“A arte se difere das outras atividades porque é justo nela que o homem se liberta das excessivas regras sociais. A arte tem pernas próprias, caminha como um homem livre, com um pensamento libertário, anárquico, fora disso, reproduzir um outro homem, de um outro continente, é estimular, reeditar um papel carbono e seus flagrantes borrões.”
Carlos Henrique Machado de Freitas
“Se comunismo versus capitalismo foi a contenda do século XX, então o controle versus liberdade será a discórdia do século XXI.”
Lawrence Lessig
“A História da Arte não é apenas uma história de obras,
mas também de homens.”
Papa João Paulo II
“O Direito é a arte do bem e da equidade.”
Celso
RESUMO
Estudo sobre o Domínio Público no Direito Autoral em âmbito internacional que permeia uma abordagem positiva do conceito sob a ótica inversa da proteção intelectual, perquirindo a ratio da apropriação exclusiva intelectual. Avalia nuances do Domínio Público como efeitos e características. Igualmente aborda a abrangência e as questões mais importantes dos complexos legislativos que o delineiam e também o transformam.
Palavras-chave: Domínio público; Direito Autoral; Propriedade Intelectual; Direito Internacional.
ABSTRACT
The current paper concentrates studies regarding the Public Domain of intellectual protection in the international field from the inversed viewpoint of the intellectual protection, seeking the ratio of the exclusive intellectual ownership protection. Rate the peculiarities of Public Domain as its effects and characteristics. Also evaluates the coverage of the Public Domain and the most important issues of the Law, Treaties and Conventions that shaped it and processes it.
Key words: Public Domain, Intellectual Rights, Intellectual Property; International Law.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.. 08
1 CONCEITO DE DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL. 09
2 NATUREZA JURÍDICA DO DOMÍNIO PÚBLICO.. 16
3 EFEITOS DO DOMÍNIO PÚBLICO.. 21
4 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL. 24
5 DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL BRASILEIRO.. 30
6 DIREITO INTERNACIONAL E DOMÍNIO PÚBLICO DO DIREITO AUTORAL. 34
6.1 Princípio da Proteção Mínima. 38
6.2 Princípio do Tratamento Nacional 40
6.3 Princípio do Tratamento Unionista. 41
6.4 Princípio da Nação Mais Favorecida. 42
6.5 Princípio da Proteção Automática. 43
6.6 Princípio da Proteção Independente. 45
7 OUTROS TRATADOS INTERNACIONAIS SOBRE DOMÍNIO PÚBLICO.. 46
7.1 Convenção Universal sobre Direito de Autor 46
7.2 Tratado da OMPI sobre Direito de Autor 47
7.3 Diretiva 93/98/CEE do Conselho, de 29 de Outubro de 1993. 48
8 PECULIARIDADES DE ALGUMAS LEGISLAÇÕES SOBRE DOMÍNIO PÚBLICO.. 49
8.1 Estados Unidos da América. 49
8.2 França. 51
CONCLUSÃO 52
INTRODUÇÃO
O tema do Domínio Público é aparentemente pouco explorado entre nossa doutrina, contudo esse trabalho procura demonstrar que a relativa aparência é inversamente proporcional a robustez de seus argumentos na qual se sustenta.
Enfocando o Domínio Público sob o ponto de vista positivo em complementaridade ao Direito Autoral, esse trabalho reúne estudos sobre Domínio Público abordando os aspectos mais importantes do complexo legislativo.
Avalia os efeitos e características do Domínio Público concentradas no Direito Autoral, excluindo assim, as peculiaridades da Propriedade Industrial, para garantir importância dos aspectos específicos das áreas artísticas e culturais relacionadas à proteção intelectual.
Delineia premissas a respeito de silogismos da abrangência internacional do Domínio Público, a fim de traçar parâmetros entre as legislações para o melhor entendimento sobre sua acessibilidade. Recorre aos princípios do Direito na análise da legislação e inversamente avalia a função dos princípios a fim dar conservar a integridade das premissas para adequada fundamentação.
Aborda os importantes conflitos sobre o tema, avaliando a capacidade de soberania dos Estados com suas legislações, pautando-se pelas suas obrigações internacionais, e igualmente, seu dever com seus cidadãos nacionais.
Assim, esse trabalho visa a acessibilidade do Domínio Público como forma de promoção artística, cultural e científica para a conservação desses patrimônios e da mesma forma para a desmistificação quanto ao seu uso.
1 CONCEITO DE DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL
O domínio público tem sido definido pelo conceito negativo da incidência de proteção autoral, ou seja, o domínio público tradicionalmente seria o antônimo da propriedade intelectual[1]. Entretanto, o que se observa é a complementaridade entre os dois conceitos.
James Boyle estabelece um ponto importante sobre domínio público ao ressaltar que é um espaço mas que não pode ser tomado como um lugar sem controle; ao contrário, deve seguir regras bem definidas, pois é tão significativo e importante quanto a informação que está sob controle de um titular[2].
Numa acepção sublimada, Drassinower conceitua o domínio público:
Podemos dizer que o domínio público não é somente o espaço que contém obras livremente disponíveis. É também a condição fundamental da interação livre e igual entre as pessoas na suas qualidades de autores. O domínio público é o domínio da justa interação[3].
Passo a passo, pode-se afirmar que domínio público não é res nullius (coisa de ninguém ou sem dono), nem res derelicta (coisa abandonada)[4]. Nesse sentido, Cláudio Barbosa direciona:
Domínio público reverte, necessariamente, para a própria justificativa do sistema de propriedade intelectual, pela óbvia complementaridade entre os dois conceitos. A partir do momento em que a informação (e a relação de comunicação) torna-se o elemento central da propriedade intelectual, percebe-se a necessidade de correta administração dos institutos de manutenção dessa propriedade e dos mecanismos de controle do domínio público[5].
Em razão da complementaridade entre domínio público e proteção intelectual, define-se justapostamente ambos conceitos.
Assim, Antonio Chaves conceitua que o direito autoral é:
(...) o conjunto de prerrogativas que a lei reconhece a todo o criador intelectual sobre suas produções literárias, artísticas ou científicas, de alguma originalidade: de ordem extrapecuniária, em princípio, sem limitação de tempo; e de ordem patrimonial, ao autor, durante toda a sua vida, com o acréscimo, para os sucessores indicados na lei, do prazo por ela fixado[6].
Enquanto que o Glossário da OMPI de 1983, define o domínio público como sendo:
(...) o conjunto de todas as obras que possam ser exploradas por qualquer pessoa sem necessidade de nenhuma autorização, principalmente, em razão da expiração do prazo de proteção ou porque não exista um instrumento internacional que garanta a proteção, no caso de obras estrangeiras[7].
Observa-se que o domínio público faz parte dos direitos intelectuais, entretanto, o sujeito de direito não é o próprio autor ou titular exclusivo, pois no domínio público a exclusividade cessa, em razão do decurso de prazo ou não incidência de proteção intelectual, outorgando o direito a toda a sociedade, com exceção dos direitos extrapatrimoniais (nas legislações que o preveem).
Ademais, não é o domínio público que protege os direitos extrapatrimoniais, pois na verdade, o domínio público não tem incidência sobre estes. Assim, a conservação dos direitos extrapatrimoniais após a decorrência do domínio público, nada mais é do que a manutenção da própria proteção intelectual.
Em razão da complementaridade entre domínio público e proteção intelectual, faz-se necessário o conhecimento individualizado de seus preceitos.
Assim, caracteristicamente, o direito autoral restringe seu objeto, pois o ordenamento jurídico que o constitui prevê um rol de obras que não são protegidas, muito embora, consuetudinariamente seja reconhecida a paternidade de seus autores.
Tulio Ascarelli diz que o direito moral de paternidade refere-se a quaisquer atos de criação, até mesmo àqueles relativos a criações não tuteladas como bens imateriais, citando, como exemplo que Newton e Leibniz disputaram a prioridade na paternidade da descoberta do cálculo infinitesimal, mas um sistema de cálculo não é uma criação intelectual protegida por um direito absoluto de utilização[8].
Dessa forma, vale contrapor o entendimento de Cláudio Barbosa:
Vale ressaltar que todas as idéias existem potencialmente antes da criação humana, só não existem em ação (...) Nesse sentido, a informação (inexistente) não está em domínio público, já que não existe (ou seja, não existe uma área comum, um espaço público platonístico em que as idéias circulem antes de serem captadas).
Anteriormente à apropriação, o domínio público é uma espécie de res communes, depois de expirado o prazo da apropriação passa a res publicæ. Sendo “público”, pode ser compreendido como algo que pertence a todos[9].
Portanto, o domínio público é a garantia pública quanto ao acesso das criações que decorreram o prazo de exclusividade. Nesse sentido, Denis Barbosa explicita:
O ingresso no domínio público em cada sistema jurídico é incondicional, universal e definitivo; a criação passa a ser comum de todos, e todos têm o direito de mantê-la em comunhão, impedindo a apropriação singular. Não se trata de abandono da obra, res nullius ou res derelicta, suscetível de apropriação singular por simples ocupação. A obra sai do domínio privado e entra como valor positivo na comunhão de todos; em comum, todos são titulares do direito de usar e transformar, e, como todos o são, descabem as faculdades de fruir (alugar ou obter regalias) ou de dispor (ou seja, entregar à apropriação singular de terceiro). Mas subsiste a de perseguir a obra das mãos de quem a apropria singularmente[10].
João Barbalho até sustenta a oposição ao termo propriedade para o tratamento da proteção intelectual:
(...) o direito do inventor não é rigorosamente uma propriedade ou é uma propriedade sui generis. O invento e antes uma combinação do que verdadeiramente criação. Versa sobre elementos preexistentes, que fazem desse repositório de idéias e conhecimentos que o tempo e o progresso das nações têm acumulado e que não são suscetíveis de serem apropriados com o uso exclusivo por quem quer que seja, constituindo antes um patrimônio comum, de que todos se podem utilizar[11].
