Direito ao esquecimento.

Resguardando a memória individual na era da informação

24/04/2016 às 08:56
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O direito ao esquecimento, mecanismo de proteção à memória individual, possibilita a proibição de veiculação, bem como a retirada de circulação de informações pretéritas, desprovidas de utilidade pública e atualização, causadoras de constrangimento e dor.

Sumário: Introdução. 1.Memória e esquecimento. 2.Direito ao esquecimento. 2.1.Critérios de ponderação. 2.2.Casos de direito ao esquecimento. Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

A ascensão da internet e dos meios de comunicação, ferramentas para veiculação de notícias e entretenimento impuseram na sociedade a necessidade de maior atenção aos direitos fundamentais do homem, mormente aos direitos da personalidade. É incontestável a grande capacidade de produção, circulação e consumo de informações, superiores a qualquer época precedente. Consequentemente, a facilidade de acesso a essas informações, possibilita violação às liberdades individuais, exigindo do Estado mecanismos que proporcionem uma ponderação eficaz na resolução de conflitos em que se colocam a liberdade de expressão e informação de um lado e do outro os direitos da personalidade.

“Às vezes, o direito a informação encontra limites em alguns direitos fundamentais, entre eles o direito à intimidade; outras vezes, isso não ocorre. Nos casos concretos, faz-se um confronto entre os interesses públicos e privados, a fim de determinar qual é o predominante.” (LIMBERGER,2007, P. 52)

Os direitos da personalidade não compõem um rol fixo, imutável. Eles sofrem alterações de acordo com as necessidades da sociedade. Fundamentado na dignidade da pessoa humana, o direito ao esquecimento é evocado como instituto que busca proteger à memória individual, imprescindível ao desenvolvimento do caráter do alguém .


Quando se fala no conflito entre os princípios da liberdade de expressão e informação versus dignidade da pessoa humana, não se pretende aqui tecer argumentos em prol de uma censura autoritária, nefasta à politização de uma sociedade. Muito menos proporcionar ao indivíduo a possibilidade de reescrever sua própria história. Busca-se, sim, rechaçar a produção e manutenção de notícias de forma inconsequente, motivadoras de dor e constrangimento para o ser humano.

Assim como a memória coletiva de uma sociedade necessita de proteção, a memória individual carece de ser tutelada. E da mesma forma que o historiador seleciona suas fontes durante a operação historiográfica, o ser humano seleciona os fatos, ainda que de forma inconsciente, para compor sua memória individual. Logo, o desenvolvimento do ser humano demanda esquecer e selecionar o passado para formação de sua personalidade.

“Pode-se verificar que o tema é extremamente complexo e denso, com aplicação prática e de repercussões drásticas na sociedade e em sua maneira de lidar com seu passado, seus dados históricos, seus costumes e a sua forma de construir o presente, buscando uma sociedade livre e plural, que detenha acesso à informação, mas não se transforme em mecanismo de opressão às individualidades, em especial à memória individual.” (MARTINEZ,2014, P. 8)

Amplamente abordado, pela doutrina e jurisprudência internacionais, mesmo antes do surgimento da internet, o direito ao esquecimento é um mecanismo utilizado para desindexação de informações pessoais pretéritas causadoras de constrangimento e dor. Evidentemente nem toda informação estará passível de ser desindexada e esquecida. Há toda uma ponderação ao considerar para qual lado a balança dos direitos conflitantes deverá pesar mais. Um dos casos mais conhecidos de aplicação do direito ao esquecimento pelo mundo é o “Caso Lebach”, envolvendo um ex-condenado por participar de uma ação criminosa e a ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen) – Segundo Canal Alemão.

O Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil, realizada nos dias 11 e 12 de março do ano de 2013, ressaltou a relevância do direito ao esquecimento, com origens históricas no campo criminal e consequências atinentes à ressocialização do ex-detento. Buscava-se assegurar a possibilidade de reflexão quanto à finalidade e utilidade de rememoração fatos pretéritos.

No mesmo ano, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça aplicou a tese do direito ao esquecimento, pela primeira vez, no Brasil, aos Recursos Especiais nº 1.334.097/RJ e 1.335.142/RJ. O primeiro recurso tratava do “Caso da Chacina da Candelária”, em que figuravam como partes nos autos um dos acusados de participação no crime e a Globo Comunicações e Participações S/A. O segundo recurso relacionava-se ao caso “Aída Curi”, que tinha com partes os irmãos de Aída Curi, vítima de homicídio no ano de 1958 e também a Globo Comunicações e Participações S/A.

