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"Bela, recatada e do lar":

O estereótipo da Amélia a violência velada contra as mulheres

29/04/2016 às 12:38
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Características estereotipadas do comportamento feminino, divulgadas sobre como ser uma mulher exemplar, traduzem-se numa manutenção da cultura secularmente machista de ditar como elas devem se portar.

Parece-nos que circulou recentemente, e assustadoramente, em pleno ano de 2016, uma revista oriunda dos ideológicos editoriais da década de 50 do século passado. Para entender melhor o pensamento daquelas edições, em brilhante artigo sobre o tema, Carla Bassanezi lembra que as revistas dessa época “classificavam as jovens em moças de família e moças levianas. Às primeiras, a moral dominante garantia o respeito social, a possibilidade de um casamento-modelo e de uma vida de rainha do lar – tudo o que seria negado às levianas” (1997, p. 610).

Pensamento similar foi esboçado pela revista Veja na matéria “Bela, recatada e do lar”, onde se prestigiou o comportamento prendado da consorte do Vice-Presidente Michel Temer pelas virtudes colocadas como título da reportagem, alçando a figura foco da matéria como uma mulher de perfil idealizado.

Não há nada de ruim em perceber que a dama em questão tem os traços apontados na matéria. O cerne do problema mesmo está em conceber que ainda se imagine a mulher como necessariamente detentora dessas características.

Sabemos que, por longo tempo de existência da civilização, a mulher se viu afastada do domínio público de atividades, preterida em favor do homem, estigmatizada como elemento obstrutor do desenvolvimento social, quando, na verdade, era a própria sociedade quem lhe impunha obstáculos à realização plena (SAFFIOTI, 2013).

Em terras brasileiras, nada se fez diferente em comparação ao resto do mundo. O Brasil absorveu a concepção de mulher como dona de casa por excelência, prisioneira do lar e submetida aos caprichos ora de seu pai, ora de seu marido.

Repetia-se como algo ideal, nos tempos coloniais, que havia apenas três ocasiões em que a mulher poderia sair do lar durante toda sua vida: para se batizar, para se casar e para ser enterrada. (...) um viajante, Froger, de passagem por Salvador em 1696, achava que ali as mulheres “são de dar pena, pois jamais veem ninguém e saem apenas aos domingos, no raiar do dia, para ir à igreja”. (...) o arcebispo daquela cidade queixava-se de que os pais proibiam as moças até de assistir às devotas lições no Colégio das Mercês, das ursulinas (...). (ARAÚJO, 1997, p. 49).

Durante a construção de sua sociedade, o Brasil guardou uma férrea doutrinação ao comportamento feminino, ditando-lhe regras de postura, de moral e até impondo-lhes o que deveria desejar. Por exemplo, se aos homens era facultado trabalhar à noite, pelas mesmas leis trabalhistas a mulher somente laboraria à noite se provasse ter bons antecedentes (DELGADO, 2013). Por tudo isso, exemplo de mulher de qualidade em nosso país, lamentavelmente, impõe-se à mulher que encarne a “Amélia” da composição de Mário Lago:

Nunca vi fazer tanta exigência/ Nem fazer o que você me faz/ Você não sabe o que é consciência / Nem vê que eu sou um pobre rapaz/ Você só pensa em luxo e riqueza/ Tudo o que você vê, você quer/ Ai, meu Deus, que saudade da Amélia/ Aquilo sim é que era mulher/ Às vezes passava fome ao meu lado/ E achava bonito não ter o que comer/ E quando me via contrariado/ Dizia: Meu filho, que se há de fazer/ Amélia não tinha a menor vaidade/ Amélia é que era mulher de verdade[1]

A concepção de que tais requisitos comportamentais femininos sejam essenciais à postura de uma mulher restringe a independência e a liberdade de escolha das mulheres sobre os rumos de sua própria vida e personalidade, condicionando-a a limites frutos de velhos estereótipos e constantemente instigada, de tempos em tempos, por veículos de comunicação, com o sub-reptício propósito de perpetuar a cultura de subordinação feminina e perpetuação de uma sociedade patriarcal.

O que seria uma mulher recatada? Seria uma mulher que nega sua autonomia intelectual e profissional em favor da manutenção de um casamento como sinônimo da felicidade? Sim, segundo a revista Jornal das Moças, em 29 de outubro de 1959, ao noticiar que “se as mulheres de inteligência e cultura superior considerarem o casamento como sua vocação primordial, não perderão a sua batalha na conquista do amor e da felicidade” (BASSANEZI, 1997, p. 626).

O requisito de ser “do lar” é ainda mais contraditório diante de todo o histórico social vivido pelo sexo feminino, onde o lar sempre teve mais contornos de uma prisão do que de local de realização pessoal. Foi a sociabilidade do contato com as ruas realizado pelas mulheres de baixa renda que rendeu progressos de liberdade às mulheres.

Enquanto era imperioso que a mulher, para ser honesta e conforme as regras da moral social vigente, devesse se guardar aos aposentos do lar e evitar sair de casa, as mulheres negras, alforriadas ou escravas, e às de condição menos abastada, a rua (metáfora aqui do espaço público) era o lugar onde a sociedade aceitava que estivessem (RAGO, 1997).

