DA AGRESSÃO AOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA IMPESSOALIDADE
(arts. 5º e 37, da Constituição Federal de 1988)
O princípio da igualdade e o da impessoalidade também são violados quando o ato legislativo distrital privatiza um bem público de uso comum e de especial interesse público enquanto patrimônio cultural tombado, que é convertido, indiretamente, em condomínio fechado, o que se revela afrontoso ao preceito isonômico, uma vez que não é correto frustrar o direito da coletividade de usufruir de áreas públicas de uso comum e por elas transitar livremente, em veículos motorizados, em bicicletas ou a pé, desde que se está diante de bem tombado e, portanto, um patrimônio coletivo por excelência, cujo uso e gestão incumbe a toda a comunidade do Distrito Federal e ao Poder Público, e não somente à respectiva associação de moradores. É proibido à Administração, em ofensa direta ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, Lei Maior) beneficiar exclusivamente os moradores da quadra em particular, em prejuízo de todo o corpo coletivo de cidadãos, o que também colide com o tratamento igualitário (art. 5o. caput, Carta Magna de 1988) dispensado a todos no atinente à fruição do bem cultural, de livre acesso a todos, nos termos do art. 215, caput, da Constituição Federal vigente, caracterizada, assim, nesse aspecto, a inconstitucionalidade da lei distrital demandada.
DA OFENSA AO DIREITO DE LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO
(art. 5º, XV, Constituição Federal de 1988)
Assegura o art. 5o, XV, da Constituição da República de 1988: " É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens".
É inconstitucional cercear o direito de ir e vir de pessoas, veículos motorizados e bicicletas ao longo das quadras residenciais, através das áreas públicas de uso comum, vias internas, áreas verdes e mesmo pilotis dos prédios (ideal de liberdade de circulação que, inclusive, iluminou a concepção urbanística original do Plano Piloto de Brasília-DF).
Ora, por se cuidar não apenas de bem público de uso comum mas ainda de espaço territorial tombado e logo patrimônio cultural da coletividade, resta inviável a disposição da lei distrital no sentido de impedir o trânsito de veículos motorizados e bicicletas pelo interior das quadras componentes do conjunto urbanístico de Brasília, não somente por ferir o disposto no art. 5o., XV, da Constituição Federal de 1988 (liberdade de locomoção), mas também porque a restrição se choca, de modo irreversível, com a concepção de liberdade, como valor imaterial objeto do tombamento.
O direito de ir e vir ao longo de bem público de uso comum do povo não pode ser cerceado, em definitivo, por mero interesse de prefeituras comunitárias ou de associações de moradores, porquanto a ninguém é dado obstar o acesso da coletividade a uma área tombada e de domínio público, de livre trânsito de veículos de turistas e habitantes do Distrito Federal que trafeguem pelas quadras do Plano Piloto, além de não ser tolerável que os pedestres sejam indiretamente constrangidos em seus passeios ou mesmo caminhadas matinais por seguranças armados, os quais (embora a lei disponha que não incomodarão os transeuntes), inevitavelmente, causarão incômodo a todos os que circularem a pé pelas superquadras, pessoas cuja impressão (que deveria estar carregada da idéia de liberdade ínsita no projeto original de Brasília e valor imaterial tombado) será como de estar invadindo propriedade particular e de a todo tempo sentir a ameaça das armas de fogo dos seguranças das superquadras.
Quer dizer, o valor imaterial, tutelado pelo tombamento, da idéia de que as áreas verdes e vias internas são de uso e contemplação da coletividade perder-se-á pela hostilidade dos moradores e de seus guardas fortemente armados, a exigir documentos e a revistar os pedestres, mesmo simples cidadãos que aproveitam as manhãs para caminhar pelas quadras do Plano Piloto. Nem se pense no obstáculo aos pais de crianças que estudam nas escolas públicas situadas nas quadras, impedidos de nestas adentrar para buscar os seus filhos no colégio, só porque a lei distrital outorgou ao domínio e uso exclusivo particular bens públicos de uso comum do povo. Aos turistas brasileiros e estrangeiros será obstacularizado o acesso ao interior das superquadras, a visualização do patrimônio cultural da humanidade e a memorial obra de Lúcio Costa. Deriva daí a inconstitucionalidade do art. 4o., caput, e art. 5o., parágrafo único, da lei distrital ora impugnada ao dispor que:
"Art. 4o. Poderão ser fixados, nos limites externos das áreas das quadras ou conjuntos, obstáculos que dificultem a entrada e saída de veículos e que nem prejudiquem nem coloquem em risco o livre acesso de pessoas.
