Sumário: 1. Introdução; 2. Alguns esclarecimentos sobre a responsabilidade civil; 3. Responsabilidade civil objetiva e teoria do risco do empreendimento; 4. Conceito e caracterização do dano moral nos SACs; 5. Função da Indenização; Referências.
1. INTRODUÇÃO
Atualmente vivenciamos uma era de proliferação dos contratos em massa que, segundo a nova tendência, fortificam a neutralização da figura do contratante, flexibilizando a “autonomia da vontade” em razão de alguns princípios que enaltecem o caráter social e econômico do contrato, tais quais a boa-fé objetiva, eqüidade material e função social do contrato.
Os SACs, objeto de estudo do presente trabalho, possuem um papel de extrema relevância nesse cenário, tendo em vista que são eles os guias desse relacionamento, podendo ser terceirizados ou parte da própria estrutura empresarial. Diante desta relevância, importante se ressaltar a responsabilidade da eficiência de seus serviços, pois caso contrário, há uma impossibilidade de se buscar o atendimento de reclamações, dúvidas e sugestões do consumidor, configurando, conseqüentemente, violação de direitos e afronta à dignidade da pessoa humana.
Neste momento já é possível compreender que o objeto dos SACs não é diretamente o produto ou serviço posto no mercado, e sim uma relação derivada que diz respeito às informações ou serviços auxiliares àqueles objetos de contrato entre o consumidor e o fornecedor.
Destarte, os transtornos, situações desagradáveis e morosidade das relações com os SACs, seja por atendimento pessoal, seja por call center ou correio eletrônico, merecem grande atenção por parte do poder público, uma vez que este tem a obrigação de zelar pelo equilíbrio econômico-social e intervir nas relações particulares que desigualem a posição dos contratantes.[1]
2. ALGUNS ESCLARECIMENTOS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL
Um dos temas de maior abrangência no direito positivo diz respeito à responsabilidade, estando presente em todas as áreas jurídicas (penal, civil, administrativa, etc.). Esta, por sua vez, pressupõe um dever jurídico que, violado, faz nascer um novo dever de caráter sucessivo.[2]
No âmbito cível, a tutela da responsabilidade está prevista no art. 927 e seguintes do Código Civil, que criaram uma modalidade conseqüente de obrigação: a de reparar. Tal responsabilização, contudo, deve obedecer a alguns requisitos criados pela evolução legislativa, sobretudo ao conceito de “ato ilícito” elencado no art. 186 do mesmo diploma legal.[3]
Antes de se iniciar qualquer escorço acerca da responsabilidade civil, é indispensável ter conhecimento do conceito e características do que seja ato ilícito, pois este, em regra, é o fato gerador daquela. É pacífica a doutrina ao entender que para ensejar o dever sucessivo de reparar, devem coexistir uma conduta, um prejuízo suportado injustamente, o respectivo nexo causal e a culpa (lato sensu). A principal discussão diz respeito ao aspecto volitivo da conduta, tendo em vista que alguns autores entendem a culpa como integrante da ação ou omissão, enquanto outros acolhem a tese de sê-la um elemento autônomo. No tocante especificamente à responsabilidade, salienta-se que a tendência jurisprudencial é cada vez mais marcante no sentido de alargar seu conceito, já tendo criado a “culpa presumida”, “teoria do risco” e “responsabilidade objetiva”.
Urge registrar, ainda, que a regra geral acerca do tema da responsabilidade civil é ser subjetiva, pois independente da localização da culpa (como elemento acidental da conduta ou autônomo), sempre será necessária sua presença, sob pena de não lhe ser reconhecida a obrigatoriedade indenizatória. Assim, nos casos de responsabilidade civil objetiva, ou seja, naqueles em que se dispensa o elemento subjetivo (art. 927, parágrafo único, CC/2002), apesar de haver atualmente uma maior abrangência e aplicabilidade, deve haver sempre prévia e expressa disposição legal que o preveja.
3. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA E TEORIA DO RISCO DO EMPREENDIMENTO
Partindo-se diretamente do Código Civil para se entender a responsabilidade objetiva no tocante às matérias de consumo, mais especificamente aos SACs, sem se prender ao seu aspecto evolutivo, o parágrafo único do art. 927, já citado, estabelece em quais ocasiões a regra da responsabilidade subjetiva será excetuada: o primeiro caso ocorre em face de previsão legal expressa, onde o legislador, intentando não deixar margem à interpretação extensiva, resolveu assim atribuir; o segundo diz respeito a atividades normalmente exercidas que por sua natureza impliquem riscos aos direitos de outrem.
Independente do critério aplicável ao caso, quando se refere à responsabilidade civil objetiva, o elemento “culpa” é indiferente, criando-se um aspecto binário no evento (dano e autoria). A tarefa do magistrado, portanto, se reduz à verificação da causalidade e à aplicação das normas referentes a esse tipo de responsabilidade.[4]
A letra da lei é de clareza hialina no tocante à primeira hipótese, todavia quando a “atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”, não parece uma definição bastante evidente.