Pormenorizadamente, Cláudio Barbosa classifica:
Existe, portanto, uma diferenciação entre res publicæ e res communes omnium, as quais pertencem ao Estado e às gentes isto é, que pertencem a todos e não podem ser apropriadas (são res extra commercio), e res nullius, coisas, que não pertencem a ninguém e, portanto, podem ser apropriadas (pois são res in commercio). Estes são alguns elementos que devem ser resgatados para uma discussão mais ampla sobre o papel da informação na propriedade intelectual, especialmente porque em determinados institutos dessa propriedade as informações são considereadas res nullius e, após sua proteção, res communes omnium[12].
E critica a denominação de domínio público:
Seria tecnicamente correto adotar o termo “domínio comum” ao tratar das informações necessárias a novas criações, porque não pertencem exatamente ao Estado, no sentido atribuído pela designação latina res publicæ, todavia tal questão é desprovida de qualquer interesse prático e, portanto, adota-se o termo “domínio público” largamente utilizado[13].
Todavia, utilizaremos o termo domínio público em complementaridade ao direito autoral, ou seja, para fins desse estudo, não serão abrangidas as obras que não são objeto da proteção intelectual, pela sua natureza de utilização livre do enfoque dos direitos intelectuais[14].
Assim, o domínio público segue numa interação com o direito autoral, revelando a todo o público para que em comum desfrutem da criação intelectual que outrora fora exclusiva. De modo que, sua essência está diretamente ligada ao término da exclusividade da proteção intelectual.
Desse modo, deve-se observar quais são as obras que dignam tal proteção. Assim, Carboni sintetiza que “o Direito leva em conta a presença de um valor estético autônomo nas criações intelectuais para estabelecer a sua forma de proteção”[15]. Como bem asseverado, o conteúdo intelectual que recebe a proteção deve conter um valor estético autônomo. Dessa forma, as legislações não preveem taxativamente quais as obras merecedoras de proteção, mas sim, enumeram exemplificativamente sob a indicação “tais como” a maioria das criações sujeitas ao regime especial.
Desse modo, mesmo com os avanços tecnológicos, as legislações tem conseguido abrigar as novas criações intelectuais. Sob esse aspecto, Guilherme Carboni antevê:
No mundo contemporâneo, diversas formas artísticas brigam para manter a sua própria identidade, mas tudo indica que os meios de manifestação artística se tornarão tão híbridos, que não conseguiremos mais diferenciar o espaço da arte, principalmente devido à revolução digital[16].
Portanto, a abrangência de criações sob a proteção intelectual despreende-se do rol exemplificativo das legislações. Nesse ângulo, Fragoso em referência a lei brasileira afirma: “criações estão protegidas pela lei, ainda que não exemplificadas em qualquer dos incisos de seu artigo 7º, mas inserida na proteção genérica de seu caput, obedecido, naturalmente, o princípio basilar da originalidade em sua criação”[17].
Entretanto, a questão de originalidade acima indicada pode apontar relativa subjetividade ao critério de proteção. E assim, Eliane Abrão relaciona:
Deveria a lei autoral tratar diferentemente o artista ou o autor genial, criador de tendência, daquele outro que, igualmente criativo, a segue? Positivamente não, porque protege a lei qualquer obra que contenha elementos criativos, e não uma obra mais criativa que a outra, ou autor mais criativo que outro. Portanto, é a criação fixada a condição de proteção e não a originalidade em relação ao universo das obras criativas, porque todas são dotadas de originalidade relativa[18].
Na verdade, além da fixação como condição de proteção, igualmente são objeto de direito as criações expressas por qualquer meio, conforme as legislações. Assim, Ascensão indica:
(...) a obra literária ou artística é uma criação intelectual exteriorizada. Pode essa manifestação fazer-se por um texto escrito, ou até oralmente, como nas conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza; pode ser uma obra musical ou uma carta geográfica. Em qualquer caso, ela representa a exteriorização de uma criação do espírito[19].
Desse modo, Eliane Abrão aponta a prática dessa proteção:
A proteção que a lei confere a essas obras diz respeito à impossibilidade de reprodução das conferências e assemelhados por meios gráficos, magnéticos ou de qualquer outro modo de captação do conteúdo, por qualquer pessoa física ou jurídica, sem o consentimento do conferencista[20].
Fragoso condensa o critério de proteção:
(...) de um lado, a criação do espírito, de outro lado, a sua manifestação no mundo físico, sob qualquer forma ou meio; é necessário que a idéia se transmute em obra, que se transforme em fenômeno físico – ainda que não fixado em qualquer suporte – perceptível ou passível de ser percebido, para que efetivamente exista[21].
Portanto, podemos afirmar que a proteção intelectual é conferida para as criações intelectuais fixadas ou expressas por qualquer forma que possuam autonomia estética sobre seu conteúdo, como já havia sido assentado por Carboni acima.
Além disso, “a utilidade de uma obra não exclui necessariamente o seu caráter artístico, o que se verifica, em especial, na arquitetura, que pode ser considerada a expressão sensível de uma necessidade satisfeita”[22]:
“Na arte aplicada importa o seu caráter teleológico, o fim a que se presta a criação do designer, ou seja, o fato de estar criando um objeto, cuja finalidade, independentemente de seu valor artístico intrínseco, é de natureza essencialmente utilitária. Por outro lado, não se pode ignorar o caráter estético de um determinado objeto, em certos casos denotando o aspecto indissociável entre arte e indústria (...) Tal incorporação ocorre sem que tais obras sejam dissociadas do caráter industrial do objeto a que estejam vinculadas, como estampava a lei autoral brasileira anterior (Art. 6, XI)[23].
Logo, as obras intelectuais são sujeitas ao resguardo especial dos direitos autorais. No entanto, tal proteção acompanha determinada variação em razão das especificidades de cada gênero de obras (textos, músicas, audiovisuais, fotografias, ilustrações, esculturais, entre outras) e também de acordo com cada tipo de autor (pessoa física ou jurídica, autoria individual ou composta – co-autoria, anonimato, pseudonímia).
O referido acompanhamento de variação da proteção reflete na complementaridade entre direitos autorais e domínio público, na medida em que a incidência dessa proteção atinge os prazos de duração dos direitos autorais pela especificidade equacionada entre o gênero da obra e o tipo de autor que resultará após o prazo de proteção na conversão da exclusividade autoral para a “inclusividade” pública do domínio público.
2 NATUREZA JURÍDICA DO DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL
O paradoxo entre o que seria a situação normal de uma obra circunda o domínio público. Delia Lipszyc objeta:
A natureza jurídica do domínio público gera algumas discussões acadêmicas. Para alguns, o domínio público seria a situação normal de uso das obras intelectuais, sendo o direito exclusivo de exploração econômica nada mais que uma restrição legal de uso. Para outros a exclusividade de exploração econômica seria a situação normal de uso e o domínio público seria uma restrição legal ao direito individual[24].
Sob a mesma reflexão, Denis Barbosa, pondera:
A inexistência de um direito natural egoístico e exclusivo às criações intelectuais é de que o elemento de partida da criação intelectual é sempre o repositório precedente, cultural e técnico, da humanidade. Seria assim uma apropriação inadequada do domínio comum considerar como exclusivo o que já era de todos[25].
Assim, Marcelo Dias Varella aponta:
(...) o uso devido da propriedade será efetivado quando beneficiar a coletividade e realizar o bem comum. A coletividade será beneficiada tanto quanto o inventor for bem remunerado, o que incentivará novas invenções, como quando a invenção contribuir para o progresso científico humano[26].
Conclui-se pela tensão existente entre o domínio público e a proteção intelectual, em que Denis Barbosa infere:
A tensão que existe entre a propriedade intelectual, na forma da instituição social que temos hoje, e a existência de um domínio público tem natureza estrutural; não é episódica ou incidental, mas, pelo contrário, inevitável e necessária. Pois foi para fugir do domínio público, ou mais precisamente, de certas características da produção criativa, que foram instituídos os mecanismos da nossa forma de propriedade intelectual[27].
Contudo, Denis Barbosa complementa citando Jerome Reichman a respeito da retribuição pelo esforço criativo:
(...) o Direito assegura aos criadores um pacote de direitos de propriedade exclusiva, planejado para superar o problema do domínio público resultante da natureza intangível, indivisível e inexaurível das criações intelectuais, que permite que sejam copiadas por aqueles que não compartilharam os custos e os riscos do esforço criativo[28].
Além disso, complementa a respeito da profissionalização dos criadores:
A instituição de uma exclusiva – nada por acaso – exclui a sociedade da plena fruição das criações no presente, plenitude que ocorreria se não instituído o monopólio. Mas, ao fazê-lo, intenta consolidar a atividade criativa numa economia de mercado, tornando-a profissional e permanente[29].
Desse modo, Tullio Ascarelli ressalta que a proteção deve ter limite temporal para que se efetive a contribuição social:
(...) o interesse público é melhor atendido se houver o reconhecimento de um direito absoluto de utilização da obra intelectual (ao invés da ausência desse reconhecimento), que deve ser limitado no tempo, para que o direito de uso exclusivo possa levar à livre utilização da criação intelectual, que é quando ocorre a maior contribuição ao desenvolvimento técnico e cultural[30].
Delia Lipszyc menciona os principais argumentos em favor da limitação temporal:
- ao criar o autor se alimenta do patrimônio cultural coletivo, razão pela qual a obra deve, em algum momento, retornar a este patrimônio comum;
- depois de certo tempo fica praticamente impossível encontrar todos os herdeiros e mesmo obter um consenso entre suas vontades;
- a perpetuidade custa caro à coletividade, dificultando a circulação e o acesso às obras.
Assim, Delia Lipszyc corrobora a necessidade de limitação da proteção intelectual:
A finalidade de se limitar o prazo de proteção autoral está na necessidade de se permitir à sociedade a fruição gratuita das obras como forma de preservação e fomento cultural. A proteção autoral mostra-se, assim, como uma privação forçada e, portanto, essencialmente temporária. Essa temporariedade funcionaria como a válvula de segurança da sociedade[31].
Todavia, Ascarelli destaca a problemática havida mesmo dentro da limitação temporal que “o custo social desse direito exclusivo encontra a sua justificativa na sua função de desenvolvimento cultural e econômico, não obstante o fato de esse direito exclusivo ser um elemento de rigidez dentro do sistema”[32].
