça (mesmo que parcial).
E mais, sua origem muito remota, e em larga escala se lhe aplica, em outros países cujo direito inspiram e influenciam o direito pátrio, e cujos resultados de eficiência são norte para o nosso país. É o caso, por exemplo, da Itália, conforme narra Eduardo Araújo da Silva, que passou na década de 1980 por grande prestígio, ao se mostrar eficaz no combate à criminalidade mafiosa. Aduz o autor:
O denominado pentitismo do tipo mafioso permitiu às autoridades uma visão concreta sobre a capacidade operativa das Máfias, determinando a ampliação de sua previsão legislativa e a criação de uma estrutura administrativa para a sua gestão operativa e logística (Setor de Colaboradores da Justiça). O sucesso do instituto ensejou, inclusive, uma inflação de arrependidos buscando os benefícios legais, gerando o perigo de concessão dos benefícios a indivíduos que não gozavam do papel apregoado perante as organizações criminosas.[3]
Nessa esteira, o autor ainda menciona casos emblemáticos da jurisprudência inglesa, como o Caso Rudd (1775), em que o juiz concedeu a imunidade ao acusado, em troca de testemunho contra os demais acusados, e o Caso Smith (1982), em relação à criminalidade organizada.
O destaque, contudo, fica por conta dos Estados unidos, no qual se observa que os acordos celebrados entre acusação e defesa restam incorporados na cultura jurídica. Explica o expert que, embora de tradição calvinista, no qual se prezava pela confissão pública da culpa, uma atitude considerada cristã, atualmente o instituto não é mais utilizado com esse fim, e sim como estratégia de defesa para a condenação dos chefes do crime organizado[4].
Por fim, não há de se olvidar que o combate ao crime organizado, tema de que trata a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, da qual o Brasil é signatário, e cuja ratificação interna se deu pelo Decreto nº 5.015/04, indica os instrumentos a serem adotados, dentre os quais o de maior relevância é, justamente, a colaboração premiada.
Ora, a ratificação da Convenção pelo Brasil, assim como por diversos outros países demonstra a tendência mundial para o processo colaborativo, uma demanda global pelo combate ao crime organizado que, como visto, não tem restrição de fronteiras internacionais. Assim, mais que um simples problema interno, a adoção de medidas que visam coibir a ação das organizações criminosas é um compromisso internacional, motivo pelo qual a colaboração premiada, indicada como método fundamental nessa missão, é de ser bem recebida e aplicada em nosso país.
Evidentemente, não se ignora os diversos problemas que o seu uso pode criar. Em primeiro lugar, não é desprezível, infelizmente, a possibilidade de corrupção dos órgãos de persecução penal, a saber, o Ministério Público e as Polícias. A concessão de redução de pena e perdão judicial pode gerar todo tipo de relação promíscua entre esses e as organizações criminosas, com troca de favores, tráfico de influência e mesmo a corrupção monetária.
Porém, a Lei 12.850/13 dispõe de mecanismos que visem coibir esse tipo de prática. É o que se observa com a necessidade de homologação do acordo celebrado, pelo Poder Judiciário, e a manifestação final deste quanto à eficácia percebida ao final do processo, quando da prolação da sentença. Eficiência completa não há — é plausível a capacidade da organização criminosa corromper todas as esferas públicas atuantes no processo — mas isso não se resume à colaboração premiada, e sim alcança todo processo criminal.
Também não se descuida da possibilidade de utilização da colaboração premiada como estratégia da própria organização criminosa, não com o intuito de livrar alguns de seus membros da punição estatal, mas de permanecer ativa, desviando o foco de linhas investigativas levadas a efeito pela Polícia, invertendo a hierarquia por simulação, a fim de levar membros do baixo escalão à punição, ao passo que os chefes possam sair impunes, enfim, infinitos estratagemas que se multiplicarão com a criatividade das mentes criminosas.
É ainda exemplo, indicado por Eduardo Araújo da Silva[5] para a existência dos profissionisti del pentitismo, que seriam os colaboradores que “comercializam meias verdades, em trocas de vantagens individuais.