A análise teleológica do direito ao esquecimento, como instituto autônomo integrante dos direitos da personalidade, corrente a que se filia este trabalho, contextualiza-se nos direitos à integridade moral, previstos nos artigos 16 até 20 do Código Civil de 2002, tutelando o nome, a honra, e a imagem, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. A metodologia empregada na pesquisa fez uso da doutrina, por intermédio de livros, artigos, da legislação constitucional e infraconstitucional, bem como da jurisprudência brasileira.

1. MEMÓRIA E ESQUECIMENTO

Complexa e interdisciplinar, abordada por vários campos do conhecimento, como o direito, a filosofia, a história, a psicologia, entres outros, a temática da memória revela a importância para o ser humano de preservação das informações registradas para utilização posterior, através de um lembrar-se. Seja na escrita da história de uma sociedade ou mesmo de uma pessoa, a memória ocupa lugar de destaque na construção da identidade, das características de um povo, sobretudo da personalidade de alguém.

Tanto na formação da memória individual, “aspecto privado”, como na formação da memória coletiva, “aspecto público”, ocorre um processo de seleção de dados consciente ou inconscientemente, que revela a importância do esquecimento como etapa fundamental para o desenvolvimento do conhecimento.

Esquecer implica adentrar nas dimensões do tempo e do espaço, buscando-se analisar, apagar determinadas informações que por algum motivo passaram a compor a memória de um indivíduo. A seleção das informações passadas, durante a formação das lembranças, possibilita a construção de representações, levando o indivíduo a revivê-las, relembrá-las, ainda que nem sempre correspondam necessariamente àsexperiências que foram vivenciadas. O ser humano consciente ou inconscientemente escolhe os dados mnemônicos que deseja apagar e inserir no processo de construção de sua memória, assim como um historiador, que mesmo de forma inconsciente, motivado pelo lugar social, escolhe as informações que farão parte da operação historiográfica. Percebe-se assim, que não se pode olvidar o esquecimento, o ocultamento de dados na formação do conhecimento.

Em grande parte da história da humanidade, houve certa resistência ao esquecimento. O ser humano buscou registrar os eventos desde a época pré-histórica até os dias atuais: as pinturas rupestres, a escrita hieroglífica, os pergaminhos, a imprensa, a internet. A lembrança foi colocada como desafio, uma busca pela perpetuação, perante a ação do tempo. A lembrança passou a ser o estado-padrão cognitivo, insto é, a regra geral, e o esquecimento a exceção. Quando isso ocorre, surge a necessidade de restabelecimento da capacidade humana de esquecer. É imprescindível certo grau de esquecimento para uma vida útil e saudável, na verdade o esquecimento é uma etapa relevante na formação da recordação, da lembrança e do próprio conhecimento. É necessário o padecimento, a superação do passado para o bom desenvolvimento individual e social. Não se trata de esquecimento de modo excessiva, amnésica, forma patológica, senão a considerada normal, em grau comum ao ser humano, relevante para o desenvolvimento cognitivo.

“Esquecer é tão importante quanto lembrar, pois possibilita que o ser humano selecione as informações ininterruptamente recebidas pelo cérebro, preservando somente aquelas memórias que o indivíduo considerar como úteis, necessárias ou significativas.” (MARTINEZ,2014, P. 62)

2. DIREITO AO ESQUECIMENTO

A busca da proteção dos direitos da personalidade é preocupação do legislador constituinte, que reconhece a relevância do princípio da dignidade da pessoa humana. Ninguém está obrigado a conviver com resquícios passados, sem qualquer relevância para os dias atuais, e causadores de sofrimentos. O ser humano tem a característica de mudar o comportamento com o passar do tempo. As experiências, juntamente com o contexto social atribui ao indivíduo a possibilidade de mudar voluntariamente sua história, possibilitando-se uma vida de opções, de livre escolha.

O direito ao esquecimento consiste na possibilidade de uma pessoa não permitir que um fato pretérito, exposto ao público em geral, seja-lhe causador de sofrimento e transtorno. O indivíduo se resguarda de conviver com informações resgatadas de forma imprudente, inconsequente.

