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O tombamento de Brasília e o estudo da constitucionalidade da Lei Distrital nº 1713/97 em face da Constituição Federal de 1988

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A Câmara Legislativa do Distrito Federal, após rejeitar o veto total oposto pelo Excelentíssimo Senhor Governador do Distrito Federal, promulgou e fez publicar, no Diário Oficial do Distrito Federal de 22 de outubro de 1997, a Lei nº . 1.713, de 03 de setembro de 1997, que " faculta a administração das quadras residenciais do Plano Piloto por prefeituras comunitárias ou associações de moradores e dá outras providências ".

Eis o texto integral da lei:

" Art. 1o. As quadras residenciais do Plano Piloto da Asa Norte e da Asa Sul de Brasília, identificadas pela numeração iniciada por cem, duzentos, trezentos, quatrocentos e setecentos, poderão ser administradas por prefeituras comunitárias ou associações de moradores legalmente constituídas, observado o disposto nesta lei.

Art. 2o. Fica facultada a transferência para a responsabilidade das entidades a que se refere o art. 1o. dos serviços de:

I - limpeza e jardinagem das vias internas, áreas comuns, inclusive áreas verdes;

II - coleta seletiva de lixo;

III - segurança complementar patrimonial e dos moradores;

IV - representação coletiva dos moradores perante órgãos e entidades públicas.

§ 1o. A taxa de limpeza pública relativa às unidades habitacionais das quadras que optarem por administração própria fica reduzida a cinqüenta por cento, a partir do ano subseqüente ao da comunicação da opção ao poder público.

§ 2o. As administrações das quadras poderão comercializar o lixo coletado com empresas de reciclagem devidamente credenciadas pelo poder público.

Art. 3o. O plano urbanístico das quadras, em vigor à data da publicação desta Lei, não poderá ser modificado em suas características básicas.

§ 1o. Fica vedada a apresentação de proposta que vise à alteração de gabarito ou ao aumento do número de projeções previstas no plano urbanístico local.

§ 2o. As propostas de modificação das vias de circulação interna ou de áreas verdes, apresentadas pela administração da quadra, deverão ser referendadas pela assembléia geral dos moradores, na forma prevista no estatuto.

§ 3o. As áreas de estacionamento interno das quadras poderão ser ampliadas desde que assegurada a taxa mínima de área verde, mediante proposta a ser aprovada pelo Poder Executivo, que as delimitará.

§ 4o. A aprovação das modificações de que tratam os § § 2o. e 3o. fica condicionada a parecer prévio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN.

Art. 4o. Poderão ser fixados, nos limites externos das áreas das quadras ou conjuntos, obstáculos que dificultem a entrada e saída de veículos e que nem prejudiquem nem coloquem em risco o livre acesso de pessoas.

Parágrafo único. Fica vedada a construção de cercas ou similares, mesmo que cerca verde.

Art. 5o. A contratação de serviço complementar de segurança, vigilância ou sistema similar pela administração das quadras fica condicionada à aprovação de proposta detalhada a ser apresentada à Secretaria de Segurança Pública.

Parágrafo único. O sistema de segurança de que trata o caput poderá prever controle de entrada e saída de veículos da quadra, sem comprometer o direito de ir e vir dos cidadãos.

Art. 6o. As prefeituras comunitárias ou as associações de moradores legalmente constituídas poderão cobrar taxas de manutenção e conservação aos proprietários de unidades habitacionais das quadras por elas administradas.

§ 1o. A fixação das taxas e sua destinação serão objeto de decisão em assembléia geral, com o quorum previsto nos respectivos estatutos.

§ 2o. As decisões da assembléia, tomadas em cada caso pelo quorum que o estatuto da administração fixar, tornam-se obrigatórias a todos os proprietários das unidades habitacionais da respectiva quadra.

§ 3o. O Poder Executivo reservará e delimitará áreas nas quadras para a construção de sede das prefeituras comunitárias ou associações de moradores de que trata esta Lei.

Art. 7o. Reverterão às administrações das respectivas quadras cinqüenta por cento do valor das taxas cobradas pelo poder público por ocupação de áreas públicas.

