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O tombamento de Brasília e o estudo da constitucionalidade da Lei Distrital nº 1713/97 em face da Constituição Federal de 1988

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DA NEGATIVA DE VIGÊNCIA DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL TOMBADO

Do exame central da medida legislativa, detecta-se eiva de inconstitucionalidade, quando permitida a ampliação dos estacionamentos públicos, a alteração das áreas internas, a restrição do acesso de automóveis no interior das quadras e a construção de obstáculo ou guarita no limite externo para, inclusive por meio de serviço de segurança particular, limitar o direito de ir e vir de veículos, além de impor constrangimento indiscutível aos pedestres que circulem pela área, o que importa, sem dúvida, descaracterização do bem e do ideal tombado.

O conjunto urbanístico de Brasília foi imaginado por Lúcio Costa com a idéia de liberdade, com amplos espaços verdes, livres e públicos, ínsitos aí os princípios da liberdade de trânsito de veículos e de pedestres e da livre contemplação visual do interior das quadras residenciais. O acesso ilimitado e a livre fruição pela coletividade das áreas verdes identifica-se como ideal tombado.

As quadras onde serão promovidas as inúmeras modificações previstas na lei integram o Plano Piloto de Brasília, sujeito ao regime jurídico especial do tombamento e patrimônio histórico e cultural brasileiro e de toda a humanidade, cuja concepção é gravemente ameaçada pelo ato legislativo, que nega vigência ao dever de preservação do patrimônio cultural imposto ao Distrito Federal (tanto ao Poder Executivo como ao Legislativo) pela Carta Magna de 1988.

Reza o art. 23 da Constituição Federal de 1988:

" Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural ".

No mesmo diapasão, preceitua o art. 216 da lei solar:

" Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à melhoria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico;

§ 1o. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação ".

No mesmo compasso, prevê o caput do art. 215 da Constituição Federal de 1988: " Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais ".

Vê-se, às claras, que é um dos pilares do direito constitucional brasileiro, também no capítulo da seara administrativa e urbanística, a preservação do patrimônio histórico-cultural, imodificável e especialmente tutelado, como é o caso do conjunto urbanístico de Brasília-DF, porquanto o Plano Piloto de Brasília é protegido não somente em sua projeção físico-territorial, na qualidade de bem imóvel, mas também em sua expressão como ideal arquitetônico e paisagístico, como valor imaterial também tutelado: a idéia de liberdade, a contemplação e fruição das áreas verdes, o livre acesso ao interior das quadras por pedestres e automóveis, a manutenção do projeto original, tudo, enfim, sujeita-se ao resguardo do tombamento.

A alteração dos estacionamentos públicos, a redução ou limitação das áreas verdes, a modificação interior da quadra com obras para construção de prefeituras municipais, a edificação de guaritas com seguranças na entrada e saída das superquadras (artigos 3o., § 2o., § 3o., art. 4o., caput, art. 6o., § 3o., todos da lei distrital) configuram a mais violenta ofensa ao patrimônio cultural tombado, na qualidade de acervo histórico distrital e brasileiro, ameaçado de descaracterização e sensível modificação pela lei das prefeituras, cujos efeitos in concreto identificam-se com a conversão das quadras em condomínios fechados, o golpe mortal que se prepara sobre o conjunto urbanístico de Brasília e ao patrimônio histórico e cultural.

O escopo do ato legislativo, a par de ferir o princípio de proteção do patrimônio cultural tombado, é de impor um uso exclusivamente particular a bem de domínio público por excelência. O acervo tombado atinge o patamar de bem de interesse público, máxime o conjunto urbanístico de Brasília, de sorte que a norma sub examine agride os ditames constitucionais ao buscar cercear a fruição do bem público pela coletividade, em proveito de alguns moradores mas em detrimento de todos os demais cidadãos, o que contraria o princípio constitucional do amplo acesso aos bens culturais (art. 215, caput, Carta Magna de 1988).

          As quadras residenciais da Asa Sul e da Asa Norte do Plano Piloto de Brasília, por integrar o conjunto urbanístico tombado como patrimônio histórico, constituem uma fonte de cultura nacional, cujo acesso não pode ser embaraçado por meio de guaritas e seguranças armados na frente e ao longo das superquadras, visto que os empecilhos ao ingresso dos cidadãos, por veículos ou a pé, no interior dessas áreas, denota um cerceamento do exercício do direito cultural pelo cidadão que deseje sentar-se num banco de quadra, passear por ela, ver os traçados das vias internas e áreas verdes e todo o projeto original, da lavra de Lúcio Costa, de sorte que a lei distrital restringe um direito público subjetivo dos cidadãos, assegurado pelo caput do art. 215 da Constituição Federal de 1988.