“[...] é a possibilidade de defesa que, como uma redoma, permite a um particular que não autorize a veiculação ou retire desta um fato pretérito que o expõe ao público em geral, causando-lhe sofrimento e transtornos. Pode-se dizer que esta esfera de proteção funciona como um mecanismo de isolamento direcionado à informação intertemporal.” (MARTINEZ,2014, P. 81)

Não se trata de mudar a história, no sentido macro, os fatos históricos. O direito ao esquecimento não é mecanismo para proteção da memória coletiva, “aspecto público”, assim como não é o caso de se fazer perder a história individual, “aspecto privado”. A finalidade do direito ao esquecimento é a garantia da dignidade da pessoa humana, que encontra sérias dificuldades quando o indivíduo convive com a dor e o constrangimento causados pelo passado.

O direito ao esquecimento é um direito essencial que possibilita a proteção da memória individual, evitando-se ter o passado revirado a qualquer instante por qualquer indivíduo. Seus elementos caracterizadores mais marcantes, fundamentais para a ponderação de sua aplicação como mecanismo de proteção da memória individual são a “efetiva utilidade da informação” e sua “atualidade”.

Não há que se confundir com o direito à privacidade. Ocorre que direito ao esquecimento e direito à privacidade possuem objetos jurídicos diversos. O direito ao esquecimento vislumbra proteger a memória individual, de informações passadas, que não apresentem utilidade, isto é, que não haja um interesse público na informação, bem como atualidade. Enquanto o direito à privacidade protege as informações pessoais e recentes. Havendo os caracterizadores do direito ao esquecimento, falta de atualidade e interesse público na informação, surge para o indivíduo a possibilidade de resguardar seu passado, sua memória individual, decidindo até que ponto suas informações pessoais devem ser de conhecimento público. As informações pessoais contemporâneas serão protegidas pelo direito à privacidade, mas futuramente, essas mesmas informações poderão vir a ser objeto de proteção do direito ao esquecimento.

2.1. CRITÉRIOS DE PONDERAÇÃO

É complexa a resolução do conflito entre liberdade de expressão e informação e a proteção individual. Por intermédio do caso em concreto, deverá ser verificada a prevalência entre elas. A aplicação do direito ao esquecimento requer uma apreciação de critérios de ponderação como: se a pessoa envolvida é pública, se o local do fato é público e de domínio público, a ocorrência de crime, o evento histórico, manutenção do contexto original e dos direitos da personalidade, se há utilidade e atualidade na informação pretérita para a sociedade.

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A pessoa pública - um suposto interesse público não pode reduzir a proteção aos direitos da personalidade dos artistas e agentes públicos, das pessoas públicas. Embora ela sofra certas limitações, não significa que estejam suprimidas suas intimidades.

O local público - não obstante a jurisprudência brasileira entenda que acontecimentos, obtenção de informações, em locais públicos apresentem interesse público, permitindo a veiculação da notícia em detrimento dos direitos da personalidade, isso não há que ser generalizado. Apenas por ter sido obtida, uma fotografia, por exemplo, em um local público não significa que possa ser divulgada sem qualquer restrição. “Ninguém está autorizado a captar com tecnologias de ponta o que uma pessoa cochicha a outra em praça pública e divulgar o diálogo nas redes de televisão.” (SCHREIBER, 2011, p. 139).

A ocorrência de crime - apesar de não se poder negar que a ocorrência de certos crimes, pela violação da ordem pública e sua gravidade sejam de interesse público e mereçam ser de conhecimento amplo, não significa que a existência de crime de per si seja suficiente para autorização de sua veiculação. Não há que se falar em divulgação de crime que não acarrete à sociedade qualquer utilidade pública, em face de ação do tempo. A ocorrência de evento criminoso de menor potencial ofensivo, por exemplo, não é critério para ponderação, quando utilizado isoladamente. Não há utilidade prática na rememoração de uma notícia que se enfraqueceu, devido à atuação do tempo, muito menos na recordação de um crime em que a sociedade, na época de sua veiculação primária, não dera relevância.

O evento histórico - evento de grande repercussão nacional, como um evento histórico, correlacionado à ocorrência de um crime, apresenta-se controvertido. Aquele que cumpriu sua pena vislumbra ser preservada sua privacidade, honra e imagem, possibilitando sua ressocialização, não podendo o evento passado mitigar seus direitos da personalidade. Ressalte-se que não
se trata dos crimes históricos, como os grandes genocídios, que não deverão ser esquecidos, senão lembrados no intuito de que não se repitam, senão dos crimes que se destacaram, mas sem utilidade para a sociedade contemporânea.