Art. 8o. O Poder Executivo poderá celebrar convênios e outros ajustes com as prefeituras comunitárias ou associações de moradores legalmente constituídas para a realização de serviços públicos de forma centralizada.

Art.9o. O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de noventa dias.

Art. 10. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 11. Revogam-se as disposições em contrário ".

De início, sublinhe-se que o diploma legal em comento é originário do exercício pelo Distrito Federal da competência legislativa reservada aos Estados (art. 32, § 1o, Constituição Federal de 1988), porquanto a lei questionada versa sobre o uso e a administração de área integrante do conjunto urbanístico de Brasília-DF (quadras residenciais da Asa Sul e da Asa Norte do Plano Piloto), este tombado, tanto em nível federal como na esfera do Distrito Federal, como patrimônio histórico-cultural e, portanto, sujeito ao regime jurídico do tombamento. Ademais, o diploma legal trata de matéria própria do direito urbanístico, de competência legislativa estadual (art. 24, I, fine, Constituição Federal de 1988).

Dispõe o art. 24, caput e inciso VII, da Lei Maior de 1988:

" Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico".

A matéria de que trata a lei distrital ora em exame dispõe sobre a flexibilização do uso e sobre a administração de um patrimônio histórico-cultural, o que revela cuidar-se de norma de caráter estadual, no exercício da competência concorrente, em que, como consabido, a União estabelece normas gerais (art. 24, § 1o., Constituição Federal de 1988), enquanto os Estados e o Distrito Federal exercem competência legislativa suplementar, no caso sobre espaços territoriais componentes do Conjunto Urbanístico de Brasília, patrimônio tombado.


DA OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

Preceitua o art. 2o. da Constituição Federal de 1988:

" Art. 2o. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário ".

O princípio da separação dos Poderes foi consagrado pela clássica obra " O Espírito das Leis", livro em que o célebre Montesquieu (1) lavrou advertência eternizada nos domínios do Direito Constitucional (destaques não originais):

" Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o Monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor. Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou de nobres, ou do Povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares (...) Se o Poder Executivo não tiver direito de frear as iniciativas do corpo legislativo, este será despótico. Porque, podendo atribuir-se todo poder imaginável, aniquilará os demais poderes ".

A lei peca pela afronta contra o princípio basilar da divisão e separação dos Poderes, haja vista que o Conjunto Urbanístico de Brasília (particularmente as áreas verdes, os espaços e vias internas das quadras residenciais do Plano Piloto) constitui, por força do tombamento, bem público de uso comum e bem de interesse público, cuja gestão incumbe ao Poder Executivo do Distrito Federal, não ao Legislativo.

Com efeito, importa observar-se, de plano, que o ato legislativo dispõe sobre o uso e administração de áreas verdes e das áreas internas das quadras residenciais do Plano Piloto (dispõe sobre as vias de circulação, ampliação de estacionamento e locais para instalação da sede das Prefeituras ou Associações Comunitárias), o que diz respeito à administração de bens públicos de uso comum, para a qual é competente o Poder Executivo, não o Legislativo, de molde a se revelar, ab initio, a eiva da inconstitucionalidade da lei, em face da usurpação de competência do Executivo pelo Legislativo, motivo da violência ao disposto no art. 2o. da Constituição Federal em vigor.

É nítida a ofensa ao preceito constitucional da separação dos poderes (art. 2o., Constituição Federal de 1988), ainda mais aclarada quando se faz o cotejo do ato legislativo de caráter estadual com as cristalinas regras de competência insculpidas na Lei Orgânica do Distrito Federal: " Art. 52. Cabe ao Poder Executivo a administração dos bens do Distrito Federal, ressalvado à Câmara Legislativa administrar aqueles utilizados em seus serviços e sob a sua guarda ".

Por conseguinte, a administração dos bens do Distrito Federal (inclusive aqueles de uso comum do povo, como são as vias internas das quadras da Asa Sul e da Asa Norte do Plano Piloto de Brasília-DF, as áreas verdes, os estacionamentos públicos, áreas livres) incumbe, ex vi legis, ao Poder Executivo, motivo por que a medida legislativa atenta contra o princípio magnânimo da separação dos poderes e, por isso, reluz sua inconstitucionalidade, por colidir frontalmente com o art. 2o. da Constituição Federal de 1988.