A privatização do conjunto urbanístico componente do patrimônio histórico e cultural, vedando direta ou indiretamente o acesso ao bem cultural, nos moldes da norma distrital, implica, outrossim, violência ao preceito do art. 1o., II, da Constituição Federal de 1988, em que albergada como fundamento da República Federativa do Brasil a cidadania, pois que a fruição do patrimônio tombado é direito de toda a coletividade e de cada cidadão, ainda mais porque se cuida de acesso, no interior das quadras, a bens públicos de uso comum, portanto espaços territoriais de domínio público, insuscetíveis de apropriação exclusiva por particulares (apenas os moradores das superquadras).

Sob outro ângulo, o comando do § 1o. do art. 216 da Constituição Federal em vigor proclama que o Poder Público, com a participação da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro por meio de tombamento. Ora, quando a lei distrital em comento transfere todo o controle e administração do patrimônio tombado para alguns poucos moradores da associação ou prefeitura da quadra, ocorre o impedimento à tutela de promoção e proteção do acervo cultural pelo Poder Público, o qual passa a meramente contemplar a gestão privada dos bens públicos de uso comum e os de elevado interesse público devido ao tombamento, presente o risco de lesão irreparável, em face da autorização de os moradores, ao seu bel prazer e apenas movidos por seus interesses particulares, alterarem e suprimirem áreas verdes, vias de circulação interna, construírem sedes de prefeituras no meio do bem público tombado, além de edificarem obstáculos e guaritas contra o trânsito de veículos e, indiretamente, constrangerem a circulação de pedestres, os quais serão intimidados pelos guardas armados e seguranças ao longo da entrada e saída e em todo o contorno das quadras, como se fosse prerrogativa particular dos moradores da quadra a fixação de limites à fruição de bens públicos de uso comum pela coletividade.

A perspectiva é da formação de guetos privados, que agridem e mesmo ferem de morte toda a concepção original de liberdade do conjunto urbanístico de Brasília, objeto de tombamento. Ademais, verifica-se a violência ao preceito do § 1o. do art. 216 da Constituição Federal de 1988, no tocante à colaboração da comunidade na preservação do patrimônio cultural, eis que, em virtude da lei em comento, somente os moradores da quadras terão livre acesso ao bem tombado, vedada a livre circulação de veículos e cerceada a passagem de pedestres, que serão obrigados a prestar contas aos seguranças armados das quadras (investidos de um teratológico poder de polícia por causa das disposições da lei distrital), os quais culminarão por constranger, gravemente, todo o acesso ao bem cultural da humanidade.

Por corolário, ao revés do prescrito pela Constituição, a comunidade do Distrito Federal ver-se-á privada de concorrer para a proteção do espaço tombado, ao mesmo tempo em que o Poder Público, de modo idêntico e por força da lei local, será condenado a assistir, impassível, à gestão privatística de bens públicos de uso comum, à descaracterização e à alteração do patrimônio histórico e cultural do Distrito Federal, brasileiro e da humanidade, tudo em razão da norma inconstitucional aprovada pela Câmara Legislativa e que não se amolda aos ditames da Carta Magna, quando a fruição da área tombada deve ser livre a toda a coletividade (art. 1o. II, art. 215, caput, art. 216, § 1o., todos da Constituição Federal de 1988) e a sua gestão dever inalienável e precípuo do Poder Executivo.

De fato, sobre as áreas urbanas tombadas e sua fruição por toda a coletividade, ensina o professor Paulo Affonso Leme Machado (5):

" A noção de conjuntos urbanos foi bem empregada na Constituição, pois é mais larga do que a de cidade. Assim, ruas, becos, bairros, vielas, subdistritos, distritos, aglomerações e cidades estão compreendidos na expressão ‘ conjuntos urbanos ‘ (...) procurou-se proteger a visibilidade da coisa tombada, seja monumento histórico, artístico ou natural. O monumento ensina pela presença e deve poder transmitir uma fruição estética mesmo ao longe. Não só o impedimento total da visibilidade está vedado, como a dificuldade ou impedimento parcial de se enxergar o bem protegido (...) Seria de indagar, desde o início, qual a finalidade que acrescentaria ou mudaria no bem público o regime do tombamento. Além da inalienabilidade (art. 11 do Dec.-Lei 25/37), temos a acentuar que esse tipo de tombamento visa primacialmente possibilitar a fruição do bem por parte do público. A utilização dos bens públicos tombados há de ser direcionada não só no sentido de sua conservação mas de sua permanente fruição por toda a coletividade ".