Dessa forma, o Direito deve se harmonizar com os anseios sociais para que seu exercício não resulte numa prática abusiva. Guilherme Carboni salienta que “houve uma mudança de função do direito de autor: de mecanismo de estímulo à produção intelectual, ele passou a representar uma poderosa ferramenta da indústria dos bens intelectuais para a apropriação da informação enquanto mercadoria”[33].
Denis Barbosa prossegue no mesmo entendimento:
(...) um sistema de restrições ao acesso à informação e a cultura seria aceitável enquanto atender adequadamente os propósitos de estimular o investimento criativo; quando deixa aberto outros canais relevante de expressão coletiva; e enquanto o equilíbrio entre os dois interesses em confronto evita agravar a desigualdade em que a restrição cai sobre os vários grupos na sociedade, e se exercita em favor da expressão de pessoas que não tem outras formas mais elaboradas ou mais dispendiosas de comunicar suas idéias e receber informação e cultura[34].
Assim, num Estado social que em vez de meramente controlar a sociedade, mas sim direcioná-la[35], tais proposições devem ser atendidas. Nessa finalidade, Carboni propõe:
Se, no mundo globalizado, uma das considerações sobre o modo das políticas culturais é a garantia da possibilidade de um maior número possível de pessoas participar do processo cultural na qualidade de criadores, a estrutura do sistema do direito de autor tem de ser construída de forma a incentivar e não, a inibir esse processo[36].
As tensões expostas podem ser harmonizadas com a implementação da proposta acima e com base na função social da proteção intelectual que deve ser a busca de “equilíbrio entre o interesse público e o privado, sempre tendo a proteção intelectual como um ‘meio’ para se chegar ao desenvolvimento tecnológico, social e cultural, ao invés de ser considerada como um ‘fim em si mesma’”[37].
Tal assertiva já é consagrada em algumas legislações e documentos de intenção, contudo, nem sempre a aplicação se dá de maneira eficaz. Como exemplo de legislação que preconiza a proteção intelectual como meio e não como um fim em si mesma é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seu Artigo XXVII dispõe:
1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.
2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.
Outra legislação que também preconiza a proteção intelectual como meio é a Constituição dos Estados Unidos da América, que dispõe em seu Art. 1º, seção 8:
Será da competência do Congresso:
(...)
Promover o progresso da ciência e das artes úteis, garantindo, por tempo limitado, aos autores e inventores o direito exclusivo aos seus escritos ou descobertas;
Igualmente, o ADPIC (Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados Ao Comércio, também conhecido na sigla TRIPS - Agreement on Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights) expressa ser seu objetivo a difusão da função social da proteção intelectual, em seu Artigo 7:
A proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológico e de uma forma conducente ao bem-estar social econômico e a um equilíbrio entre direitos e obrigações.
Além disso, a Agenda do Desenvolvimento para a Organização Mundial da Propriedade Intelectual de 2007[38], reforça a aplicação do Artigo 7 do ADPIC, reproduzindo integralmente esse artigo entre seus propósitos.
Todavia, ainda que nem todas as legislações preconizem de maneira mais adequada a função social da proteção intelectual, refletindo em sua natureza jurídica, não se poderia a priori discriminá-la como injusta, pois a proteção intelectual é também um direito de todos (na condição de potenciais autores) e uma forma de garantia ao autor de se amparar contra o uso ilegítimo. Entretanto, igualmente não se poderia discriminar toda utilização sem autorização como uso ilegítimo, pois o uso justificado “com base em evidente interesse público, principalmente em matéria de educação, cultura e investigação científica”[39] é o que demonstra a necessidade de haver limitações à proteção intelectual a fim de que não haja óbice ao desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico.
Compreensivelmente, ante a complementaridade entre domínio público e proteção intelectual, se observa que o fundamento da proteção exclusiva é disposta na proporção inversa sobre o amplo benefício social, de modo que, o domínio público se fundamenta no favorecimento da sociedade após o império individual do autor.
3 EFEITOS DO DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL
Os efeitos do domínio público resultam da não incidência da proteção intelectual quanto aos direitos patrimoniais. Desse modo, cessa-se a exclusividade e liberam-se ao público os direitos de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica, deixando de ser necessária a autorização para utilizar essas obras em quaisquer modalidades.
Assim, fica facultado a qualquer interessado publicar qualquer obra que tenha entrado em domínio público, sem necessidade de prévia autorização, ou necessidade de remuneração a quem quer que seja por tal feito.
Todavia, tais efeitos do domínio público não podem ser tomados como absolutos. Na verdade, a legislação de cada país (mesmo os membros de convenções internacionais) tem autonomia para disciplinar o domínio público. Por essa divergência James Boyle chega a afirmar que “conceitos de domínio público apresentam-se na mesma variação de premissas e nas mesmas diferenças analíticas que o conceito de propriedade”[40].
Entretanto, é certo que o domínio público não atinge os direitos morais (também chamados de extrapatrimoniais) notadamente quanto à paternidade e integridade das obras. Assim, caberá ao Estado a defesa dos direitos morais. Rodrigo Moraes rechaça: “Vale dizer que uma obra caída em domínio público não consiste em res nullius (coisa sem dono). Precisa, portanto, de zelo, já que reflete não somente a personalidade do autor falecido como, também, representa a memória cultural de um povo”[41].
Assim, o domínio público não acomete a proteção autoral a respeito da autoria, pois um autor da Idade Média continua a sê-lo até hoje. Entretanto, há incerteza sobre a duração dos direitos morais. Dessa forma, Hammes propõe algumas reflexões:
Uma vez que é frequente dizer-se que o direito patrimonial é limitado e o direito moral inalienável e irrenunciável, somos levados a pensar que este último é ilimitado no tempo. Efetivamente não são poucos os que dizem que o direito moral é perpétuo. Mesmo morto há mais de 670 anos, não deixa de ser verdade que Dante Alighieri continua sendo o autor até hoje (...) A ideia de um direito moral de autor perpétuo é sedutora. Nem por isso será perpétuo. A Convenção de Berna admite que as faculdades de ordem moral podem ir além da duração post mortem do direito patrimonial (inclusive a perpetuidade). Por mais sedutora que seja a ideia da perpetuidade, isso não nos autoriza a afirmá-la (...) Não é a mesma coisa um fato histórico ser uma verdade, hoje e sempre, e um direito durar sempre. Um direito tem sua existência, e sua duração está prevista em lei. Depois acaba. Um fato histórico um dia começou, mas não tem data para terminar[42].
De qualquer forma, é claro que o domínio público não incide sobre a esfera dos direitos morais, cabendo ao Estado essa defesa sob a finalidade de preservação do patrimônio histórico e cultural. Rodrigo Moraes propõe uma delimitação ainda mais específica:
Após a morte do autor, portanto, pode-se afirmar que se perpetuam tão-somente os direitos morais à paternidade e à integridade. O direito moral ao arrependimento, por exemplo, extingue-se com a morte do autor. Só este, em vida, pode se arrepender de sua obra e exigir sua retirada de circulação. Falecendo, a faculdade é extinta[43].
Entretanto, algumas legislações preconizam a perpetuidade dos direitos morais, como relata Rodrigo Moraes:
Algumas leis dispõem expressamente sobre a perpetuidade dos direitos morais, como a boliviana (Lei n. 1322/1992, art. 14), a colombiana (Lei n. 23/1982, art. 30), a costarriquenha (Lei n. 6683/1981, art. 14), a dominicana (Lei n. 65/2000, art. 17), a francesa (Código da Propriedade Intelectual, art. L121-1) a paraguaia (Lei n. 1328/1998, art. 17) e a peruana (Decreto Legislativo n. 822/1996, art. 21).
Todavia, a dita “proteção” dos direitos morais precisa ser relativizada, conforme Eliane Abrão aponta:
Se a finalidade do direito autoral é a de devolver à coletividade o uso e gozo da obra, não se admite seja esse uso obstado pelo Estado, se não quanto à primeira forma de publicação da obra. Sob pena de grave cerceamento à liberdade de expressão, as transformações da obra original, respeitado o devido crédito, não podem ser consideradas violações à integridade dela. (...) não estará exercendo legitimamente o Estado sua função se considerar a dramatização do texto, ou qualquer outra releitura, violadora de sua integridade. Portanto, a integridade ficará restrita à forma original da publicação da obra, estando fora do alcance do Estado suas transformações e adaptações[44].
Num entendimento mais progressista, há até a defesa do chamado “plágio criativo”, Ângela Kretschmann explica:
O chamado ‘plágio criativo’ teria antecedentes ancestrais, pois Shakespeare buscava material para suas peças em obras de Ovídio e Chaucer, em lendas italianas e crônicas históricas inglesas, entre outras várias fontes. E assim, se fala de Pascal, e do próprio Dan Brown. Não se pode confundir, entretanto, inspiração em uma idéia, com plágio. E plágio criativo seria uma forma muito mal designada para indicar o que seria uma tendência inclusive valorizada pelo pós modernismo, porque realmente enfatiza a paródia[45].
De qualquer forma, o apelidado “plágio criativo” se trata da utilização sem autorização do titular exclusivo da proteção autoral. Todavia, tal manifestação ocorre devido à falta de estímulo ao acesso do domínio público.
Na medida em que o domínio público é encarado somente como a oposição à proteção autoral e enquanto os níveis de proteção são frequentemente majorados, manifestações que procuram relativizar as violações aos direitos autorais podem até ser vistas com naturalidade.
Contudo, o justo equilíbrio e acesso ao público devem ser medidas que tanto estabilizem a proteção exclusiva do Direito Autoral, quando mecanismos que promovam a inclusão pública para aproximação das conquistas artísticas, culturais e científicas preconizadas pelo Domínio Público.
4 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL
A História do direito autoral relacionada ao domínio público remontam no direito positivo nos idos do século XVIII. Entretanto, a História do direito autoral tem origem muito antes da sua positivação legal. Conforme relata Fragoso:
Já no século VI a.C., na Grécia, um renomado poeta, de nome Teógnis (...) criou um sinal identificativo de suas obras, sendo este um predecessor da chamada ‘menção de reserva’, que só viria a aparecer como previsão legal de garantia de autoria e proteção da obra 25 séculos após[46].
Dessa forma, criada costumeiramente a identificação do autor, relacionando este com a sua própria obra surge a autoria, contudo, os direitos oriundos dessa prática ainda precisaram se desenvolver, como ocorreu na sua evolução.
