Cunha usou seu poder até o último dia para evitar seu afastamento da presidência da Câmara (Folha); sequer deixou tramitar os projetos que disciplinariam o afastamento do presidente que se torna réu em processos criminais no STF. Os projetos começam a tramitar na Casa em um prazo médio de 8 dias. Quatro projetos contrários aos seus interesses estavam paralisados (no dia 7/5/16) há 82, 60, 54 e 32 dias. Nem o carimbo para tramitá-los foi colocado.
O que fazer com um deputado prepotente e poderoso que tem uma folha de antecedentes repleta de desmandos e de corrupção e que não deixa seus pares evoluírem na apuração das suas responsabilidades? Quem adota a delinquência e a impunidade como estilo de vida, pisando sobre tudo e sobre todos, chegando a patamares gritantemente indignantes, tem que encontrar limites, sob pena de o Estado já licencioso alcançar sua decomposição absoluta.
O STF afastou Cunha do exercício do seu mandato de deputado (decisão unânime), porque, diante do travamento do Legislativo, foi acuado e se viu compelido a fazer isso. A cada dia que passa surgem novas contas secretas de Eduardo Cunha em bancos suíços, norte-americanos e israelenses. Cada extrato bancário que se divulga é um tapa na cara dos brasileiros indignados e humilhados com suas estrepolias e mentiras. Devemos ver todo esse espetáculo de horror sem fazer nada? Que tipo de sangue corre pelas veias das autoridades judiciais? Claro que a vingança não é conciliável com a Magistratura, mas do rigor da lei e da Justiça os corruptos comprovados não podem escapar, sobretudo quem usa o cargo público para delinquir e garantir sua impunidade. Se a Justiça não atuar nesses casos escabrosos, cresce mais ainda o descrédito no Estado licencioso (plutocrata, demagogo e populista, tirânico, cleptocrata, anômico e anáxico). A mesma descrença se incrementará se a Câmara não cassar o seu mandato (diante de tantas provas dos seus ilícitos).
Não houve invasão das funções típicas do Legislativo (fazer leis com eficácia erga omnes). O STF não está autorizado a praticar esse tipo de ativismo judicial. No caso Cunha, excepcionalíssimo, foi legítima e necessária a intervenção judicial para salvaguardar (como medida de urgência "urgentíssima") a coisa pública dos incontáveis ilícitos de que ele é capaz de perpetrar (tendo em vista seus antecedentes e os privilégios que lhe proporcionam a função parlamentar). A função atípica do Legislativo de punir seus membros malfeitores, quando negligenciada (ou quando encontra obstáculos intransponíveis), obriga o Judiciário a tomar as providências cabíveis, seja para suprir a omissão, seja para combater o travamento criminoso dos trabalhos investigativos.
A verdade é que, mesmo nos Estados democráticos sofrivelmente imperfeitos (como o nosso), não existem situações de irresponsabilidade. A corrupção sistêmica, que revela profunda podridão moral e ética, deve ser combatida, desde logo, dentro de cada instituição. Se ela não funciona ou funciona mal, legitima a intervenção do Judiciário. Quando esse fenômeno ocorre dentro do próprio Judiciário, legitima a intervenção do CNJ. Há meses a Câmara está tentando responsabilizar Cunha (o mais impopular político do País) pelas suas mentiras e falcatruas, que irritam cada vez mais a população (80% querem sua aniquilação política), uma das poucas unanimidades no país polarizado. Teori enfatizou, mostrando inúmeros fatos com detalhes nauseabundos, que ele não tem “a mínima condição moral” de ocupar a função parlamentar. É um desqualificado que, em lugar de servir o público, serve-se do cargo público para seu enriquecimento pessoal.
Quando os partidos políticos não contam com credibilidade nem mesmo para selecionar com critério seus membros; quando a instituição legislativa, mergulhada em abismal crise de representatividade e ética, divide-se em bancadas de acordo com seus “financiadores”, degradando-se a dignidade do Parlamento, torna-se imperiosa, em casos excepcionais, a ação prudente e moralizadora do Judiciário, que, no mínimo, evidencia que não existe no país a categoria do soberano acima da lei, que possa abastecer com dinheiro alheio suas contas secretas em vários pontos do planeta, nadando impunemente nas águas da demagogia, do fanatismo religioso, da indiferença e da insolidariedade.
O argumento ad terrorem utilizado (para censurar o STF) no sentido de que então qualquer parlamentar poderia agora ser afastado das suas funções, não pode ter acolhimento, porque os remédios amargos só podem ser usados para enfermidades graves. Não se usa a quimioterapia para curar um resfriado. E no dia em que um ministro do STF, num acesso de loucura, fizer isso, estará ele sujeito ao “impeachment”, devendo ser cassado das suas funções por não saber honrá-las.
A suspensão da função pública, incluindo a do parlamentar, não está prevista na Constituição, mas está na lei (CPP, art. 319, VI). Toda medida restritiva de direitos, no entanto, só pode ser adotada com caráter excepcional. E esse foi o caso. Foi um passo gigante do STF, mas é nas tempestades que conhecemos os bons marinheiros. A eliminação da vida pública de um corrupto, assim como a reparação dos danos que ele causa, dentro do Estado de Direito, reduz a licenciosidade do Estado (bem como a petulância do clube da cleptocracia). É uma medida dura, porém necessária, para quem despreza a Justiça e conspurca a (já deficiente) democracia. Nenhum corrupto tem direito à impunidade. Nossa república não pode ser uma “comuna de intocáveis”, as instituições devem ser respeitadas. Os poderes são independentes entre si, não, porém, da Constituição (como disse o ministro Teori).