No mesmo compasso, patenteando a inconstitucionalidade da medida legislativa distrital, observa a professora Sonia Rabello de Castro (6):

" Ora, se o patrimônio cultural nacional, uma vez reconhecido através da preservação, é bem de interesse da coletividade, pode-se inferir que esta comunidade de cidadãos passa a ter o direito público subjetivo de tê-lo protegido. O reconhecimento pelo Estado do valor de determinado bem não se resume em, unicamente, estabelecer o poder do estado de agir na tutela deste bem. Instituída pela processo legal a tutela, esta cria para o cidadão, automaticamente, um direito público subjetivo de ver protegido o bem que constituiu o patrimônio histórico e artístico nacional".

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O cerceamento da fruição do bem público de uso comum do povo, como é o caso do fechamento da entrada e saída e o impedimento aos veículos, ofende ao direito da coletividade de gozar das áreas públicas de uso comum sujeitas ao tombamento, o que não se aceita.

Além disso, toda a concepção arquitetônica e paisagística do Plano Piloto, ornada fundamentalmente com a ampla visão das áreas verdes e das quadras, assim como da paisagem do Lago Sul ou das quadras superiores e inferiores, tudo resta eliminado, causando-se dano ao patrimônio ambiental tombado (direito à visibilidade).

Sob esse prisma, destaca-se que o conjunto urbanístico, a universalidade tombada como um todo, sofrerá modificações, inclusive no concernente à visibilidade, dadas as alterações que as prefeituras ou associações de moradores efetuarão, sob o escudo da lei distrital. Não apenas as quadras se limitam aos efeitos do tombamento, mas também a universalidade delas. Efetivamente, o acervo histórico-cultural protegido compõe-se do conjunto urbanístico de Brasília, enquanto universalidade tombada. Assim, não somente cada quadra e suas áreas públicas internas e áreas verdes restringem-se ao tombamento, mas a idéia do conjunto como um todo, que será, todavia, aviltada com as reformas intentadas por meio do diploma legislativo, digno da mais severa repulsa justamente porque agride o patrimônio universalmente considerado, toda a concepção original da cidade, por força do seu escopo menor de privatizar aquilo que pertence, de forma inalienável e mesmo ontológica, à coletividade.

Se o bem público é tombado, isso se dá por causa de uma inspiração superior, estribada na vontade de que o conjunto urbano sujeito ao tombamento atenda aos fins de propiciar a toda a coletividade a fruição dos benefícios da coisa, ao contrário do que ocorre com os imóveis de domínio particular, de uso e gozo restrito aos seus proprietários.

Pois bem, a privatização do uso e da fruição, ainda que por via indireta, de áreas públicas de uso comum do povo, resguardadas pelo regime do tombamento, caracteriza séria ameaça aos interesses da coletividade em ver protegido o patrimônio cultural e dele desfrutar como um legítimo acervo de interesse público. Autorizar-se que as áreas públicas de uso comum, as áreas verdes e os estacionamentos públicos sejam fisicamente alterados e que a entrada e saída seja fechada por vontade particular constitui irreversível atentado ao bem imóvel sujeito a tutela como patrimônio cultural e ao próprio instituto do tombamento, porque de tombo não mais se tratará.

Isso sem se olvidar o valor imaterial do conjunto urbanístico tombado, cujo projeto arquitetônico e paisagístico poderá ser inteiramente modificado, o que é inconstitucional e ilegal. Do ponto de vista estético, paisagístico e do direito à visibilidade do patrimônio cultural, até mesmo danos morais à coletividade eclodiriam, uma vez que a fruição das áreas públicas de uso comum seria praticamente negada, além de a própria alteração visual configurar lesão ao espírito da universalidade tombada, assim como ao gozo do cidadão em desfrutar da beleza da cidade criada por Lúcio Costa, que será, entretanto, horrivelmente descaracterizada, fato não permitido pelo ordenamento jurídico brasileiro, ao qual não se amolda a lei debatida.

As áreas verdes poderão ser dissipadas à revelia da coletividade, as áreas públicas de uso comum internas e os estacionamentos públicos serão desfigurados, para proveito particular dos moradores da quadra e para gravame de toda a coletividade e cada cidadão, que tem direito público subjetivo não só sobre a preservação do patrimônio cultural como de sua fruição.