O domínio público - para que uma informação seja divulgada, ela necessita ser de domínio público. Não há justificativa na divulgação de dados passados que não atingiram previamente o conhecimento público, qualquer revelação nova estaria sob a tutela do direito ao esquecimento. “Em realidade, evidencia-se verdadeiro abuso no direito de informar caso a informação pretérita que se pretende rememorar nunca tenha atingido o conhecimento público.” (MARTINEZ, 2014, p. 174).

A manutenção do contexto original da informação - é imprescindível que na rememoração de uma informação pretérita, seja preservada a sua contextualização original. Logo, o local, a data e as condições da informação primária devem ser fielmente mantidas na rememoração, sob pena de aplicação do direito ao esquecimento.

“Observa-se que a manutenção do contexto inicial ocorrerá se a redivulgação tratar do fato pretérito em sua plenitude, ou seja, preservando a situação passada, indicando minimamente o local, data e as condições em que o dado foi obtido, para que se possa analisar concretamente se a sua redifusão atende à veracidade e mantém todo o conjunto de fatores existentes no momento da formação do que se pretende rememorar.” (ALMEIDA JÚNIOR, 2013, P. 166)

O contexto da informação passada deve ser o mesmo, intocável. Não se pode divulgar notícia em conexão contextual a qualquer outra, qualquer utilização da informação fora do contexto original se traduz em falsidade intelectual.

A manutenção dos direitos da personalidade – a ponderação deve levar em consideração a exposição dos direitos da personalidade quando houver a divulgação da notícia. No conflito de direitos: liberdade de informação versus direitos da personalidade, até que ponto se justificaria o sacrifício de um em benefício do outro?

A utilidade das informações – a análise da utilidade da informação para a sociedade. Vislumbra existência de um efetivo interesse público na informação que a torne útil para a coletividade não deve ser confundida com a curiosidade pública. Na definição do efetivo interesse público, há que se estabelecerem dois aspectos do ser humano: o externo e o interno. O aspecto externo compreende as relações do indivíduo com a sociedade; o aspecto interno a sua personalidade, sua individualidade. A análise do efetivo interesse público na informação útil que se pretende resgatar deve ocorrer apenas em relação à coletividade, ao seu aspecto externo. Ressalte-se que é imprescindível a real utilidade na divulgação do dado para a sociedade, preterindo, assim, abusos e ilegalidades. “O STJ condiciona o efetivo interesse público de informações à sua relevância e utilidade prática, que deve ser traduzida em benefício para a sociedade...” (MARTINEZ, 2014, p. 183). A notícia deve conter material educativo ou informativo, mas nunca mera especulação, informações inverídicas, simples boatos.

A atualidade das informações - as informações atuais, com o passar do tempo, serão pretéritas e consequentemente a sua importância diminui, em relação à força que apresentava, quando divulgada. Algumas perderão o interesse público, e sem efetivo interesse público o direito de estar só pode ser aplicado, garantindo a proteção da memória individual.

Na ponderação do elemento atualidade da informação, segundo Martinez (2014, p.191) “... é preciso fixar uma premissa: toda e qualquer informação, pelo menos a priori, tem prazo de validade”. A notícia que um dia foi de utilidade pública, de efetivo interesse público, com o passar do tempo, sofre desgaste e tem seu fascínio mitigado. Dessa forma, a informação outrora útil, de interesse social, converte-se em arcaica, passada, atribuindo-se mais relevância à preservação da memória individual.


2.2. CASOS DE DIREITO AO ESQUECIMENTO

O surgimento e a consolidação da internet foram decisivos para o que se evidenciasse a necessidade da tutela do direito ao esquecimento, não obstante o tema já fora utilizado em épocas passadas. Sua intrínseca ligação com a era informatizada foi objeto do enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil, em março do ano de 2013, que incluiu o direito ao esquecimento na tutela da dignidade da pessoa humana, na sociedade da informação. Restou ressaltado a importância da aplicação do direito ao esquecimento como mecanismo de proteção da memória individual.

Quando se fala em direito ao esquecimento, um caso que não se pode deixar de lado é o “Caso Lebach”, um dos mais conhecidos pelo mundo. Trata-se de uma Reclamação Constitucional julgada pelo Tribunal Constitucional Alemão, em 5 de junho de 1973. A lide tratava de um conflito entre direito da liberdade de imprensa, liberdade de expressão e os direitos da personalidade.