Assim sendo, a lei ora discutida fere gravemente a competência do Poder Executivo de administrar os bens públicos do Distrito Federal, sobretudo quando se cuida não somente de um bem comum, mas do conjunto urbanístico de Brasília e seus acessórios, universalidade e espaço territorial tombado em nível local e federal, também reconhecido como patrimônio histórico e cultural da humanidade pela UNESCO.

De fato, a regra da competência do Poder Executivo, no que tange à gestão dos bens do Distrito Federal, reforça-se mais na hipótese de patrimônio tombado, uma vez que só a Administração, a responsável pelo tombo originário do espaço territorial, pode velar pela preservação e as alterações no local, vedando-se ao Poder Legislativo imiscuir-se nesse pormenor, até porque, instituído por ato administrativo ou decreto do Poder Executivo de efeitos concretos, o tombamento é matéria infensa às disposições do Poder Legislativo, visto que a generalidade e a abstração típicas da lei não se moldam às particularidades de um bem ou conjunto urbanístico específico.

Não que o Poder Legislativo não possa, in genere, dispor sobre regras gerais atinentes a tombamento ou sobre a proteção do patrimônio cultural, competência legislativa inclusive conferida pela Carta de 1988 no seu artigo 24, inciso VII. O que se veda ao legislador é descer do nível da abstração e generalidade para tombar ou revogar o tombamento de um bem ou de um conjunto urbanístico, como faz a lei distrital em questão com as quadras residenciais do Plano Piloto de Brasília-DF, eis que, na espécie, o Legislativo está cancelando, em parte, e ainda permitindo a descaracterização de bem e universalidade objeto de tutela especial pelo Poder Público, agravado o aspecto da intolerável invasão de competência pelo fato de a Câmara Legislativa gerir, fixar normas concretas e particulares e mesmo revogar parcialmente a limitação administrativa sobre acervo patrimonial tombado pelo Poder Executivo do Distrito Federal, como se o legislador pudesse fazer as vezes de administrador.

Não é lícito ao Legislativo revogar, no todo ou em parte, as limitações administrativas que recaem sobre um bem ou uma universalidade tombada, desde que apenas o Poder Executivo poderia revogar um ato de tombamento. Pode o Governador do Distrito Federal valer-se de um decreto para revogar uma lei? Evidentemente que não. Se é assim, como uma lei teria o condão de derrogar um ato de tombamento lavrado pela Administração? Tanto que a Lei Distrital nº . 47, de 02 de outubro de 1989, reza, nos termos do seu artigo 19: " O cancelamento do tombamento far-se-á mediante decreto do Governador, por iniciativa do Secretário de Cultura, após decisão do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural".

Daí exsurge a inconstitucionalidade da norma distrital em face do art. 2o. da Lei Solar, ante a inequívoca infringência do princípio da separação dos Poderes, dada a usurpação de competência pelo Poder Legislativo, que se arvorou em administrador do patrimônio cultural e, mais grave, como se demonstrará, com uma liberalidade lesiva à preservação dos espaços territoriais tombados e, por igual, de forma a atingir a própria idéia e concepção original das quadras do Plano Piloto, ideal adulterado pela construção de guaritas e obstáculos na entrada das quadras residenciais, alteração dos estacionamentos internos, áreas verdes, enfim, uma absoluta descaracterização do conjunto urbanístico de Brasília, promovida às custas de usurpação de competência do Poder Executivo, a quem cabe administrar, com exclusividade, os bens públicos do Distrito Federal.

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Impõe-se ao Poder Executivo definir quais os bens e os conjuntos urbanísticos que demandam a tutela especial do tombamento, assim como definir os critérios de gestão dos mesmos bens públicos e de interesse público, mediante pormenorizados estudos técnicos, nos quais se avaliará as providências a ser aplicadas in concreto na administração do patrimônio cultural, inclusive coibir as ações particulares que possam descaracterizar o acervo tombado, sempre sob a direção do princípio protetor de assento constitucional. É providência que envolve apreciação discricionária e de efeitos concretos pelo administrador, insuscetível de disciplina específica e particular pelo Poder Legislativo, cuja competência se resume a delinear as regras gerais sobre tombamento, afastada a possibilidade de o legislador atuar como se administrador fosse.