O art. 216, caput, da Constituição Federal de 1988 tutela como patrimônio cultural brasileiro os bens de valor material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto. O ideal arquitetônico que iluminou o projeto original da cidade, hoje objeto de tombamento enquanto valor imaterial, norteia-se pela liberdade de circulação e da amplitude de visão das quadras e seus espaços internos, entradas e saídas. Logo, a lei distrital macula o ideal tombado e valor imaterial especialmente preservado por regra explícita constitucional. O mesmo se diga quanto à lesão ao conjunto urbanístico considerado em seu todo, a ser descaracterizado, também às custas da ofensa ao princípio constitucional inserto no art. 216, caput, da Lei Excelsa. Da primitiva idéia de liberdade esposada por Lúcio Costa Brasília chegará próxima aos antigos guetos da África do Sul, do regime do apartheid. Se isso não é descaracterização do patrimônio cultural tombado, o que mais será?

Acerca do direito da coletividade à fruição do bem público de uso comum, anota o saudoso e emérito professor Hely Lopes Meirelles (7):

" Bens de uso comum do povo ou do domínio público: como exemplifica a própria lei, são os mares, praias, rios, estradas, ruas e praças. Enfim, todos os locais abertos à utilização pública adquirem esse caráter de comunidade, de uso coletivo, de fruição própria do povo. ‘ Sob esse aspecto - acentua Cirne Lima - pode o domínio público definir-se como a forma mais completa da participação de um bem na atividade de administração pública. São os bens de uso comum, ou do domínio público, o serviço mesmo prestado ao público pela Administração, assim como as estradas, ruas e praças ... Uso comum do povo é todo aquele que se reconhece à coletividade em geral sobre os bens públicos, sem discriminação de usuários ou de ordem especial para sua fruição... Esse uso comum não exige qualquer qualificação ou consentimento especial, nem admite freqüência limitada ou numerada, pois isto importaria atentado ao direito público subjetivo do indivíduo de fruir os bens de uso comum do povo sem qualquer limitação individual... No uso comum do povo, os usuários são anônimos, indeterminados, e os bens utilizados o são por todos os membros da coletividade - uti universi -, razão pela qual ninguém tem direito ao uso exclusivo ou a privilégios na utilização do bem: o direito de cada indivíduo limita-se à igualdade com os demais na fruição do bem ou no suportar os ônus dele resultantes. Pode-se dizer que todos são iguais perante os bens de uso comum do povo ".

Acresce a professora Sonia Rabello de Castro (8):

          " Pelo ato de tombamento, o Estado reconhece em determinada coisa um valor imaterial, merecedor da tutela pública, que se sobrepõe ao interesse individual (...) Assim, se determinado imóvel acha-se tombado, sua conservação se impõe; em função disto é que se pode coibir formas de utilização da coisa que, comprovadamente, lhe causem dano, gerando sua descaracterização".

A mesma jurista adverte quanto aos problemas advindos à visibilidade do bem (9):

          " Nesse sentido, não só prédios reduzem a visibilidade da coisa mas qualquer obra ou projeto que seja incompatível com uma convivência integrada com o bem tombado. O conceito de visibilidade, portanto, ampliou-se para o de ambiência, isto é, harmonia e integração do bem tombado à sua vizinhança, sem que exclua com isso a visibilidade, literalmente dita".

A lei distrital, pois, autoriza as associações de moradores a afetar a visibilidade do espaço territorial tombado, permitindo, assim, a descaracterização do patrimônio cultural tombado. Lembre-se que o conjunto urbanístico de Brasília foi tombado como patrimônio cultural nos termos da Portaria nº . 314, de 08 de outubro de 1992, do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural - IBPC, e do Decreto nº . 10.829, de 14 de outubro de 1987, do Governador do Distrito Federal (trata da preservação da concepção urbanística de Brasília).

Para demonstrar a patente descaracterização imposta pela norma distrital à concepção urbanística original de Brasília, nada mais oportuno do que ouvir o autor do projeto da cidade, o arquiteto Lúcio Costa (10):

          " A escala residencial, com a proposta inovadora da Superquadra, a serenidade urbana assegurada pelo gabarito uniforme de seis pavimentos, o chão livre e acessível a todos através do uso generalizado dos pilotis e o franco domínio do verde, trouxe consigo o embrião de uma nova maneira de viver, própria de Brasília e inteiramente diversa da das demais cidades brasileiras (...) As extensas áreas livres, a serem densamente arborizadas ou guardando a cobertura vegetal nativa, diretamente contígua a áreas edificadas, marcam a presença da escala bucólica (...) Proibir a vedação das áreas cobertas de acesso aos prédios (pilotis) e dos parqueamentos - cobertos ou não".