Art. 5o. A contratação de serviço complementar de segurança, vigilância ou sistema similar pela administração das quadras fica condicionada à aprovação de proposta detalhada a ser apresentada à Secretaria de Segurança Pública.
Parágrafo único. O sistema de segurança de que trata o caput poderá prever controle de entrada e saída de veículos da quadra, sem comprometer o direito de ir e vir dos cidadãos".
DA INCONSTITUCIONALIDADE DA ASSOCIAÇÃO
COMPULSÓRIA DOS MORADORES DAS QUADRAS
Ofuscante a inconstitucionalidade da lei distrital quando obriga os moradores da quadra a se filiarem às associações de moradores, com encargos financeiros semelhantes a uma cota condominial. Com efeito, dispõe a norma distrital:
"Art. 6o. As prefeituras comunitárias ou as associações de moradores legalmente constituídas poderão cobrar taxas de manutenção e conservação aos proprietários de unidades habitacionais das quadras por elas administradas.
§ 1o. A fixação das taxas e sua destinação serão objeto de decisão em assembléia geral, com o quorum previsto nos respectivos estatutos.
§ 2o. As decisões da assembléia, tomadas em cada caso pelo quorum que o estatuto da administração fixar, tornam-se obrigatórias a todos os proprietários das unidades habitacionais da respectiva quadra.
Segue que a lei distrital compele o morador da quadra a filiar-se à associação de moradores, a qual poderá cobrar taxas que obrigarão o sobredito morador, o que retrata o espírito da lei e a vontade do legislador distrital: dar tratamento de condomínio fechado particular às superquadras do Plano Piloto, como se as áreas pertencentes ao patrimônio público pudessem ser apropriadas pelos particulares, mediante privatização, por meio de lei, do bem de uso comum do povo. As decisões da assembléia de moradores vinculam os habitantes das quadras, em disposição idêntica à do art. 24, § 1o., da Lei Federal nº . 4.591/64 (Condomínio e Incorporações), quando vincula o condômino às decisões da assembléia geral do condomínio. Na verdade, o legislador distrital, quando previu a obrigação de contribuição do morador, parece, legislou sobre direito civil e instituiu, por via transversa, uma administração condominial da quadra, em violência frontal ao art. 22, I, da Constituição de 1988, que reza ser da competência da União (e logo de lei federal) dispor sobre direito civil.
Garante o art. 5o., XX, da Constituição Federal de 1988: " Ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado". A lei distrital fere esse dispositivo quando impõe a associação compulsória dos moradores das quadras, outro elemento a somar para a ampla constatação da inconstitucionalidade da norma de caráter estadual (dispõe sobre direito urbanístico, art. 24, I, Carta Magna de 1988) .
DA RESTRIÇÃO DA COMPETÊNCIA TUTELAR DO PODER PÚBLICO DO DISTRITO
FEDERAL SOBRE O PATRIMÔNIO CULTURAL LOCAL, OUTORGADA À UNIÃO (IPHAN)
(art. 18, caput, Constituição Federal de 1988)
O Poder Público, o Poder Executivo do Distrito Federal tem controle direto sobre o patrimônio cultural e histórico tombado (conjunto urbanístico de Brasília), nos termos do art. 23, caput e incisos III e IV, da Lex Suprema de 1988, de modo que, à luz da autonomia do Distrito Federal em face da União, selada pelo art. 18, caput, da Constituição Federal em vigor, revela-se inconstitucional atribuir apenas à União, na pessoa da autarquia federal do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, competência exclusiva sobre a tutela do patrimônio cultural, eis que, para modificar o bem tombado, a lei distrital dispensa a oitiva do Distrito Federal.
O fato é que o § 4o. c/c os § § 2o. e 3o. do artigo 3o. da lei distrital, ao limitar as alterações no espaço territorial tombado apenas ao IPHAN, terminou por suprimir a competência constitucional do Distrito Federal em preservar o patrimônio tombado, o que não se harmoniza com os artigos 23, caput e incisos III e IV, e 18, caput, da Constituição Federal de 1988, visto que o Poder Público local, que tombou o conjunto urbanístico de Brasília, deve ser ouvido e interferir diretamente em qualquer lesão ou descaracterização do bem público sob tutela especial por causa do tombamento, de forma a reiterar a inconstitucionalidade da lei distrital.