E se a rua simbolizava o espaço do desvio e tentações, de nada adiantava exigir do grupo feminino de classes pobres que se recolhessem às suas casas, sendo tal dever impossível de cumprimento “pelas mulheres pobres que precisavam trabalhar e que para isso deviam sair às ruas à procura de possibilidades de sobrevivência” (SOIHET, 1997, p. 365).

Foram elas, as mulheres pobres, negras, prostitutas, as ocupantes de cargos cujas funções eram consideradas menos importantes nos campos produtivos que lhe eram abertos, as atiradas às ruas pelo desprestígio público que as considerava imerecidas de constituírem famílias, enfim, todas essas relegadas à vala do desprezo da moral familiar, as verdadeiras libertadoras das amarras do cárcere que foi construído em torno da suposta devoção do lar tão propagada pela sociedade e recriada e alimentada pela mídia. Nenhuma vitória em prol da independência social, profissional e econômica da mulher adveio da manutenção desta ao lar. A submissão aos desmandos do patriarca da família sempre foi a infeliz recompensa às esposas prendadas domésticas.

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Daí que, numa deplorável matéria, uma revista contemporânea repete a louvação da mulher contida e devotada à sua família como monumento espelhável às demais, em notório contraste ao passado que ainda bate às portas de muitas mulheres no país, apontando as mazelas decorrentes da discriminação feminina nas oportunidades de emprego (http://classificados.folha.uol.com.br/empregos/2016/01/1719987-alem-da-discriminacao-mulher-enfrenta-barreiras-pessoais-para-crescer-na-carreira.shtml), educação e outros setores, tudo somado às consequências acentuadas por essa permanência impositiva da mulher no seio doméstico, sem contar o circo dos horrores que há nos lares brasileiros a despeito dos dez anos da Lei Maria da Penha (http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/06/02/mulheres-sofrem-mais-violencia-de-pessoas-conhecidas-das-vitimas-diz-ibge.htm).

Seguir a cartilha pregada pela revista que tentou imitar sem criatividade matéria da década de 50 consiste, certamente, num retrocesso social às conquistas femininas. É algo para se esquecer, assim como diversas outras publicações sobre o assunto lançadas em nosso país - fato que não só representa a degradação odiosa da opinião da mídia, mas o deszelo com a história das mulheres.

E para arrematar, constitui a apoteose do entristecimento que a matéria tenha sido escrita por uma mulher. Num país de raízes misóginas que lhe renderam uma condenação internacional pelo desprestígio que oferece às suas cidadãs, é sempre atual a advertência de Simone de Beauvoir, de que “o Opressor não seria tão forte se não tivesse ‘cúmplices’ entre os próprios Oprimidos”.


REFERÊNCIAS

ARAÚJO, E. A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. In: História das Mulheres no Brasil. PRIORE, Mary Del (org). São Paulo: Editora Contexto, 1997.

BASSANEZI, C. Mulheres dos anos dourados. In: História das Mulheres no Brasil. PRIORE, Mary Del (org). São Paulo: Editora Contexto, 1997.

DELGADO, M. G. Curso de Direito do Trabalho. 11. Ed. São Paulo: Editora LTR, 2012. 

LAGO, Mário; ALVES, Ataulfo. Ai, que saudades de Amélia. Ano 1941. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/ataulfo-alves/ai-que-saudades-da-amelia.html. Acesso em 26 jan. 2014.

RAGO, M. Trabalho feminino e sexualidade. In: História das Mulheres no Brasil. PRIORE, Mary Del (org). São Paulo: Editora Contexto, 1997.

ROSALDO, M; Z.  LAMPHERE,  L. (org) A Mulher, a Cultura e a Sociedade. Trad. de: Cila Ankier e Rachel Gorenstein. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

SAFFIOTI, H. A mulher na sociedade de classes: Mito e realidade. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2013.

SOIHET, R. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: História das Mulheres no Brasil. PRIORE, Mary Del (org). São Paulo: Editora Contexto, 1997.


Nota

[1] LAGO, Mário; ALVES, Ataulfo. Ai, que saudades de Amélia. Ano 1941. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/ataulfo-alves/ai-que-saudades-da-amelia.html. Acesso em 26 jan. 2014.

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Sobre o autor
Lucas Correia de Lima

Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2015). Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio (2017). Mestre pelo Instituto de humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, da Universidade Federal da Bahia (2019). Doutorando em Direito pela UFBA. Foi advogado do Município de Ipirá no ano de 2015, aprovado em primeiro lugar na seleção, saindo das atividades para exercer a função de Conciliador do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (2015-2016), também aprovado em primeiro lugar. Articulista com obras publicadas em variados boletins informativos e revistas jurídicas, em meio físico e eletrônico. Membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro da Associação Brasileira de Direito Educacional (ABRADE). Membro colaborador do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (IBRAJUS). Professor da Uninassau, na disciplina de Direito das Obrigações e Tópicos Integradores II. Integra atualmente o Tribunal de Justiça de Justiça. Conferencista, pesquisador e palestrante. Tem experiência na área de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: sociedade, universidade, políticas afirmativas, negro, mulher, educação, crime, lei e violência.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Lucas Correia. "Bela, recatada e do lar":: O estereótipo da Amélia a violência velada contra as mulheres. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4685, 29 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48582. Acesso em: 24 abr. 2024.

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