Lúcio Costa acrescenta (11):

          " Quanto ao problema residencial, ocorreu a solução de criar-se uma seqüência contínua de grandes quadras dispostas, em ordem dupla ou singela, de ambos os lados da faixa rodoviária, e emolduradas por uma larga cinta densamente arborizada, árvores de porte, prevalecendo em cada quadra determinada espécie vegetal, com chão gramado e uma cortina suplementar intermitente de arbustos e folhagens, a fim de resguardar melhor, qualquer que seja a posição do observador, o conteúdo das quadras, visto sempre num segundo plano e como que amortecido na paisagem".

A concepção urbanística original de Brasília, pois, compreende o chão livre e acessível a todos através do uso generalizado dos pilotis e o franco domínio dos verdes, além de uma preocupação com a ampla visibilidade das superquadras, a fim de resguardar melhor, qualquer que seja a posição do observador, o conteúdo das quadras, visto sempre num segundo plano e como que amortecido na paisagem.

Ora, se nem os próprios pilotis dos edifícios das quadras podem ser fechados, em nome do livre trânsito de pessoas e da preservação do ideal de liberdade inspirador da concepção urbanística original do Plano Piloto, quanto menos se admite a restrição ao acesso de cidadãos nas áreas internas das quadras, como previsto na lei distrital.

Pior, toda a idéia de amplas áreas verdes e também da larga visibilidade das quadras é ferida pelo diploma legal, porquanto, nos termos do art. 3o., § 2o., é veiculada a autorização de modificação ou mesmo supressão de áreas verdes do patrimônio tombado, sem embargo de as alterações no interior das quadras, nas vias internas de circulação, a construção de edifícios como sede das prefeituras comunitárias em área pública de uso comum do povo, o erguimento de guaritas na entrada das superquadras, tudo denota séria lesão ao direito da coletividade de visualizar o bem tombado, assim como o risco de ofensa ao valor imaterial tombado da liberdade.

Nem se fale do que será feito dos pilotis dos prédios, os quais poderão mesmo ser fechados pela associação de moradores, causando irreparável lesão ao patrimônio cultural e à idéia primária emanada de Lúcio Costa. Sim, porque, se os bens públicos de uso comum são entregues ao alvedrio dos moradores (inclusive áreas verdes e de circulação interna), não é difícil imaginar a completa apropriação privatística que advirá aos edifícios de todas as quadras residenciais do Plano Piloto, de forma a descaracterizar o conjunto urbanístico tombado, considerado em seu todo.

Ora, o inciso IV do art. 23 da Constituição Federal de 1988 pontifica:

          " Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural ".

A lei aprovada pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, a par de ofender o art. 23, caput e inciso IV, da Lei Maior no que tange à responsabilidade do Poder Legislativo pela preservação do bem cultural tombado, ainda inflige ao Poder Executivo um comando no sentido de que o Poder Público não cumpra o mandamento constitucional de impedir a descaracterização do patrimônio objeto de tombamento, o que mais ressalta a inconstitucionalidade da lei.

Por tudo isso é que se afigura ofensiva a diversos princípios constitucionais, como exaustivamente demonstrado, a transferência da gestão dos bens públicos de uso comum e do conjunto urbanístico tombado a particulares, como adverte, last but not least, Maria Coeli Simões Pires (13):

          " Em relação à entidade de direito público interno, sujeito ativo do tombamento, devemos destacar o primeiro e principal efeito do ato, que é o de integrar o Poder Público na gestão do bem. Com efeito, o regime jurídico do tombamento estabelece, de imediato, a co-responsabilidade da Administração na gestão da coisa, obrigando-se a protegê-la, conservá-la, repará-la em certos casos (...) Para o exercício dessa proteção, investe-se o Estado de direito subjetivo com respaldo no poder de polícia, que lhe permite adotar medidas de inspeção e fiscalização permanente do bem tombado, bem como coibir a ação deletéria que venha a interferir no estado da coisa ".

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Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. O tombamento de Brasília e o estudo da constitucionalidade da Lei Distrital nº 1713/97 em face da Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 38, 1 jan. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/487. Acesso em: 19 abr. 2024.

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