Ao prescrever o termo atividade de risco, houve uma grande disposição de poder aos magistrados quando da aplicação do dispositivo normativo ao caso concreto, cabendo-lhes, juntamente com a doutrina, definir a mens legis. Pode-se perceber, ainda, que ao estabelecer “atividade normalmente exercida”, houve uma tentativa de passar a idéia de rotina ou repetição. Nesta ótica, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona admitem que “o exercício dessa atividade de risco pressupõe ainda a busca de um determinado proveito, em geral de natureza econômica”.[5]
Atividade, portanto, possui sentido comercial, ou seja, com fito de perfazer lucro. Caso o legislador tivesse a intenção de aplicar a responsabilidade objetiva a qualquer atividade de cunho não econômico, teria fixado outros parâmetros, como o fez ao conceituar o ato ilícito (ação ou omissão voluntária – art. 186, CC/2002)
Superado o conceito de atividade no que tange à responsabilidade objetiva, resta identificar o “risco” para, só então, concluir todas as hipóteses de exclusão da culpa na responsabilidade civil.
Alguns autores defensores da teoria do risco integral destacam-na mediatamente como meio de repartir o prejuízo pecuniário com todos os membros da coletividade, sem sobrecarregar excessivamente um só sujeito. No caso das relações de consumo, tal divisão se faz através da fixação de preços, onde o fornecedor responsável inclui no preço de seus produtos ou serviços todo custo de sua atividade, inclusive as eventuais indenizações.
É certo, contudo, que nunca prosperou no Brasil essa teoria, mormente no tocante ao Direito Privado. Na Europa foi desenvolvida para equilibrar o cenário de desigualdade econômica existente, mas também só obteve melhores resultados no âmbito do direito ambiental.
Diante desse impasse na definição do que seria “risco” para o direito civil brasileiro, eclodiu uma teoria contrária à teoria da culpa (responsabilidade civil subjetiva). Essa teoria chamada de “risco criado” ou “risco do empreendimento” ocorre quando “alguém põe em funcionamento uma qualquer atividade” e “responde pelos eventos danosos que esta atividade gera para os indivíduos”.[6]
Exemplificando os argumentos tecidos, segue parte da ementa do acórdão relatado pelo Desembargador Tasso Caubi Soares Delabary:
apelação cível. responsabilidade civil. dano moral. agressão em evento. show. “aldeia atlântida”. responsabilidade objetiva da promotora do evento. aplicação do cdc. culpa exclusiva de terceiro configurada. Estando o caso dos autos sob a égide do CDC, que consagrou a teoria do risco criado (não risco integral), nos termos do artigo 14, é admitida a excludente da culpa exclusiva de terceiro, o que se configura na hipótese dos autos em que o autor foi atingido por um tijolo no rosto durante o evento. Ademais, restou demonstrado que a organização do show não negligenciou na contratação de seguranças particular, além de ter contatado previamente com a Brigada Militar. (TJRS, Apelação Cível 70016662223, Rel. Des. Tasso Caubi Soares Delabary, 9ª Câmara, julgado em 13.12.2006)
Distinguindo as teorias do “risco integral” e do “risco criado” com base na dicção do artigo 14 do CDC[7], observa-se que o ordenamento jurídico brasileiro admite causas excludentes da responsabilização como o caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima/terceiros, inadmitindo a integralidade do risco da atividade[8].
Neste ponto, ilustrativo trazer à baila a lição doutrinária de Carlos Roberto Gonçalves, citado por Rui Stoco[9]:
Na teoria do risco se subsume a idéia do exercício de atividade perigosa como fundamento da responsabilidade civil. O exercício de atividade que possa oferecer algum perigo representa um risco, que o agente assume, de ser obrigado a ressarcir os danos que venham a resultar a terceiros dessa atividade. Na legislação civil italiana encontra-se o exercício da atividade perigosa como fundamento da responsabilidade civil, com a inversão do ônus da prova. O agente, no caso, só se exonerará da responsabilidade se provar que adotou todas as medidas idôneas para evitar o dano. Disposições semelhantes são encontradas nos Códigos Civis mexicano, espanhol, português, libanês e outros.(g.n)
Por fim, conclui-se pela interpretação do artigo 6°, VI, do CDC, sempre em consonância com o parágrafo único do art. 927 do CC/02, uma vez que o fornecedor pela sua própria natureza implica risco aos consumidores, principalmente na órbita moral, em decorrência da afronta à dignidade da pessoa humana. Mais uma vez, acompanhando Rui Stoco, “com relação aos direitos do consumidor, impera a responsabilidade objetiva”. [10]
Em se tratando de SACs, sabendo-se que o relacionamento entre o fornecedor e o consumidor é regulado pelas normas de responsabilidade objetiva, necessário se traçar breves comentários acerca do dano moral, tendo em vista que o dano material se manifesta mais intensamente na relação principal de consumo (serviços ou bens), ocorrendo com os SACs (relação derivada) perdas patrimoniais “irrisórias” no plano individual (custo de ligação telefônica, despesas com deslocamento a um posto de atendimento ou envio de cartas).
4. CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DO DANO MORAL NOS SACS
Definir dano moral é tarefa subjetiva que encontra discussões intermináveis na doutrina brasileira. Muitos autores, se valendo de um conceito negativo e, por conseguinte, mais fácil de absorver, reconhecem o dano moral como todo aquele que não lesione direito de conteúdo pecuniário. Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona chegam a afirmar uma melhor uniformização do tema se fosse tratado por “dano não-material”.[11]
Entretanto, não soa legítima a definição de algo por seu oposto, pois lhe resta uma vinculação muitas vezes indesejada no ponto de vista prático. No que concerne ao dano moral em antagonismo ao patrimonial, este primeiro perde sua identidade e força normativa à medida que se passe a admitir interpretações extensivas acerca do que esteja redutível a dinheiro e comercializável (material). Neste diapasão, é mais razoável identificar seus próprios elementos e caracterizá-lo positivamente.
Yussef Said Cahali entende-o como a “privação ou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz, a tranqüilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade física, a honra e os demais sagrados afetos”.[12] Pode-se, de tal modo, ser evidenciada a violação desses direitos personalíssimos na dor, angústia, sofrimento, desprestígio, desconsideração social, descrédito à reputação, desequilíbrio na normalidade psíquica, desgaste psicológico e nas situações de constrangimento em geral.[13]
Melhor ponto de vista sobre o conceito positivo de dano moral é lecionado por Rui Stoco ao afirmar que “o que se chama de ‘dano moral’ é, não um desfalque no patrimônio, nem mesmo a situação onde só dificilmente se poderia avaliar o desfalque, senão a situação onde não há ou não se verifica diminuição alguma”. [14] Ora, se existe diminuição de alguma coisa, há de encontrar, ainda que em suas minúcias, uma mensuração econômica do prejuízo e, conseqüentemente, perda patrimonial. O entendimento de moralidade deve, portanto, recair sobre valores e direitos personalíssimos fundados nos baldrames da dignidade humana. Por esta razão, se entende o caráter indenizatório do dano moral não como uma verdadeira indenização, mas como uma compensação.
Como observado anteriormente, muitos são os questionamentos e reclamações a respeito na inoperância do SACs, violando, em várias oportunidades, direitos personalíssimos do consumidor, sobretudo aqueles com respaldo direto da dignidade da pessoa humana. O simples fato de se ter acionado um SAC, sujeitando-se ao atendimento de diversos funcionários para explicar-lhes a situação, não gera lesividade a valores tutelados pelo direito de forma a autorizar indenização pecuniária, entretanto, a verificação da inconsistência estrutural desses canais de informação em face do pouco investimento do fornecedor, sobrepujando os direitos individuais homogêneos em detrimento da busca pelo lucro, configura descarado desrespeito aos sujeitos de direito com especial proteção pelo CDC.
Devidamente explicado em momento anterior, os SACs são canais de informação disponibilizados ao consumidor, concretizando uma relação paralela àquela principal, que objetiva primordialmente o fácil acesso às informações e consecução de direitos a ela inerente.[15] A falha ou deficiência – intencional ou não (responsabilidade objetiva) – desses serviços gera, em massa, uma violação ou impossibilidade de exercício de direitos pessoais. No âmbito individual é mais árdua a tarefa de se identificar o dano moral, vez que não relega vestígios de sua ocorrência e dificulta sua comprovação de existência (pelo consumidor) ou inexistência (pelo fornecedor).
Assim, permeiam na zona de penumbra as lesões ocasionadas nas relações acompanhadas pelos SACs, posto que indefinido se aquilatar o marco divisório psicológico entre um mero aborrecimento e uma dor, angústia ou sofrimento. O entendimento jurídico é uniforme na postura de não se vulgarizar o dano moral, somente cabendo indenizações nos casos de real violação a direitos pessoais, inexistindo lesões de ordem moral quando embasadas em dissabores ou atribulações experimentadas diuturnamente, pois não configuram prejuízo atentatório à dignidade humana.[16]
Portanto, não obstante a previsão legal de inversão do ônus da prova e diante da possibilidade de se presumir o dano moral pelas circunstâncias que o caso concreto ofereça, uma boa alternativa sugerida à demonstração das repetitivas condutas contrárias à dignidade da pessoa humana e conseqüente convencimento do Juízo quanto à configuração do prejuízo de ordem moral, é o ingresso de ação indenizatória em que várias pessoas tenham vivenciado o mesmo fato.