Observa a professora Maria Coeli Simões Pires (2), Procuradora da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais (destaques não originais):

" Cabe ao órgão do Executivo definir a partir de estudo técnico e mediante ato administrativo os bens que justificam a proteção estatal, segundo os parâmetros estabelecidos abstrata e genericamente na norma que empresta ao ato o suporte da legalidade".

No mesmo diapasão, aduz Sonia Rabello de Castro (3), Procuradora do Município do Rio de Janeiro e professora de direito administrativo (destaques não originais):

" Tal como está previsto no Decreto-lei 25/37, o tombamento é ato administrativo cuja competência para praticá-lo foi atribuída pela lei a órgãos específicos do Poder Executivo (...) No âmbito delimitado pela Constituição e pelo Decreto-lei 25/37, a administração pública praticará, mediante ato administrativo, a proteção dos bens que julgar inseridos nos critérios de valor genericamente previstos na norma e especificados nos seus estudos técnicos (...) A questão da abstratividade da lei relaciona-se diretamente com o princípio da separação de poderes prevista na Constituição Federal (...). Ora, é próprio do Poder Executivo o exercício da função de realização dos atos concretos de Direito, enquanto ao Legislativo cabe previsão de suas hipóteses abstratas (...) Ao se admitir, amplamente, a não abstratividade da norma jurídica, estar-se-ia, na prática, admitindo o exercício da função executiva pelo Poder Legislativo, já que este poderia não só prever o direito em tese, como também estabelecer e concretizar a sua aplicação caso a caso ".

Acentua a professora Sonia Rabello de Castro (4) (destaques não originais):

" Confere-se ao Poder Executivo o exercício do poder de polícia para proteção do interesse público de preservação de bens de valor cultural que determinadas coisas possam conter. Com esta previsão legal, abriu-se ao Executivo o espaço legal necessário ao exercício do poder de polícia nesta área, já que lhe caberá determinar os bens passíveis de proteção. Outrossim, os bens apontados após o processo administrativo competente passarão a estar sob a tutela especial do Estado, integrando seu domínio eminente (...) Daí se infere que o tombamento só pode ser feito por iniciativa do Poder Executivo, não sendo função abstrata da lei, que apenas estabelece normas de tombamento. O tombamento é autêntico poder de polícia administrativa, a ser exercitado pela União, Estados e Municípios, na esfera de competência de seus poderes políticos com função de administrar ".

Destarte, a inconstitucionalidade manifesta pela usurpação pelo Poder Legislativo da competência do Executivo, caracterizado o desacato ao disposto no art. 2o. da Constituição Federal de 1988, vicia por completo a lei distrital ora questionada.


DA INCONSTITUCIONALIDADE DA TRANSFERÊNCIA DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS AOS PARTICULARES

Nos termos dos artigos 2o., I, II e III, § § 1o. e 2o., art. 5o. e parágrafo único, todos da lei ora estudada, dá-se o cometimento da prestação dos serviços públicos de limpeza urbana e jardinagem das vias internas, áreas comuns e áreas verdes, além da coleta seletiva de lixo e segurança pública local, para as Prefeituras Comunitárias, inclusive prevista a redução de 50% (cinqüenta por cento) da Taxa de Limpeza Pública e permitida a comercialização do lixo coletado pela Associação de Moradores das quadras com empresas de reciclagem. Convém anotar que se revela temerário e inconstitucional atribuir-se aos particulares a responsabilidade pelos serviços públicos prestados diretamente pelo Estado (como a segurança pública na área interna das quadras), sobretudo quando não se trata de área exclusivamente particular, mas sim de bem público de uso comum do povo e bem de interesse público (espaço territorial tombado), especialmente com atividades e serviços prestados, com exclusividade, por autarquias e empresas públicas, como se dá com a coleta de lixo (SLU) ou a jardinagem das áreas verdes (NOVACAP).