No ano de 1969, em Lebach, um lugarejo situado na República Federal da Alemanha, quatro soldados que faziam a guarda de um depósito de munições foram assassinados, durante à noite, deixando um quinto soldado gravemente ferido. Armas e munições foram roubadas. Os dois principais acusados foram condenados à prisão perpétua, em agosto de 1970, e um terceiro a seis anos de prisão, por ter auxiliado nos preparativos da ação criminosa, cumprindo integralmente a pena aplicada.

Quatro anos depois, a ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen – Segundo Canal Alemão) produziu um documentário sobre o ocorrido. No documentário, haveria uma representação do crime, encenada por atores, com detalhes do relacionamento entre os condenados, inclusive de tendências homossexuais, além dos nomes e fotos dos criminosos envolvidos.

Por intermédio de medida liminar e com base nos direitos da personalidade, o terceiro acusado, que já havia cumprido boa parte de sua pena, buscou evitar a veiculação do documentário, visto que como seria citado nominalmente e sua foto exibida, o processo de sua ressocialização restaria prejudicado. Nas instâncias ordinárias, a liminar não foi deferida, vislumbrando interesse público na transmissão, o entendimento foi de que o envolvido no crime fazia parte da história recente. Isso o levou a apresentar reclamação perante o Tribunal Constitucional Alemão, evocando o direito de desenvolvimento da personalidade, previsto na Constituição alemã. O Tribunal Constitucional Alemão entendeu que na ponderação do decurso do tempo, desde o acontecido, deveria haver consideração do interesse público, que não seria mais atual, cedendo lugar ao direito da ressocialização. Por violar o direito de desenvolvimento da personalidade, julgou procedente a reclamação. A emissora foi proibida de exibir o documentário.

A jurisprudência brasileira reconheceu a existência do direito ao esquecimento, por intermédio de dois julgamentos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça, em 28 de maio de 2013. Ambos os julgados tiveram como relator o Ministro Luís Felipe Salomão.

Conhecido como caso “Chacina da Candelária”, a lide foi ajuizada com o fim de condenação a pagamento de indenização, por violação a direito da personalidade. O autor da ação foi um dos condenados por participar da chacina da candelária, homicídios em série que ocorreram na noite de 23 de julho 1993, em frente à Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro. Finalizado o processo criminal o demandante foi absolvido. Após alguns anos, a rede Globo de televisão, através de seu programa denominado “Linha Direta”, realizou uma retrospectiva do ocorrido, no massacre, destacando ao final a identificação individualizada dos envolvidos e o desfecho do julgamento.

O demandante acionou a justiça pretendendo a reparação de danos morais, pela transmissão de sua imagem. Informou, ainda, que antes da disponibilização da matéria, fora procurado pela produção do programa e que havia sido informado que o programa iria identificá-lo como absolvido. Ainda assim o demandante não havia autorizado a entrevista, visto que não tinha interesse em reacender aquele passado. Para ele, a exibição do documentário iria fazer renascer a figura do criminoso cruel e covarde perante a sociedade, tirava-lhe a paz e o anonimato, dificultando-lhe a vida em comunidade, inclusive para seus familiares. Não queria reviver os momentos difíceis em que restaram prejudicadas sua vida profissional, social, o convívio familiar.

Na 1ª instância, o pedido foi julgado improcedente, sendo reformado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que estipulou indenização por danos morais, no valor de R$50.000,00 (cinquenta mil reais). Após o oferecimento de embargos infringentes, haja vista a ausência de unanimidade no acórdão, que mantivera a decisão, a questão chegou ao Superior Tribunal de Justiça, por meio de Recurso Especial.

A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, após a ponderação, foi favorável à aplicação à proteção aos direitos da personalidade, por intermédio do direito ao esquecimento. Tendo em vista a ação do tempo, Independentemente da história ser baseada em fatos reais, a imagem e o nome do demandante deveriam ter sido preservados.

Outro caso foi o “Aída Curi”. Aída Jacob Curi foi morta, aos 18 anos de idade, em Copacabana, Rio de Janeiro, no ano de 1958, após uma tentativa de estupro. Na tentativa de encobrir a ação criminosa, os agressores atiraram a jovem do terraço do décimo segundo andar de um edifício, na praia de Copacabana, simulando suicídio.

O caso foi tema do programa “Linha Direta – Justiça” também da TV Globo, quase 50 anos após o crime. A família de Aída Curi afirmava que o tempo havia se encarregado de tirar o tema da imprensa, entretanto o documentário, que explorara o nome e a imagem da vítima, além de alguns de seus familiares, sem autorização, trouxe a tona o passado doloroso.