Ascensão clarifica “os bens intelectuais estiveram no domínio público ao longo de quase toda a história da humanidade, sem suscitar a menor questão. A criação de exclusivos sobre bens intelectuais só surge com a Idade Moderna”[47].
Assim, conclui Machado que “o autor é uma herança de pelo menos cinco séculos de história da arte. A autoria não esteve presente ao longo de toda a história da cultura humana, ela é datada historicamente”[48].
Muito embora, “na consciência de seus titulares, os direitos morais antecedem aos patrimoniais, estes precedem àqueles no que se refere à disciplina legal”[49]. Enquanto isso, “as obras eram regidas pelas leis de propriedade material e o autor de uma obra (como manuscrito, escultura ou pintura) era considerado o proprietário de um objeto material que podia ser vendido a uma outra pessoa”[50].
De fato, o Direito de Autor positivado é resultado do avanço tecnológico originado pela máquina de impressão, substituindo os escribas que reproduziam manualmente os escritos. Contudo, o Direito de Autor não foi reconhecido imediatamente, pois preliminarmente o direito que se originou foi o dos editores proprietários das máquinas de imprensa que obtiveram privilégios de exclusividade na impressão das obras da época, obtendo um monopólio de editorial.
É importante salientar, em especial para marcar posição em relação aos que consideram os privilégios do editor um verdadeiro direito de autor, que privilégios nada mais eram do que um direito de natureza econômica, não autoral, destinado a garantir sua origem econômica, conforme Compagnon, sendo utilizados, inclusive, para o controle das vendas pelos livreiros, um instrumento político e, também, de censura[51].
Portanto, sob a finalidade de ordem pública, surgem os direitos de privilégios do editor, que sob a análise jurídica atual em nada se assemelham ao direito de autor. Carboni sintetiza a origem “o direito de autor não nasceu como um direito de propriedade, mas como uma política do governo para concessão de um monopólio bastante restrito voltado à comercialização temporária de determinadas criações intelectuais”[52].
Assim, a concessão de monopólio vigorou desde os idos do século XV e perdurou por séculos:
Em 1618, os privilégios da França mantinham-se apenas para as obras novas ou cuja publicação ainda não ocorrera, enquanto que para os livros já publicados eram reputados como sob o domínio público, e a renovação do privilégio somente incidia quando houvesse o aumento de, pelo menos, um quarto no tamanho da obra; ainda, uma decisão judicial superior de 1671 abole os privilégios para as obras de autores antigos, estabelecendo como tais aqueles mortos antes do ano de 1479[53].
Moraes infere que “por volta do século XVII, tanto editores como autores ainda não eram titulares de qualquer direito. Apenas havia a certeza de que não lhes seria imposta concorrência naquela atividade”[54].
Todavia, merece reflexão que esse direito dos editores refletiu diretamente no domínio público, pois os privilégios de monopólio concedidos a esse apesar de não se relacionarem com a natureza jurídica do direito de autor, se relacionam latu sensu com o domínio público, haja vista, que o acesso e exploração públicos são restringidos pela exclusividade de monopólio da concessão. Entretanto, tal relação é de direito real que é desafeiçoada ao direito autoral.
No entanto, apesar da disparidade jurídica entre o monopólio dos editores e o direito autoral, o surgimento do primeiro propiciou o avanço do segundo, ainda que tardiamente. Assim, em 1710 a Rainha Ana da Inglaterra positiva a primeira norma jurídica a reconhecer os direitos autorais. Denominado Statute of Anne esse diploma legal outorgou o direito de exploração exclusiva aos autores pelo prazo de 14 anos, originando o copyright. “Todavia, o privilégio de impressão ainda não protegia com eficácia os autores. Era bastante comum a cessão total dos direitos patrimoniais e editoras”[55].
Entretanto, foi na França que se lançaram as bases para o Direito de Autor de concepção latina, no final daquele mesmo século XVIII. Moraes contextualiza “após a Tomada da Bastilha, todos os privilégios de autores e editores, que representavam um entrave à liberdade econômica defendida pelos burgueses, foram abolidos”[56].
Assim, sob os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade que a exclusividade da proteção intelectual progrediu.
A França revolucionária reconheceu o Direito Autoral como propriedade, e não mais como privilégio concedido pela Coroa. O fundamento do direito deixou de ser uma questionável concessão do Estado (benevolência do soberano). A proteção passou a ser considerada fruto da própria criação intelectual: ‘a mais sagrada, a mais legítima, a mais inatacável e a mais pessoal de todas as propriedades’” como proclamou um deputado francês[57].
“Os princípios históricos e norteadores dos direitos autorais e do copyright foram enormemente alargados, afastando-se da noção de proteção a criadores de obras do espírito, com finalidades estéticas e de entretenimento, para receber obras nascidas e destinadas a outros fins, unicamente interessadas no privilégio erga omnes”[58].
Desse modo, avançou a positivação da exclusividade autoral que se propagou globalmente nas legislações nacionais no mundo e posteriormente em âmbito internacional por meio de Convenções e Tratados internacionais. “O Direito de Autor, no âmbito internacional, surgiu como fruto do esforço dos países mais desenvolvidos na produção de obras artísticas e literárias, com a intenção de garantir aos seus autores nacionais a proteção internacional”[59].
Entre as Covenções Internacionais está a Convenção Internacional para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas celebrada em Berna, Suíça, em 1886 vigente até hoje (embora revisada algumas vezes). Tal documento é de tal importância não só para a proteção intelectual, mas para todo o Direito, como Eliane Abrão destaca:
Como precedeu à primeira grande guerra, o que equivale dizer que foi anterior à própria formação da Liga das Nações, embrião da ONU, chamou-se inicialmente essa Convenção de sistema da ‘União de Berna’, representando cada país ‘unionista’ uma espontânea adesão ao feixe de proteções jurídicas elencadas. Até então, os tratados e convenções internacionais tinham caráter eminentemente político ou militar, sendo Berna a pioneira a tratar de um assunto especificamente jurídico.
Entretanto, a positivação internacional não é sinônimo de desenvolvimento internacional, pois “países dominados acabaram recebendo a legislação autoral dos países colonizadores, sem qualquer contribuição quanto a uma ‘consciência’ do direito de autor”[60]. Assim, “foram sendo baixadas, nos países africanos, normas sobre direito de autor, muito antes de outros aspectos mais importantes da convivência humana”[61].
Eliane Abrão assevera: “Os princípios históricos e norteadores dos direitos autorais e do copyright foram enormemente alargados, afastando-se da noção de proteção a criadores de obras do espírito, com finalidades estéticas e de entretenimento, para receber obras nascidas e destinadas a outros fins, unicamente interessadas no privilégio erga omnes”[62]
Consequentemente, se estabilizaram dois sistemas jurídicos sobre a exclusividade dos direitos intelectuais: o Direito de Autor (Droit d´Auteur ) e o Copyright:
Os dois sistemas de direito autoral mais importantes do Ocidente encontram-se relacionados na origem: a Inglaterra do século XVI produziu uma tecnologia jurídica (copyright) cujo objetivo era proteger o poder real e os editores e, em oposição, a França do século XVIII produziu uma tecnologia jurídica cujo objetivo era proteger os autores (droit d´auteur)[63].
Nos idos de 1950, os dois sistemas se enfrentaram em nível internacional, devido ao crescimento político e econômico pós-guerra dos Estados Unidos da América do Norte, e cujo sistema de leis internas não se adequava aos princípios da Convenção Internacional de Berna para a proteção das obras literárias, artísticas e científicas. Berna consagrava os direitos do autor, em detrimento dos direitos dos chamados difusores das obras do espírito, indústrias fonográficas e cinematográficas, e de radiodifusão, em sua grande maioria estabelecidas na Inglaterra e nos Estados Unidos[64].
Assim, por meio de convenções, acordos bilaterais e tratados internacionais a exclusividade da proteção intelectual adquire cada vez mais adeptos. Surge, inclusive, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), existente até hoje. Contudo, ainda nem todos os mecanismos legais possuíam eficácia, pois não havia uma maneira de dar coercibilidade no exercício da proteção intelectual.
Desse modo, durante a Rodada Uruguai do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade - Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) estabeleceu-se o ADPIC (Acordo sobre Aspectos da Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio – também chamado de TRIPS Agreement of Trade-Related Aspects of Intellectual Rights) que contém mecanismos de aplicabilidade das normas de proteção intelectual aos Estados membros.
A situação altera-se radicalmente com a constituição da OMC, cujo acordo contém o TRIPS. Isso porque os países têm que aceitar o TRIPS para participarem do comércio internacional. Como se torna quase impossível a um país não participar do comércio internacional, a submissão às regras do TRIPS é fatal, seja qual for o seu conteúdo[65].
O TRIPS também promove uma conversão comum aos sistemas de proteção intelectual “tornando, assim, possível a aglutinação de diversos sistemas jurídicos em torno dele, regulando os aspectos coincidentes e afastando os colidentes com os sistemas anglo-saxões”[66].
Em função dessas correções de rota internacionais, nova onda de leis especiais varreram o mundo todo, e, no Brasil, promulgou-se uma nova lei de direitos autorais (9.610/98), uma nova lei de programa de computador (9.609/98) e uma nova lei de propriedade industrial (9.279/96)[67].
Em progresso, os direitos intelectuais tem avançado em seus estudos que cada vez mais se consolidam entre os direitos fundamentais, em estímulo a criatividade e inovação, bem como viabilizando o acesso público tanto das obras amparadas pela proteção autoral, por meio de limitações a essa proteção, quanto pela preservação do domínio público. Criando-se responsabilidades para cada direito que resultará finalmente na harmonia entre a exclusividade da proteção autoral e a inclusão do acesso estimulada pelo domínio público.
5 DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL BRASILEIRO
O domínio público no Brasil é definido pela legislação da forma negativa, contudo, essa conceituação está em conformidade com a definição da OMPI (apresentada no Capítulo 1).
Assim, a Lei brasileira de direitos autorais (Lei 9.610/98) estipula da seguinte forma o domínio público:
Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público:
I - as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores;
II - as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais.
