A decisão que suspendeu o mandato de Cunha é duplamente equivocada. O mais ameno foi a introdução da tutela (super)satisfativa no processo penal, antecipando efeitos sequer possíveis no provimento definitivo. Afinal, a jurisprudência atual do STF condiciona a perda do mandato, em caso de condenação criminal transitada em julgado, à deliberação parlamentar (Cf. AP 396 QO/RO, rel. Min. Carmen Lúcia). O segundo erro, mais grave, fundamenta a criação de norma especial diante da crise política atual, o que é insustentável mesmo na doutrina de Carl Schimit, o jurista do Terceiro Reich, o excepcional teórico do estado de exceção.
A doutrina acentua a distinção entre tutela cautelar e satisfativa no paralelismo respectivo: temporariedade/provisoriedade. O próprio Calamandrei (citado por Fux, em abono à decisão de Teori) esclarece: temporário é, simplesmente, aquilo que não dura para sempre, aquilo que, independentemente da superveniência de outro evento, tem por si mesmo duração limitada; provisório, é, por sua vez, aquilo que é estabelecido para durar até quando não sobrevenha um evento sucessivo, em vista e na espera do qual o estado de provisoriedade permanece no ínterim[i]. O exemplo elucidativo é de Lopes da Costa. Enquanto os andaimes de construção são temporários (cautelares), pois ficam apenas até a conclusão do prédio (instrumentalidade), a barraca do homem dos sertões é provisória (satisfativa), e permanece até melhor habitação[ii].
No caso de Cunha, a retirada dos efeitos do mandato, em contraposição ao próprio cargo eletivo, não torna o provimento cautelar. Tampouco houve antecipação dos efeitos da tutela, o que ocorreria com o decreto de prisão preventiva, efeito possível (ao) do provimento final. Houve, a rigor, a superantecipação dos efeitos da tutela. Embora tergiversada pela alcunha de cautelar, a decisão aludida construiu prédio inclusive diferente do arquitetado, sem andaimes e tapumes, em adaptação do exemplo de Lopes da Costa. Cunha – de vilão à vítima –, fenômeno que só o “house of cards” à brasileira é capaz de proporcionar.
Mesmo diante do NCPC – que golpeou a autonomia do processo cautelar –, ainda sobrevive a distinção entre tutela satisfativa/cautelar. A tutela de evidência, exemplo de satisfativa, prescinde de dano (art. 311 do NCPC). Em contraposição, a tutela de urgência, de cunho eminentemente cautelar, pressupõe o risco de dano e/ou ao resultado útil do processo (art. 300).
No âmbito penal, porém, é impossível a antecipação dos efeitos da tutela, mesmo em favor do réu (necessidade do processo penal). A tese da prescrição virtual, que propugnava antecipar a própria absolvição diante da pena concreta vislumbrada, não foi admitida pelo STJ (Enunciado 438 da Súmula). A antecipação absolutória visaria antecipar futuro previsível. Embora rejeitada, por falta de amparo legal, a tese é prenhe de racionalidade. No caso Cunha, porém, anteciparam a impossibilidade do provimento final, atentado majorado por ser a liminar desfavorável ao acusado.
Mais grave foi utilizar a opinião pública como fundamento do julgado, em demagogia (decisionismo) proclamada. O Ministro Barroso chegou ao extremo de citar homem comum do povo, que teria dito não querer sair do Brasil, mas apenas aspirar a país mais digno, com governantes menos corruptos. A aliança com o povo é, de fato, crucial à legitimidade do eleito. É a lei da gravitação histórica, tão real quanto a Lei de Newton (Ortega Y Gasset[iii]). O problema não é a contingência entre a decisão e a aspiração popular. E sim a condição necessária de que isso ocorra, por conta do “vazio normativo” e a situação excepcional de crise política. Submissão desse naipe – embora necessária para legitimar regime autoritário –, nem na doutrina base da Alemanha Nazista.
Carl Schmitt cria sua teoria no vazio normativo, no estado de exceção. Para o autor, com razão, diante de norma explícita, pouco importa ser positivista, jusnaturalista ou enquadrar-se em outro arquétipo. Aplica-se puerilmente a conseqüência ao suposto. Na normalidade inexiste raciocínio jurídico, senão dedutivo do tipo “se...,então...”. Só no vazio normativo é possível a sinapse jurídica. Dito de outro modo: apenas o estado de exceção possibilita a existência do jurista.
Arguto, Schmitt não defendeu a tese de que o vazio normativo possibilitaria o arbítrio do julgador. Seria defender o regime ditatorial, às escâncaras, revelando segredo incompatível com a arte da dominação do povo. Defendeu o institucionalismo-voluntarista[iv], um contraponto ao idealismo lógico-sistemático e o realismo puro e simples, proclamando que o decisionismo ampare-se ao menos no raciocínio institucional, ainda que se trate de instituição eminentemente jurídica, como as cautelares. Se Carl fosse advogado do povo, certamente defenderia o “nonsense” da retirada prematura de Cunha, por atentar contra os princípios da instrumentalidade e temporariedade, imanentes às cautelares. Rescaldo que impossibilita dar no limiar o impossível de conseguir no provimento final. Até a ditadura tem limite teórico para que não feneça no poder, conquanto não seja insubmissa ao reclamo popular, sob pena de derrocada.
O Supremo Tribunal Federal, porém, adotou o decisionismo puro, abertamente, travestindo o clamor popular em juridiquês galhardo, entrecortado com pomposos discursos moralistas. De Corte contramajoritária a supermajoritarismo. Pôs-se à prova o que na teoria remava em direção contrária. A tese: não é o vago princípio da separação dos poderes que aflige a Corte na tomada decisões difíceis, senão estar contra o “povo”, atuar contra a força bruta da opinião pública. Por opinião do povo entenda-se a de uma minoria. Ora pois. A maioria dos homens delega o mais personalíssimo: o pensamento.
A despeito disso, há estímulo para lutar. Tão árduo como digladiar-se com moinhos de vento é atentar contra as opiniões do povo e do especialista. Fortes porque sibilam na mesma direção, embora com sopros enviesados de técnica e rudeza. Pouco importa. Aliado de peso, Carnelutti – o mesmo crítico da tutela cautelar antecipatória – perenizou: “a essência, a dificuldade, a nobreza da advocacia é esta: sentar-se sobre o último degrau da escada ao lado do acusado”[v].
Notas
[i] CALAMANDREI, Piero. Introdução ao estudo sistemático dos procedimentos cautelares. Campinas: Servanda, 2000, p 25-26.
[ii] COSTA, Alfredo Araújo Lopes da. Medidas preventivas: medidas preparatórias, medidas de conservação. São Paulo: Sugestões Literárias, 1966, p. 10.
[iii] GASSET, José Ortega Y. A rebelião das massas. São Paulo: Biblioteca do Exército, 2006, p. 132.
[iv] MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do direito.São Paulo: São Paulo: Saraiva, p. 214.
[v] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Servanda, 1995, p. 97.