DA OFENSA AO PRINCÍPIO DO CONTROLE DO USO E DO
PARCELAMENTO DO SOLO URBANO PELO PODER EXECUTIVO
(art. 30, VIII, c/c art.32, § 1º, ambos da Constituição Federal de
1988)
A modificação do projeto original das áreas verdes, dos estacionamentos públicos, das vias internas e a construção de guaritas e mesmo edifícios como sede das prefeituras revelam-se como alteração do projeto urbanístico do loteamento de todo o Plano Piloto, providência relacionada com o uso, o parcelamento e a ocupação do solo do Distrito Federal.
O artigo 30, VIII, da Constituição Federal de 1988 (em competência reconhecida como extensiva ao Distrito Federal segundo os termos do artigo 32, § 1o., da Carta Suprema) prescreve que aos Municípios cabe controlar o uso, o parcelamento e a ocupação do solo urbano, isto é, as modificações das vias internas, das áreas verdes e a construção de guaritas e da sede das associações de moradores configura medida de ocupação e uso do solo urbano, em loteamento (modalidade de parcelamento do solo) ou espaço territorial tombado, diretamente controlado pelo Poder Público Municipal, no caso o Poder Executivo do Distrito Federal, que não pode ser subtraído dessa função controladora do uso do solo urbano no seu território, como se a União detivesse a gestão do bem público de domínio do Distrito Federal e pudesse dizer, como única e última palavra, o que pode ou não pode ser feito do bem cultural situado no território de outra entidade federada, em vez do Distrito Federal, o supremo guardião dos bens públicos situados nos seus limites territoriais.
A modificação do loteamento original do Plano Piloto de Brasília não pode ser promovida sem a anuência do Distrito Federal, que rejeita, de toda forma, a alteração e a descaracterização do patrimônio histórico e cultural, autorizada nos termos do § 4o. c/c os § § 2o. e 3o. do artigo 3o. da lei distrital em questão, que confere ao IPHAN o controle e o ordenamento territorial do Distrito Federal, em nítida negativa da autonomia constitucional do Distrito Federal em face da União, considerando tratar-se de controle da ocupação e do uso do solo local.
CONCLUSÃO
De todo o exposto, a Lei nº . 1.713/97 revela-se ofensiva ao princípio da Separação dos Poderes e muitos outros dispositivos da Constituição Federal de 1988, porquanto constitui grave ameaça de descaracterização do conjunto urbanístico tombado e ainda afronta todo o valor imaterial da concepção urbanística originária do Plano Piloto de Brasília, eis que contrária aos moldes do projeto arquitetônico de Lúcio Costa, sem embargo de o ato legislativo, a par de promover a privatização do uso de bem público de uso comum, também limitar o direito público subjetivo constitucional de livre e amplo acesso e fruição do patrimônio cultural por todos os cidadãos, desde que em tela bem revestido de especial interesse público, porque tombado como patrimônio histórico e cultural distrital, brasileiro e de toda a humanidade, cuja administração é competência indelegável do Poder Público e cujo gozo pertence, de forma inalienável, a toda a coletividade.
NOTAS
(1) O Espírito das Leis, Saraiva, SP, 1987, tradução de Pedro Vieira Mota, págs. 165 e 174.
(2) Da Proteção ao Patrimônio Cultural, Del Rey, Belo Horizonte, 1994, pág. 113.
(3) O Estado na Preservação de Bens Culturais - O Tombamento, Renovar, RJ, 1991, págs. 35 e 38.
(4) Ob. cit., págs. 34 e 39.
(5) Direito Ambiental Brasileiro, Malheiros,5a. ed., SP, 1995, págs. 585, 593, 603, 604.
(6) Ob. cit., pág. 69.
(7) Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, 21a. ed., SP, 1996, pág. 436, 438/439.
(8) Ob. cit., págs. 108 e 143.
(9) Idem, págs. 118/119.
(10) Brasília Revisitada, 1985/87.
(11)Obra citada.
(12)Obra citada, págs. 157/158.