Portanto, de modo taxativo a legislação brasileira preconiza as obras que pertencem ao domínio público. Muito embora, a Lei 9.610/98 contenha disposições diferentes em relação ao domínio público da Lei anterior que regulava a matéria (Lei 5.988/73).
Assim, concernem ao domínio público as obras que decorerram o prazo de proteção patrimonial, além dos autores falecidos que não deixaram sucessores e também dos autores que são desconhecidos, excetuando-se a proteção aos conhecimentos étnicos e tradicionais.
Sobre a decorrência de prazo, essa é a regra comum da proteção intelectual que é o resultado do fim do direito exclusivo do titular, para que ao fim a exclusividade cesse e todo o público tenha liberdade de acesso à obra.
Quanto aos autores que não deixam sucessores, se trata da lógica coerente que após a morte do autor a obra pertença ao domínio público, haja vista, a falta de titulares para a exclusividade. Nas palavras de Otávio Afonso “No Brasil e na maior parte dos países, a falta de sucessores determina a queda da obra em domínio público”[68].
E em relação aos autores desconhecidos, também se trata do raciocínio de falta de titular legítimo para fruir da exclusividade, entretanto, nesse caso, se ressalva a proteção aos conhecimentos étnicos e tradicionais. Nessa parte há diferente redação da lei anterior que condicionava que a criação fosse transmitida pela tradição oral, enquanto que a lei atual não dispõe esse condicionamento e portanto, todas as obras que tenham autoria desconhecida pertencem ao domínio público, mantidas as ressalvas da lei. Assim, Fragoso especifica:
(...) se refere aos ditos ‘conhecimentos étnicos e tradicionais’, tratamos de obras em geral, sejam de tradição oral ou não, e de obras ligadas a certas comunidades, como aos indígenas e aos quilombolas, não expressamente referidos na lei. ‘Conhecimentos’ é um termo vago e não respeita a uma obra específica – e a lei protege as obras, acima de tudo. Com toda certeza, deve a lei estar se referindo a conhecimentos tradicionais ligados às manifestações artísticas de tais comunidades, como a música, a dança e as artes figurativas, como o desenho e a pintura em cerâmica, a escultura etc[69].
Deste modo, no caso de haver desconhecimento específico sobre a autoria de determinada manifestação étnica ou tradicional, caberá ao Estado a proteção desse direito difuso. Fragoso consolida:
Cabendo ao Estado a proteção de tais direitos difusos, ao Ministério Público Federal ou Estadual e a qualquer cidadão – não sendo demais lembrar, também, a existência de pequenos grupos esparsos, ainda sobreviventes em áreas rurais ou litorâneas do Brasil, como pescadores e catadores de caranguejos, não identificados como quilombolas ou indígenas mas com fortes raízes culturais[70].
Da mesma forma, Lisboa conclui:
Embora o conceito de folclore não seja jurídico, as obras oriundas da tradição cultural de um povo ou grupo étnico devem ser protegidas como direitos intelectuais. No sistema do ordenamento jurídico brasileiro, é mais apropriado considerar a obra de folclore objeto de um direito autoral cujo titular é desconhecido. A defesa da obra de folclore, no entanto, é de titularidade da sociedade de sua origem. Tudo que for folclore nacional deve ser protegido, bastando a existência da criação de espírito, tornando-se desnecessário o suporte mecânico, dadas as peculiaridades do direito em questão[71].
Portanto, as manifestações sujeitas a proteção situam-se fora do domínio público, sendo que acolhe-se na proteção do Estado e dependendo da etnia, pode haver um órgão especializado para assistência relativa à utilização dessas manifestações, como é o caso da FUNAI. Já no caso de não haver um órgão especializado, a própria comunidade será titular e a ela caberá a legitimidade ativa para reclamar essa proteção. Nesse aspecto, Fragoso detalha:
(...) não se fala em domínio público, já que, por uma presunção legal, autores são todos os membros da comunidade (qualificados como os ‘titulares consuetudinários’), cabendo à comunidade (enquanto dela houver descendentes), ou a seus representantes, a prerrogativa de contratar as autorizações autorais[72].
Entretanto, é claro que existem manifestações sem autoria conhecida e que não estão vinculados a qualquer grupo por terem se perdido sua origem, assim, nesse caso se trata de domínio público, como explicita Fragoso:
Como nos situar diante de certos cânticos e danças tradicionais, não identificados com grupos étnicos, como quilombolas e indígenas, ou seja, sem aqueles referidos ‘titulares consuetudinários’? Tais ‘conhecimentos’ também são tradicionais e não estão vinculados a este ou àquele grupo – ou há muito perderam sua origem no tempo -, mesmo que estejam vinculados a uma determinada região, a uma vila ou a uma determinada cidade. Falamos de manifestações populares, seja na dança e na música; na cerâmica; na pintura; nas cantorias etc. Não temos dúvidas de que estão em domínio público, por mais tradicionais que sejam, em especial, porque de autoria e, principalmente, de titularidade desconhecida[73].
Todavia, há outro caso não explicito de domínio público na atual legislação de direitos autorais brasileira, ao contrário da lei anterior. Afinal, na legislação anterior, expressamente, pertencia ao domínio público as obras publicadas em países que não participem de tratados a que tenha aderido o Brasil, e que não confiram aos autores de obras aqui publicadas o mesmo tratamento que dispensam aos autores sob sua jurisdição (Art. 48, III da Lei 5.988/73).
A atual legislação não deixou a explicitação naquele artigo, mas em seu Art. 2º:
Art. 2º Os estrangeiros domiciliados no exterior gozarão da proteção assegurada nos acordos, convenções e tratados em vigor no Brasil.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto nesta Lei aos nacionais ou pessoas domiciliadas em país que assegure aos brasileiros ou pessoas domiciliadas no Brasil a reciprocidade na proteção aos direitos autorais ou equivalentes.
Dessa forma, é possível a contrariu sensu observar que as obras de autores publicadas em país que não faça parte das convenções e tratados ratificados pelo Brasil e que também não tenha acordo de reciprocidade com o Brasil, se consideram em domínio público, pois se não haverá império legal que sujeite a obra à proteção de exclusividade, a falta de incidência da proteção resultaria na mesma condição de domínio público.
Ascensão, ainda que comentasse sobre a lei anterior, chega a mesma conclusão, porém evidencia-se que as premissas é que dão credibilidade ao seu silogismo e não o fato de que se tratava da lei anterior. Assim, ele afirma: “se o autor for estrangeiro residente no estrangeiro, só haverá necessidade de autorização se estiver protegido por tratado ou for abrangido pelo princípio da reciprocidade, caso contrário a obra cairá no domínio público”[74].
Outra questão que circunda o domínio público no Brasil foi a vigência do domínio público remunerado previsto pela lei anterior de direitos autorais (Lei 5.988/73). Assim, apesar da obra sair da esfera de exclusividade do titular, tal obra não podia ser utilizada sem autorização de um órgão estatal. Contudo, em razão de uma fundamentação adequada o sistema foi duramente criticado: “Como por definição não há direito de autor, essa remuneração só pode ter natureza de imposto”[75]. Assim, a Lei 7.123/83 revogou a disposição legal do domínio público remunerado e esse instituto sequer chegou a vigorar.
6 DIREITO INTERNACIONAL E DOMÍNIO PÚBLICO DO DIREITO AUTORAL
A proteção intelectual deve ser estudada sob o prisma do Direito Internacional em razão de seu objeto. Picard ressalta a importância consciência:
A produção do espírito, objeto do direito intelectual, destina-se naturalmente a expandir-se para todos os lugares onde vai a civilização. Ela é divisível ao infinito, mas permanece sempre uma. O autor de um livro, o inventor de um processo industrial, aquele que produziu uma obra musical ou uma obra suscetível de ser divulgada por não importa qual arte ou desenho, certamente não trabalhou unicamente para seu pequeno mundo, no qual ele vive, nem mesmo para a nação à qual ele pertence. Seu desejo, sua esperança, é de ver seu trabalho se expandir. Sua intensidade não se perde, mas, ao se expandir, adquire um vigor novo. O que, para uma coisa material, implicaria em impossibilidade ou destruição, se torna, para uma coisa intelectual, uma oportunidade de força e de celebridade[76].
Aliás, a proteção intelectual sem a perspectiva do Direito Internacional evidenciava lacunas, como demonstra Kohler:
No século passado, a proteção apresentava ainda grandes lacunas, e a maior delas era o exagero na idéia de nacionalidade. Este exagero deveria ser vencido pela idéia de que as nações civilizadas formam uma grande Sociedade chamada a executar, por seus esforços comuns, as grandes tarefas da cultura humana. A primeira condição desta comunidade de povos é a máxima de que o direito do espírito é reconhecido, não somente pela nação à qual pertence o homem criador, mas por todos os Estados. Qualquer um que tenha criado uma obra do pensamento deve ter seu direito em todos os lugares do mundo, porque ele não é somente membro da nação – ele é membro da humanidade... Nos últimos tempos, o direito de autor fez grandes progressos. A ideia do direito sobre as ideias, sobre as coisas imateriais, se aperfeiçoou. Reconheceu-se, ao lado do direito imaterial, o direito moral da personalidade, e se procurou colocar as bases desses direitos[77].
Portanto, a essência da proteção intelectual impõe a internacionalização desse direito, conforme Maristela Basso aponta:
a propriedade intelectual não conhece barreiras, já que os limites não foram feitos para as criações da inteligência (criações imateriais). Essas, pela sua própria natureza, não se submetem a contenções e tem uma tendência irresistível a cruzar fronteiras[78].
Em diapasão, Bodenhausen citado por Maristela Basso, reverbera que “uma proteção neste domínio, limitada a um território nacional, teria, por conseguinte, um valor muito relativo e aqui, mais que em qualquer domínio, uma proteção internacional é necessária”[79].
Surge ante essa imprescindibilidade em relação à proteção autoral a Convenção de Berna relativa à proteção das obras literárias e artísticas (que determina que sob o termo “obras literárias e artísticas” se resguardam todas as produções do domínio literário, científico e artístico, qualquer que seja o modo ou a forma de expressão).