Tudo isso deve ser filtrado pela análise da eficácia das informações prestadas, pelo magistrado. De igual modo, aqui, não se diferencia as informações levadas ao conhecimento do juiz, seja por acordo de colaboração, seja por estratégia defensiva. Não há maiores dificuldades de se encontrar a veracidade dos fatos aqui, que em qualquer processo criminal (desconsiderando, é claro, o fato de se tratar de criminalidade organizada).
Outra preocupação a ser levado em conta é a dificuldade que se encontrará em proteger o colaborador e seus familiares. Nesse sentido indica Rômulo de Andrade Moreira ao aduzir que “o nosso Estado não tem condições de garantir a integridade física do delator criminis, nem a de sua família, o que serviria como elemento desencorajador para a delação”[6].
De mais a mais, defende-se, dentre os doutrinadores criminais brasileiros, a utilização da colaboração premiada. Nesse sentido se posiciona Renato Brasileiro de Lima mormente pela dificuldade de se obter outros meios de prova, em razão da “lei do silêncio” que vige no seio das organizações criminosas, e da “oportunidade de se romper o caráter coeso das organizações criminosas (quebra da affectio societatis), criando uma desagregação da solidariedade interna em face da possibilidade da colaboração premiada”[7].
Também se manifestam pela dificuldade em esclarecer os delitos cometidos no âmbito da criminalidade organizada Arthur Pinto de Lemos Júnior e Beatriz Lopes de Oliveira[8], já que os agentes criminosos, “dotados de poderio econômico e com a melhor tecnologia à sua disposição, planejam a ocultação da prova do crime”, contratando até mesmo auditorias para supervisionar eventuais rastros de ajustes ilícitos.
A propósito, os autores, partem em defesa da necessidade de eficiência na investigação criminal, a qual deve ser sopesada pelo respeito aos direitos e garantias fundamentais, a fim de se alcançar uma “concordância prática entre uma lógica de justiça e uma lógica de produtividade ou eficácia social”, no que destacam trecho do voto do Ministro Luiz Fux, na Ação Penal 470, em relação ao delito de formação de cartel (e bastante pertinente aos delitos praticados por organizações criminosas):
“É incomum que se assinem documentos que contenham os propósitos da associação, e nem sempre se logra filmar ou gravar os acusados no ato do cometimento do crime. Fato notório, e notoria non egent probatione, todo contexto de associação pressupõe ajustes e acordos que são realizados a portas fechadas. Neste sentido, por exemplo, a doutrina norte-americana estabeleceu a tese do ‘paralelismo consciente’ para a prática do cartel. Isso porque normalmente não se assina um ‘contrato de cartel’, basta que se provem circunstâncias indiciárias, como a presença simultânea dos acusados em um local e a subida simultânea de preços, v. g., para que se chega a conclusão de que a conduta era ilícita, até porque, num ambiente econômico hígido, a subida de preços, do ponto de vista de apenas um agente econômico, seria uma conduta irracional economicamente.”[9]
É oportuno transcrever as considerações de Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Júnior e Fábio M. de Almeida Delmanto:
(...) não se pode deixar de reconhecer que a delação premiada, ao lado da interceptação telefônica, tem se mostrado um instrumento poderoso de apuração de gravíssimos crimes, os quais, sem ela, permaneceriam impunes. Nesse contexto, e feita a ressalva, a Lei n. 12.850/2013 traz aspectos positivos ao garantir ao delatado maior possibilidade de questionar o depoimento do delator, ao buscar diminuir a possibilidade de erro judiciário vedando-se a condenação com fundamento exclusivo em delação, a procurar garantir a integridade física do colaborador e ao regulamentar o acordo de colaboração, o que antes inexistia.
De fato, o Brasil tem visto um exemplo prático do potencial que tem a colaboração premiada. A Operação Lava-Jato, que, segundo afirma o Ministério Público Federal, é “a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve”[10].