Os irmãos de Aída Curi ajuizaram ação de reparação de danos morais, alegando que os fatos estavam esquecidos e que a TV Globo havia reaberto as feridas, além de danos matérias, visto a exibição do caso com fins comerciais e econômicos sem autorização.

Após ter sido julgado improcedente, pela 47ª Vara Cível do rio de Janeiro e pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a questão chegou à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por intermédio de Recurso Especial. Considerando que deveria haver prevalência do direito de imprensa, igualmente, a matéria tratava de fatos reais e com repercussão nacional, por maioria de votos, foi negado provimento ao recurso. O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal, através do Recurso Extraordinário com Agravo nº 833248, cujo relator é o Ministro Dias Toffoli. Para quem as questões propostas repercutirão em toda a sociedade, revelando sua inegável relevância.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os avanços tecnológicos proporcionaram a formação de uma sociedade globalizada, em que o compartilhamento das informações ocorre no tempo e no espaço sem precedentes. Por intermédio de um computador ou smartphone uma pessoa pode acessar dados que trafegam por todo o planeta sem qualquer dificuldade. Os meios de comunicação de massa foram potencializados e romperam fronteiras conferindo a internacionalização da informação, que busca satisfazer interesses metaindividuais ligados à telemática e ao próprio conhecimento.

A facilidade de acesso a dados está intrinsecamente vinculada a princípios orientadores da coletividade, como a liberdade de expressão e de informação. Ocorre que fazer uso de tais princípios não significa disponibilizar ao público toda e qualquer notícia de forma inconsequente e sem parâmetros norteadores de veiculação. Ressalte-se que não se trata de qualquer tipo de fomento à censura dos meios de comunicação. A aplicação do direito ao esquecimento está condicionada à tutela da memória individual, aspecto privado do ser humano, imprescindível ao desenvolvimento da sua personalidade.

Não há que se confundir com a possibilidade de incursão na seara da memória coletiva, nas representações historiográficas, sentido macro. Da mesma forma não se trata de apagar ou mesmo mudar a história individual de alguém.

Por meio das observações dos fatos e experiências passados, é construída, teleologicamente, a memória coletiva de cada sociedade. De igual modo, o indivíduo tem sua personalidade formada a partir de dados cognitivos pretéritos, que são selecionados para compor sua memória individual. Logo, como visto, é necessário esquecer para se desenvolver. A memória individual reclama o mesmo zelo que é atribuído à imagem, à honra e à identidade. Analisado como instituto autônomo, haja vista apresentar caracterizadores específicos para a ponderação, mormente a “utilidade da informação” e sua “atualidade”, o direito ao esquecimento busca tutelar a memória individual como novel direito da personalidade, fundamentado na dignidade da pessoa humana. O mecanismo possibilita ao particular a retirada ou a não autorização da veiculação de dados pretéritos que lhe causem constrangimento, dor e sofrimento.

No século da informação, vislumbra-se um conflito de interesses entre a liberdade de expressão e de informação e os direitos da personalidade, que deverá ser solucionado por intermédio de exame do caso concreto. Analisando os critérios de ponderação.

Sua relevância é corroborada pela aplicação do direito ao esquecimento pelo mundo, tornando o tema substancial à sociedade contemporânea, igualmente, pelo reconhecimento e inserção, ano de 2013, no rol de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Vale ressaltar que o caso “Aída Curi”, analisado neste trabalho, impeliu o direito ao esquecimento ao Supremo Tribunal Federal, e por intermédio do Recurso Extraordinário com Agravo nº 833248, restou reconhecida a existência de repercussão geral da questão constitucional. Para o relator, Ministro Dias Toffoli, as matérias abordadas apresentam densidade constitucional e extrapolam os interesses subjetivos das partes, versando sobre princípios com status constitucional: de um lado liberdade de expressão e o direito à informação e de outro a dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

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MORAES, Maria Celina Bodin de. Honra, Liberdade de expressão e ponderação. Disponível em: <http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Bodin-de-Moraes-civilistica.com-a.2.n.2.2013.pdf >. Acesso em 18 ago. 2015.

NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: Doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

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SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2011.

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Sobre o autor
Giancarlos Coutinho do Rego

Pós-graduando em direito Público, pela Escola Judicial de Pernambuco; Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas de Pernambuco; Licenciado em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco; Servidor do TJPE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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