Assim, há a consolidação de uma União entre os Estados membros, que resulta na aplicação da Convenção dentro desse território unionista. Assim, Thais Castelli afirma:
(...) resultando união dos Estados membros com o fim comum consistente na proteção mínima uniforme de direitos de propriedade intelectual e no reconhecimento de direitos adquiridos dos cidadãos unionistas merecedores desta proteção no território da União (...) que consiste no próprio território dos diversos Estados contratantes[80].
A Convenção de Berna representa a evolução do reconhecimento internacional quanto à proteção autoral. Além do que, apesar de suas revisões, é um documento que possui validade até hoje com a instituição de princípios importantes sobre a proteção autoral.
Entretanto, em razão da falta de coercibilidade da Convenção de Berna, surgiu o ADPIC (ou TRIPS) que também instituiu outros princípios de proteção intelectual, inclusive em relação à propriedade industrial. Entretanto, as disposições do TRIPS são “dirigidas aos Estados, no sentido de criarem em suas leis nacionais o que se considera mínimo de proteção e não diretamente a seus particulares”[81].
Além dos princípios que norteiam a aplicação dos mecanismos legais, os Tratados Internacionais também preconizam critérios para resolução da lei a ser aplicável. Observa-se que tais critérios procuram da forma mais benéfica possível a abrangência dos autores para o aproveitamento de seus dispositivos. Os critérios instituem os mecanismos de aplicação de acordo com o autor ou em razão da obra.
Nas palavras de Bittar: “a Convenção aplica-se a autores de obras publicadas em países convenentes, alcançando-se os nacionais e os residentes habituais; quanto a obras publicadas fora da União, basta que seja residente habitual ou que a primeira publicação se faça em país da União”[82].
O critério pessoal distingue em razão da nacionalidade da pessoa (autor) e de sua residência habitual se o documento internacional lhe é aplicável. Assim, instituíram-se mecanismos de abrangência de autores mesmo que seus países de origem não sejam unionistas, pois assimila-se aos nacionais aqueles que tem sua residência habitual num país unionista, inclusive, estendendo a proteção caso se trate de produtor cinematográfico que tenha sede ou residência habitual em um dos países da União, em evidente benefício da classe autoral.
O outro critério aplicável se dá em razão da obra, considerando a sujeição à proteção especial de acordo com o lugar da publicação. Assim, mesmo que o autor não seja nacional de um país unionista e também não tenha residência habitual em país unionista, caso a obra seja publicada pela primeira vez ou simultaneamente em um país da União, este autor será protegido com relação a essa obra. Além disso, entende-se que a simultaneidade pode ter um lapso de 30 dias da primeira publicação. E ainda que as obras de arquitetura edificadas num país da União ou de obras de arte gráfica ou plástica incorporadas em um imóvel situado em um país da União são igualmente protegidos.
Tais critérios são de suma importância para o domínio público pois distinguem a respeito da incidência da proteção convencional, notadamente, em relação aos prazos de proteção.
Todavia, o dispositivo mais importante em relação ao domínio público é o Artigo 7/8 da Convenção de Berna. Tal dispositivo é um mecanismo de solução de controvérsias relativas ao prazo de proteção das obras intelectuais e determina que:
Em quaisquer casos, a duração será regulada pela lei do país em que a proteção for reclamada; entretanto, a menos que a legislação deste último país resolva de outra maneira, a referida proteção não excederá a duração fixada no país de origem da obra.
Assim, o preceito do referido Artigo, exclui a incidência de outras regras e princípios de Direito Internacional, a não ser (no caso expresso do próprio dispositivo) se a legislação do país em que a proteção for reclamada disponha de modo diferente, caso em que, a soberania deste será respeitada.
Tal assertiva prevalece ainda em relação a outros documentos internacionais, pois mesmo o TRIPS se subsuma à Convenção de Berna no tocante aos Arts. 1 a 21, conforme seu Art. 9.
Ascensão assevera a respeito da aplicação do Art. 7/8 da Convenção de Berna:
O art. 7/8, dispondo que a duração da proteção será regulada pela lei do país em que a proteção é reclamada, não deixa de estabelecer o princípio de que essa duração não excederá a fixada no país de origem da obra. Assim, os sucessores de nacional de país leste-europeu, em que a proteção se estenda apenas 30 anos pós-morte, não terão direito em Portugal a mais que essa duração de proteção, por aplicação combinada do art. 7/8 e do art. 64 CDADC[83].
Outrossim, não há que se cogitar a aplicação do Art. 5/2 da Convenção de Berna a respeito da independência da existência de proteção no país de origem das obras[84], pois nesse caso não faria sentido o legislador convencional ter legiferado em contrário a outro dispositivo, mesmo porque na verdade se trata de regra que trata a respeito do princípio do tratamento nacional, como se verá adiante.
Desse modo, analisaremos a seguir somente os princípios de direito internacional que se relacionam com o domínio público do direito autoral, notadamente, em consonância com o Artigo 7/8 da Convenção de Berna.
6.1 Princípio da proteção mínima
O princípio da proteção mínima foi instituído inicialmente na pela Convenção de Berna. Tratam-se de regras de direito material (conhecidos no anglicismo por standards mínimos), como Thais Castelli assevera:
(...) o estabelecimento de patamares mínimos, ou seja verdadeiras regras de direito material para a proteção da propriedade intelectual, que criam direitos e obrigações para o titular de propriedade intelectual, estabelece-se uma tentativa de harmonização das legislações internas que tratam da matéria, visando assegurar a proteção da propriedade intelectual com maior uniformidade entre os Estados e, conseqüentemente, diminuir sensíveis disparidades até então existentes[85].
Sob o mesmo entendimento, Maristela Basso demonstra o mérito fundamental do princípio da proteção mínima:
(...) o princípio da ‘proteção mínima’, aceito pelos Estados unionistas, abaixo do qual nenhuma legislação poderia ficar. Este, por si só, já é um resultado da mais alta importância. Decorre que a propriedade intelectual representou uma espécie de núcleo, de ponto de partida, de um verdadeiro sistema de direito internacional privado comum[86].
Tal princípio está diretamente relacionado com o domínio público, pois tais documentos internacionais preveem expressamente o prazo de proteção mínima das criações intelectuais. Assim, a Convenção de Berna estabelece em seu Artigo 7 diversas regras sobre o prazo de proteção, notadamente, o período de vida do autor acrescido de cinquenta anos post-mortem para a maioria das obras intelectuais (Artigo 7/1).
Contudo, ainda sobre as regras de prazo de proteção, a Convenção de Berna especifica a proteção mínima de cinquenta anos da realização de obra cinematográfica (Artigo 7/2) e de vinte e cinco anos para obras fotográficas e obras de artes aplicadas (Artigo 7/4)[87].
E em consagração que o prazo de proteção garantido é meramente o mínimo, expressamente a Convenção de Berna dispõe que seus membros têm a faculdade de conceder uma duração superior à preconizada na própria Convenção (Artigo 7/6).
O TRIPS igualmente prevê o prazo de proteção mínimo de cinquenta anos quando a proteção da obra não for calculada com base na vida de uma pessoa (Artigo 12).
Assim, infere-se genericamente que uma obra protegida pela Convenção de Berna só é aproveitada ao domínio público em pelo menos cinquenta anos após a morte do autor.
Contudo, deve haver consonância desse princípio com a regra do Art. 7/8 da própria Convenção de Berna, de modo que, a duração da exclusividade deve obedecer ao patamar mínimo preconizado pelo princípio da proteção mínima, mas esse prazo será regulado pela lei do país em que a proteção for reclamada e não excederá a duração fixada no país de origem da obra (a não ser que a legislação do país em que a proteção é reclamada resolva de outra maneira).
Portanto, o prazo de proteção internacional dos membros da Convenção de Berna deve ser minimamente de 50 anos da realização da obra (ou 50 anos após a morte do autor contados de 1 de janeiro do ano subseqüente ao de seu falecimento, em alguns casos). Porém, se entre os países houver prazo de proteção superior a esse, a não ser que o país em que a proteção é reclamada resolva de outra forma, a duração da proteção será regulada por este e não excederá a duração fixada no país de origem da obra. Identificando por meio desse raciocínio o prazo para liberação da obra em domínio público.
6.2 Princípio do Tratamento Nacional
O princípio do tratamento nacional está previsto tanto na Convenção de Berna (Art. 5/1) quanto no TRIPS (Art. 3/1) com a finalidade de assimilação do estrangeiro unionista ao nacional para a aplicação tanto das leis internas sem discriminação.
Esse é um princípio não discriminatório, como explicita Thais Castelli:
(...) o nacional de qualquer país da União que pretender obter a proteção legal de seu bem intelectual em outros Estados da União poderá fazê-lo em igual condição com o nacional destes Estados, i.e. submetendo-se às mesmas condições e requisitos impostos pela lei local e ao mesmo regime jurídico vigente para o gozo e exercício do direito (territorialidade das leis), sem que haja qualquer discriminação[88].
Desse modo, a lei aplicável é a do território onde se requer a proteção “trata-se, portanto, da aplicação da lei territorial de cada Estado para reger o exercício do direito de propriedade intelectual nos respectivos territórios, quer seja o titular aí nacional ou estrangeiro"[89].
A da proteção desse princípio especificamente em relação ao TRIPS, nos ensinamentos de Maristela Basso, “compreende os aspectos que afetem a existência, obtenção, abrangência, manutenção e aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual, bem como os aspectos relativos ao exercício dos direitos de propriedade intelectual de que trata especificamente o Acordo TRIPS.”[90]
Entretanto, tal princípio se subsuma ao Art. 7/8 da Convenção de Berna, de modo que ainda que a lei aplicável seja a do país em que a proteção é requerida, tal proteção não excederá a duração fixada no país de origem da obra (exceto no caso do país em que a proteção é requerida resolver de outra forma), beneficiando assim, a entrada de obras no domínio público.
Em complemento a solução de controvérsias, o próprio artigo que preconiza o princípio do tratamento nacional dispõe a respeito do prazo de proteção em benefício do domínio público, pois considera país de origem em se tratando de obras publicadas simultaneamente em vários países da União que concedam prazos de proteção diferentes, aquele dentre eles cuja lei conceda prazo de proteção menos extenso.