Preceitua o caput do art. 175 da Constituição Federal de 1988: " Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos".

Realmente, a transferência da responsabilidade pela prestação de serviços públicos em geral às Prefeituras Comunitárias é sobremodo ofensiva ao interesse público inspirador do preceito do caput do art. 175 da Lei Suprema de 1988, haja vista que não há como se cometer à administração particular serviços essenciais, como segurança sobre área pública de uso comum ou a coleta de lixo e jardinagem, atividades precípuas do Estado, máxime quando se trata de patrimônio tombado, cuja preservação e manutenção pertencem, inalienavelmente, ao Poder Público.

A bem da verdade, a prestação dos serviços públicos envolve a própria sobrevivência do interesse público e coletivo, em particular quando se está diante da tutela de patrimônio tombado e espaços territoriais de domínio público. Não é por mero acaso que a prestação de serviços públicos foi atribuída ao Poder Público por mandamento constitucional (art. 175, caput), senão pelo fato de que o Estado é o supremo tutor e administrador dos bens públicos de uso comum e dos de elevado interesse público, como é o caso do conjunto urbanístico tombado, cuja conservação não se admite seja legada à gestão particular, eminentemente informada pelo interesse privado.

Cuida-se, in casu, de uma afronta direta ao art. 175, caput, da Constituição Federal de 1988, preceito ao qual a norma distrital não se conforma, uma vez que, nas quadras residenciais do Plano Piloto, a prestação de serviços públicos (segurança pública, coleta de lixo e jardinagem, dentre outros) incumbe precipuamente ao Distrito Federal, porque integradas por áreas verdes, vias internas, estacionamentos e outras áreas de uso comum da coletividade, bens públicos de uso comum do povo, cuja respectiva manutenção e tutela só cabem ao Estado, não a particulares. Menos ainda aceitável quando a gestão particular poderá culminar com a lesão ao patrimônio histórico-cultural da humanidade, objeto de tutela pública especial derivada do tombamento, mesmo porque o espaço territorial interno (área comum) das superquadras é de domínio público.

Violenta a Constituição estabelecer-se uma modalidade de prestação de serviços públicos não precedida de licitação e que não é hipótese de concessão nem permissão, quando em pauta o cuidado sobre bem público de uso comum, o qual compõe, em sentido lato, o patrimônio público (áreas verdes, vias internas, estacionamentos públicos e outras áreas sitas dentro das quadras residenciais), sem o menor critério de preservação ou de responsabilidade por eventuais danos causados pela falta de zelo na gerência administrativa particular das áreas públicas tombadas. O Estado é o guardião supremo dos bens públicos de uso comum do povo e o prestador de serviços públicos, seja pela via direta ou por delegação a terceiros, precedida de lastro licitatório e por meio de concessão ou permissão.

Não é tolerável que as Prefeituras Municipais, por força da lei distrital, exerçam poder de polícia no interior das quadras, sobre área de uso comum do povo, competência irrevogavelmente da alçada do Poder Público. O mesmo se diga dos demais serviços públicos. Existem serviços que são prestados diretamente pelo Estado, visto que não podem ser cometidos a terceiros, como é o caso da polícia e segurança pública em geral, justiça e outros. Nada obsta, entretanto, atendidas as exigências legais e regulamentares, que os moradores contratem segurança particular, mesmo armada, para as áreas internas de seus blocos, assim como empreendam uma organização aprimorada dos jardins e mesmo zelosa reunião, até seletiva, do lixo. Não é lícito, porém, impor que os bens públicos de uso comum do povo se sujeitem, em exclusivo, à gerência particular dos moradores ou dos seguranças por eles contratados, os quais não podem substituir-se ao policiamento ostensivo estatal, nem mesmo afastar a coleta de lixo pelo Serviço de Limpeza Urbana - SLU ou as atividades de jardinagem da NOVACAP, até mesmo porque em tela áreas de uso e pertencentes à coletividade, além de patrimônio tombado.

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Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. O tombamento de Brasília e o estudo da constitucionalidade da Lei Distrital nº 1713/97 em face da Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 38, 1 jan. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/487. Acesso em: 18 abr. 2024.

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