Os números apresentados pelo órgão, atualizados em 03/03/2015, impressionam. Foram instaurados 330 procedimentos, para investigação de 494 pessoas e empresas. Até essa data, haviam sido expedidos 201 mandados de busca e apreensão, 55 mandados de condução coercitiva, e 64 mandados de prisão haviam sido cumpridos. Até então, já foram formalizadas 19 acusações criminais contra 97 pessoas, pelos crimes de corrupção, crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, tráfico transnacional de drogas, formação de organização criminosa lavagem de ativos, dentre outros. Com pessoas físicas, foram celebrados 12 acordos de colaboração premiada[11].
O Procurador-Regional da República Vladimir Aras, que integra a força-tarefa da Operação Lava-Jato, explica a importância da colaboração premiada para o desenvolvimento das investigações:
Existe muita incompreensão sobre a verdadeira extensão dessa técnica. Não se trata de estímulo à "traição", como certos comentaristas acreditam, mas de ferramenta do direito premial, que encontra símile em outros institutos jurídicos. O uso da colaboração premiada é estimulado por organizações internacionais sérias e respeitadas, como a ONU, a União Europeia, o Conselho da Europa e por organismos como o GAFI [Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Terrorismo Internacional]. Aliás, é bom que se diga que o modelo brasileiro de colaboração premiada foi desenvolvido pelo próprio MPF, por ocasião do caso Banestado. A prática dos acordos escritos, clausulados, firmados após negociação entre o Ministério Público e a Defesa surgiu ali, em meados da década passada, a partir de modelo de minha autoria e do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima. Por coincidência, alguns dos protagonistas do caso "lava jato”, na acusação, na defesa e no Judiciário participaram da implantação desses primeiros acordos, que acabaram sendo tomados como paradigma para a Lei 12.850/2013. (...) Não é nem pretende ser a "salvação do mundo", mas é um importante instrumento para o rompimento da omertà, isto é, o silêncio mafioso, que mantém impunes esquemas criminosos de todos os tipos. Há um certo viés preconceituoso na doutrina brasileira contra esses meios especiais de obtenção de prova. Critica-se o uso de interceptações telefônicas; ataca-se a colaboração premiada. Recrimina-se o emprego de escutas ambientais. Busca e apreensão também não pode, porque é "invasão". As quebras de sigilo bancário são abusivas. O que sobra? A prova testemunhal?[12]
É importante destacar ainda que o proveito dos acordos celebrados não se restringem à elucidação dos delitos cometidos e ao esclarecimento acerca da colaboração premiada. Muito importante também é a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa. No infográfico do Ministério Público Federal[13] consta que, até 03/02/2015, já haviam sido recuperados R$ 500.000.000,00 (quinhentos milhões de reais) em bens bloqueados.
A 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, na qual tramita alguns dos autos da Operação, informa que, somente no que tange ao acordo de colaboração premiada celebrado com o senhor Pedro José Barusco Filho, ex-Gerente da Petrobrás, este se comprometeu a depositar em Juízo R$ 3.250.000,00 (três milhões e duzentos e cinquenta mil reais) a título de multa compensatória penal, e a devolver aos cofres públicos cerca de USD 67.500.000,00 (sessenta e sete milhões e quinhentos mil dólares), acrescidos dos interesses financeiros, que seriam produto de crimes de corrupção. Até a emissão da Nota de Informação, já haviam sido depositados na conta judicial vinculada ao processo R$ 139.666.471,17 (cento e trinta e nove milhões, seiscentos e sessenta e seis mil, quatrocentos e setenta e um reais e dezessete centavos)[14].
Diante de todos esses fatos, é importante considerar que as críticas de cunho teórico sempre devem ser sopesadas com a os problemas reais, observados no cotidiano dos órgãos de persecução penal. As vantagens observadas indicam que a colaboração premiada tem se consolidado no Brasil, e que, cercada das cautelas e seriedade que se exige para a relevante função estatal do exercício do jus puniendi, há de vencida a resistência que se criou acerca do instituto.