6.3 Princípio do Tratamento Unionista
O princípio do tratamento unionista está previsto tanto na Convenção de Berna (Art. 5/1 – parte final) e preconiza a aplicabilidade dos patamares mínimos da própria Convenção dentro do Território Unionista.
Conforme sintetiza Thais Castelli:
O princípio do tratamento unionista completa o princípio do tratamento nacional na medida que a simples assimilação do estrangeiro ao nacional não seria suficiente se não se garantisse patamares mínimos de proteção que diminuíssem as diferenças entre as leis nacionais sobre a matéria[91].
Portanto, a aplicação do princípio do tratamento unionista se dá em relação aos Estados-membros da Convenção de Berna que não adequaram suas legislações quanto aos patamares mínimos de proteção estipulados pela Convenção. Dessa forma, é possível invocar tal princípio a fim de se obter a garantia mínima preconizada por essa Convenção.
Sob o prisma do Direito Internacional, esse princípio visa a aplicação da extraterritorialidade das leis. Assim, Thais Castelli pormenoriza:
Trata-se de regras que, em sua maioria, irão reconhecer e atribuir efeitos jurídicos a atos praticados no exterior para fins de produção de efeitos jurídicos internos de modo a facilitar ou propiciar - ainda que de forma restrita e provisória, antes mesmo do prévio cumprimento das formalidades locais para aquisição de direito – a proteção da propriedade intelectual (...) no reconhecimento do direito adquirido (extraterritorialidade das leis)[92].
O princípio do tratamento unionista afeta o domínio público no mesmo efeito que o princípio da proteção mínima. Entretanto, é pelo princípio do tratamento unionista que se dá a aplicabilidade do princípio da proteção mínima.
6.4 Princípio da Nação mais Favorecida
O princípio da nação mais favorecida está previsto no Art. 4 do Acordo TRIPS que preconiza: “Com relação à proteção da propriedade intelectual, toda vantagem, favorecimento, privilégio ou imunidade que um Membro conceda aos nacionais de qualquer outro país será outorgada imediata e incondicionalmente aos nacionais de todos os demais Membros (...)”.
Assim, Maristela Basso reitera:
O campo de aplicação deste artigo é bastante amplo: todas as vantagens, favorecimentos, privilégios e imunidades que um Estado-Parte conceda aos nacionais de outro Estado-Parte serão automática e incondicionalmente estendidas aos nacionais dos demais Estados-Partes[93].
Contudo, tal princípio não incide em relação ao prazo para apuração de domínio público em razão da regra autônoma de proteção deste (Art. 7/8 da Convenção de Berna). Assim, ainda que haja um acordo bilateral entre Estados-membros do TRIPS a respeito de uma majoração sobre o período de incidência da proteção intelectual, tal majoração não será aproveitada aos demais Estados-Partes, pois a regra que trata sobre o prazo de proteção desvincula-se das demais, condicionando que o prazo de proteção não excederá a duração fixada no país de origem da obra, a não ser que a legislação do país em que a proteção é reclamada disponha de outra forma.
Tal entendimento pode ser retorquido, entretanto, sob a própria finalidade ao qual o Acordo TRIPS legifera (Art. 7 deste) preconiza:
A proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológico e de uma forma conducente ao bem-estar social econômico e a um equilíbrio entre direitos e obrigações (grifos nossos).
Assim, pode-se inferir que a majoração do prazo de proteção em benefício de somente um Estado-membro efetivamente não revela uma equidade, na medida em que favorece um desequilíbrio, mas tal desequilíbrio não é entre direitos e obrigações, pois os efeitos da permanência da proteção intelectual em favor somente de um Estado-membro não afetará os direitos e obrigações para com os demais. Todavia, pela via reversa, o aproveitamento da majoração de incidência da proteção intelectual em desfavor da esfera de alcance do domínio público, igualmente não manifestará uma contribuição para a promoção da inovação tecnológica e difusão de tecnologia, pois estar-se-á onerando toda a coletividade alheia ao acordo original, sem beneficiar o bem-estar social.
6.5 Princípio da Proteção Automática
O princípio da proteção automática está disposto na Convenção de Berna no Art. 5/2, que preconiza:
O gozo e o exercício desses direitos não estão subordinados a qualquer formalidade; este gozo e este exercício são independentes da existência de proteção no país de origem da obra. Por conseguinte, afora as estipulações da presente convenção, a extensão da proteção e os meios processuais garantidos ao autor para salvaguardar os seus direitos regulam-se exclusivamente pela legislação do país onde a proteção é reclamada.
Por esse princípio, excluem-se as necessidades de preenchimento de formalidades para a incidência da proteção intelectual. Bittar delineia:
Assim, os direitos autorais incidem desde a criação da obra, independentemente de qualquer registro, de menção de reserva, de depósito de exemplares ou qualquer outra providência administrativa (como sói acontecer, ao revés, nos sistemas formalistas, em que a proteção é condicionada ao prévio preenchimento de uma ou de algumas das providências citadas)[94].
Nessa medida, excluindo-se a formalização para incidência da proteção autoral, revela-se que o direito autoral é livre e independente de burocracias. Perlmutter alerta:
Há perigos da proteção intelectual ser transformada em um sistema de registo - como a marca ou a patente. Necessitaria que fosse um amplo registro porque a originalidade estaria desfocada a um baixo nível. Tal regime teria que ser administrado por uma burocracia como a patente e marca. Dessa forma, teríamos um efeito discriminatório em relação a justiça e equidade. Artistas e criadores correriam o risco de serem privados se não puderem arcar com os custos do registro. Em contrapartida, os principais meios conglomerados – as Disneys do mundo – seriam beneficiados porque facilmente conseguiriam arcar com o pagamento do registro, garantindo uma proteção perpétua. Além disso, a tendência internacional de direitos de autor é a eliminação de formalidades. Notadamente, os Estados Unidos tem removido os requisitos formais para a subsistência da proteção intelectual, em consonância com a Convenção de Berna[95].
E no mesmo sentido, Bittar atenta a respeito da natureza da proteção intelectual:
Nesse passo reside o ponto nodal da estrutura convencional de Berna: o do respeito aos aspectos pessoais do relacionamento do autor com a obra, que antepõe, portanto, a criação a qualquer outro título constitutivo de direitos, em consonância, aliás, com a própria natureza do Direito de Autor e a sua origem como direito essencial do homem[96].
Em relação ao domínio público, esse princípio diligencia para que não haja o descabimento de incidência da proteção intelectual pela mera questão de cumprimento de formalismos.
6.6 Princípio da Proteção Independente
O princípio da proteção independente igualmente ao princípio da proteção automática está preconizado no Art. 5/2 da Convenção de Berna e prossegue o entendimento daquele princípio. Se trata do trecho “esse gozo e esse exercício (dos direitos da Convenção) independem da existência da proteção no país de origem das obras”.
Logo, por esse princípio não se exige demonstração de proteção no país de origem, regendo-se a relação apenas perante o país em que o interessado reclama a proteção. Assim, Bittar ensina:
(...) assim, o sistema protetivo central da Convenção, o princípio libera o autor de prévia comprovação de proteção no país de origem. E mais: para além das estipulações da Convenção, o nível de amparo e os recursos serão definidos pelo direito interno do país em que se cogita da proteção[97].
Todavia, em relação ao domínio público, esse princípio não surte efeitos, haja vista que o prazo de duração da incidência de proteção intelectual se rege por mecanismo autônomo (Art. 7/8) e que inversamente a esse princípio, o prazo de proteção no país de origem é condição essencial para apuração do período de proteção.
7 OUTROS TRATADOS INTERNACIONAIS SOBRE DOMÍNIO PÚBLICO
Além da Convenção de Berna e do TRIPS outros documentos internacionais atingem o domínio público, porém a incidência não é tão refletida no Brasil, como veremos.
7.1 Convenção Universal sobre Direito de Autor
A Convenção Universal sobre Direito de Autor (chamada na origem de Universal Copyright Convention) teve sua última revisão conjuntamente com a Convenção de Berna em 24 de julho de 1971. Foi por meio dessa convenção que os Estados Unidos obtiveram os instrumentos que desejavam para se adequarem aos princípios de Berna, sem a eles se submeter, e sem abrir mão do princípio do copyright.
O reconhecimento e a proteção das obras dos autores de países pertencente à Convenção Universal faz-se sem formalidades. Segundo seus termos, tais formalidades estarão supridas se, desde a primeira publicação da obra, todos os seus exemplares publicados licitamente contiverem o símbolo ©, de copyright (Artigo III) – que funciona como menção de reserva – acompanhado do nome do titular do direito de autor e do ano da primeira publicação[98].
Entretanto, em relação ao domínio público seus efeitos praticamente não incidem em razão da Convenção de Berna ter amparado de modo mais abrangente a proteção autoral. É que da mesma forma que a Convenção de Berna, a Convenção Universal também determina que a questão do prazo de proteção deve ser resolvida pela legislação em que ela seja reclamada (Art. IV). Por conseguinte, o prazo mínimo de proteção é inferior ao de Berna, pois a Convenção Universal reserva como mínimo o prazo de 25 anos post-mortem, ou pelo menos 25 anos de proteção quando o período não é contado com base na vida do autor, ou no caso de obras fotográficas o prazo de pelo menos 10 anos. Contudo, tal proteção mínima tem prazos de amparo mais extensos em Berna.
Além disso, a Convenção Universal não abrange todas as obras.
O Art. IV, por seu turno, determina o alcance do sentido de publicação, caracterizado pela “reprodução material e a colocação, à disposição do público, de exemplares da obra que permitam lê-la ou tomar dela conhecimento visual”. É um sentido restrito limitado à reprodução física, praticamente, de livros e obras que possam ser lidas e outras obras visualmente perceptíveis (como reprodução de obras de artes plásticas e outras sob suporte audiovisual, o que exclui a exibição cinematográfica e a reprodução fonográfica)[99].
7.2 Tratado da OMPI sobre Direito de Autor
Sob a finalidade de ampliação da proteção concedida aos autores que não sejam contrárias às disposições da Convenção de Berna, conforme o Art. 20 da própria Convenção de Berna, foi ajustado esse Tratado, conhecido pela sigla WCT de seu nome em inglês, WIPO Copyright Treaty. Esse Tratado cuida de questões sobre internet como resposta aos desafios lançados pelas novas tecnologias digitais.
Entretanto, em relação ao domínio público não houve incidência significativa, exceto por seu art. 9º que exclui a discriminação sobre o prazo de proteção das obras fotográficas (Art. 7/4 de Berna que estipula a reserva ao menos 25 anos), sem contudo, indicar qual o prazo mínimo. Todavia, se se trata de um acordo para ampliação da proteção autoral, conclui-se que o prazo de proteção dessa é igual ao das demais obras. Já Fragoso interpreta de modo mais avançado:
O que concluímos é que a não-aplicação do artigo 7.4 de Berna se refere à não-necessidade de se regular a matéria nas legislações nacionais daqueles países que não as têm reguladas, ou se aplique para aqueles países onde haja formas de proteção muito específicas para a fotografia, como as tem os EUA[100].
Tal Tratado é conhecido doutrinariamente por Berna-plus e TRIPS-plus por conterem disposições mais protecionistas que o amparo desses documentos. Porém em razão da falta de coercibilidade para adesão, esta não tem sido muito numerosa, de modo que o Brasil também ainda não aderiu aos seus ditames.
7.3 Directiva 93/98/CEE do Conselho, de 29 de Outubro de 1993
A Diretiva 93/98 da Comunidade Econômica Européia dispõe sobre a harmonização sobre o prazo de proteção[101] e tem relação direta com o domínio público. Assim, por meio dessa Diretiva harmonizou-se dentro da Comunidade Européia o prazo de proteção de direitos autorais em 70 anos após a morte do autor. Plínio Cabral delineia:
A duração dos direitos autorais, após a morte do autor, variava de país para país, predominando o período de 50 anos, como acontecia na Bélgica, Grécia, Itália, Portugal e Países Baixos. Já na Espanha o período era de 60 anos e, na França, para obras musicais, de 70 anos e, para outras obras, 50 anos. Na Alemanha, 70 anos[102].
Assim, com a majoração da proteção autoral muitas obras tornaram a receber a incidência do direito autoral, por essa razão, essa mesma Diretiva também dispõe em seu último considerando (27º) que os direitos de autor que forem restabelecidos não implicarão em pagamentos por parte das pessoas que tenham explorado de boa-fé obras que nessa época eram do domínio público.
Conforme o citado considerando não se aplica esse reestabelecimento da proteção autoral àqueles que de boa-fé tenham explorado obras que estavam em domínio público. Contudo, não permite que ocorra novo aproveitamento.
Editar uma obra caída em ‘domínio público’ é uma faculdade para a qual não se exige qualquer formalidade. Mas, no momento em que a obra deixa essa condição e sai do “domínio público”, ela já não está mais disponível. Tolera-se, apenas, a conclusão de negócios cujos frutos haviam-se iniciado numa condição determinada e que, por sua natureza, vão completar-se em outra situação. Não poderia ser de outra forma[103].
Essa alteração tem efeitos inclusive fora da Comunidade Européia. “Isso aconteceu com vários autores, entre eles Fernando Pessoa, exemplo mais conhecido porque afetou editores de língua portuguesa”[104].
Tal efeito no Brasil ocorreu em razão de alteração da lei portuguesa que previa a proteção de 50 anos após a morte do autor, sendo que a referida Diretiva passou a reger tal proteção por 70 anos após a morte do autor. Assim, observa-se que mesmo naquela época, os editores brasileiros interpretavam acertadamente a legislação internacional, pois, em vez de considerarem meramente o prazo da lei brasileira (que igualmente é 70 anos após a morte do autor), utilizavam a contagem da lei portuguesa, de modo que a obra efetivamente se encontrava em domínio público, e outra não poderia ser a interpretação, haja vista que o Art. 7/8 da Convenção de Berna determina que a proteção não excederá a duração fixada no país de origem da obra, exceto se a legislação do país em que a proteção for reclamada resolva de outra maneira. Como a lei brasileira não explicita a esse respeito, segue-se a disposição específica de Berna, que se subsuma ao princípio do tratamento nacional.
8 PECULIARIDADES DE ALGUMAS LEGISLAÇÕES SOBRE DOMÍNIO PUBLICO
Nem todos complexos legislativos definem domínio público, algumas sequer o mencionam e quando o fazem, na maioria da vezes, é sob o intuito de reduzi-lo. Todavia, a fim de ilustrar a respeito de algumas disparidades e demonstrar a soberania de poder legislativo que os Estados têm sobre o domínio público ainda que participem de Tratados Internacionais:
8.1 Estados Unidos da América
Os Estados Unidos fazem parte dos Tratados Berna e TRIPS entre muitos outros Tratados sobre direitos intelectuais. Fazem parte do sistema de Copyright, ou seja, direito de cópia em vez de direitos autorais e no final da dos anos 90 promulgaram o Ato denominado de Copyright Term Extension que em homenagem ao falecido Senador proponente também é oficialmente chamada de Sonny Bono Copyright Term Extension Act e pejorativamente foi apelidada de Mickey Mouse Protection Act.
Referido Ato que se convalidou em lei (Public Law 105-298)[105] determina um acréscimo considerável sobre o prazo de proteção de obras intelectuais. Chegando até os 120 anos. Referida Lei foi contestada no caso conhecido como “Eldred vs. Ashcroft” (Eric Eldred, é um editor de internet e foi o demandante principal da ação judicial e John Ashcroft foi na época o Advogado Geral da República estadunidense). Assim, a ação entre outros argumentos alega que a extensão do prazo de proteção tem sido frequentemente estendido em violação ao Art. 1º da Constituição que visa:
Promover o progresso da ciência e das artes úteis, garantindo, por tempo limitado, aos autores e inventores o direito exclusivo aos seus escritos ou descobertas;
Desse modo, a extensão da proteção estaria em desacordo com a própria Constituição. O demandante teve o advogado Lawrence Lessig (percursor das licenças Creative Commons) e a defesa contou com a assistência da Motion Picture Association of America (MPAA), Recording Industry Association of America (RIAA) e American Society of Composers, Authors and Publishers (ASCAP) entre outros.
O caso foi julgado pela Suprema Corte estadunidense em 15 de janeiro de 2003 decidindo que o Ato é constitucional por 7 a 2 votos, baseando-se exatamente nos predecedentes de extensão dos prazos protetores de direitos intelectuais. Além do que o aumento da expectativa de vida da população requer adaptações legislativas e que de qualquer forma é de competência do Congresso para o cumprimento do Art. 1º da Constituição, que haja a limitação temporal, o que está contemplado pois o limite não é perpétuo, e que portanto, qualquer limite estipulado pelo Congresso pode ser considerado constitucional.
Derrotado pela decisão, Eric Eldred no mesmo ano de 2003 move esforços para que seja aprovada uma Lei denominada de “Public Domain Enhanced Act” (Ato de Aprimoramento do Domínio Público) que faria com que os efeitos da Sonny Bono Copyright Term Extension Act se restringissem apenas às obras que tenham sido registradas na Biblioteca do Congresso (órgão oficial de registro do copyright).
Todavia, pode-se observar com evidência a soberania dos Estados quanto a indicação de prazo de proteção. Contudo, é necessário mencionar que se trata de Lei que surte efeitos somente nos Estados Unidos, haja vista que a Convenção de Berna no Art. 7/8 determina que a duração será regulada pela lei do país em que for reclamada a proteção, mas que não excederá a duração fixada no país de origem da obra, exceto se a legislação do país em que a proteção for reclamada resolva de outra maneira.
8.2 França
A França, igualmente aos Estados Unidos faz parte dos Tratados Berna e TRIPS entre muitos outros Tratados sobre direitos intelectuais. Entretanto, em oposição ao Copyright é precursora do Droit d´Auteur e dispõe de maneira curiosa sobre o domínio público.
O Artigo L.123-10 do Código de Propriedade Intelectual determina que além do prazo de proteção ordinário (70 anos post-mortem) serão alargados pelo período de 30 anos quando o autor, compositor ou artista tenha morrido pela França. Nesse caso, para que haja a dilatação do prazo, deve a certidão de óbito atestar que expressamente a “morte pela França” que será decretado pelo Ministro responsável pela cultura a fim de que o prazo seja estendido aos herdeiros ou dependentes do falecido.
Dessa forma, dá-se uma ampliação à regra regular de prazo de proteção por razões políticas implementadas por lei. Porém, inclusive no caso do alargamento citado, tal regra terá validade somente na França, haja vista o autônomo preceito que rege as relações internacionais preconizado no Art. 7/8 da Convenção de Berna que determina a lei aplicável seja a do país em que a proteção é requerida e tal proteção não excederá a duração fixada no país de origem da obra (exceto no caso do país em que a proteção é requerida resolver de outra forma).
CONCLUSÃO
O Domínio Público é o direito de acesso ao Direito Autoral. Enquanto o Direito Autoral é uma proteção exclusiva do autor ou titular, o Domínio Público é o direito inclusivo do público. Todavia, esses direitos são complementares, pois suas fundamentações são recíprocas. Assim, mutuamente devem se compensar nas razões de suas existências a fim de que seu equilíbrio seja aferido na harmonia da acessibilidade.
Contudo, a desvirtuação entre os institutos não tem refletido no equilíbrio e compensação fundamentais de suas razões. Tem-se asseverado a proteção exclusiva do Direito Autoral e não se fomentado a característica inclusiva o Domínio Público. Pode ser que o sistema efetivamente se assente com o nível de proteção exclusivo atual, todavia o estímulo à sagração do Domínio Público igualmente contribuirá para essa estabilização.
Dessa forma, os mecanismos legais para o acesso precisam também se estabilizar. Afinal critérios claros devem estar regulando a sociedade para que seu ordenamento e direcionamento sejam hábeis ao bem-estar social.
Assim, o Domínio Público também se sujeita à responsabilidade própria que é a de preservação do patrimônio humano em busca da harmonia entre os direitos exclusivos e inclusivos. Logo, cabe à Propriedade Intelectual esse equilíbrio constituindo-se como um Direito Intelectual e fundamental humano que deve servir para desmistificar a abrangência, conteúdo, características e demais peculiaridades do Direito exclusivo Autoral em favor do desenvolvimento inclusivo da acessibilidade pública.
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