RESUMO
Até o último dia 6 de julho, data da promulgação da Lei 13.146/2015, vigia no ordenamento brasileiro o paradigma da incapacidade, conferindo às pessoas com deficiência tratamento discriminatório, em injustificável mitigação dos seus direitos da personalidade e de sua própria dignidade. O Estatuto da Pessoa com Deficiência, contudo, promoveu verdadeira mudança paradigmática, conferindo à curatela caráter excepcional e extraordinário. A dignidade da pessoa humana, princípio máximo do Estado Democrático de Direito passou a ser enaltecida, retirando a pessoa com deficiência da condição de incapaz. Inaugurou-se, assim, o paradigma da dignidade-liberdade, destinado a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais pelas pessoas com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. A curatela, agora restrita aos direitos de caráter patrimonial, não mais alcança nem restringe os direitos de família, do trabalho, eleitoral, de ser testemunha e de obter documentos oficias de interesse da pessoa com deficiência.
PALAVRAS-CHAVE: Dignidade-liberdade; Estatuto da Pessoa com Deficiência; Curatela.
1. INTRODUÇÃO
De acordo com o Código Civil Brasileiro de 2002, a maioridade dar-se-á aos 18 anos, havendo a presunção legal de que, com tal idade, o indivíduo adquire a capacidade plena para a prática de atos da vida civil. Os artigos 3º e 4º deste códex, contudo, enumeram situações nas quais, por motivos diversos, o indivíduo não pode, por si só, reger sua vida e administrar os seus bens. São os casos de incapacidade absoluta e incapacidade relativa, respectivamente. Nessas situações, há que atribuir-se este encargo a outrem, um curador.
Para Diasi, “a curatela é instituto protetivo dos maiores de idade, mas incapazes de zelar por seus próprios interesses, reger sua vida e administrar seu patrimônio”. Gonçalvesii, por sua vez, define a curatela como “o encargo deferido por lei a alguém capaz para reger a pessoa e administrar os bens de quem, em regra maior, não pode fazê-lo por si mesmo”. Estes conceitos, todavia, mostram-se insuficientes, haja vista não englobarem todos os casos de curatela. Daí por que Pontes de Mirandaiii, em uma tentativa conceitual mais ampla, considera a curatela ou curadoria como “o encargo conferido por lei a alguém, para reger a pessoa e os bens, ou somente os bens, de indivíduos menores, ou maiores, que por si não o podem fazer, devido a perturbações mentais, surdo-mudez, prodigalidade, ausência, ou por ainda não ter nascido”.
Sujeitam, ou sujeitavam-se, à curatela, os nascituros, os ausentes, os enfermos e os deficientes físicos. A curatela é, pois, verdadeiro múnus públicoiv, caracterizando-se por sua função assistencial e protetiva daqueles que o Código Civil tem por incapazes.
O advento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada ao direito interno brasileiro por meio do Decreto Legislativo 186, de 09/07/2008 e por sua promulgação pelo Decreto Executivo 6.949, de 25/08/2009 e, finalmente, a regulamentação da Convenção pela Lei 13.146 de 06/07/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), entretanto, mudaram completamente o paradigma ora vigente no ordenamento jurídico pátrio.
De acordo com Kuhnv, os cientistas de uma comunidade estão sujeitos a um mesmo paradigma, compartilhando das mesmas “regras” e “padrões” estabelecidos pela prática científica. Tais paradigmas se constituem como uma rede de compromissos ou adesões, conceituais, teóricas, metodológicas e instrumentais compartilhados. Assim o era com o ordenamento jurídico brasileiro: os juristas, a comunidade brasileira em geral, consideravam as pessoas portadoras de deficiência como incapazes, privando-as de certos direitos ou excluindo-as de certas funções por força de lei.
Segundo Kuhn, podem, contudo, ocorrer grandes revoluções, acarretando verdadeira mudança de paradigmas e afetando grupos bastante amplos. E foi exatamente isso que ocorreu no Brasil, especialmente, com a promulgação do Estatuto das Pessoas com Deficiência. É certo que ainda haverá de ser feito esforço hermenêutico no sentido de entender o verdadeiro propósito da mudança, mas as alterações são evidentes. Ademais, mudança gradual já vinha se percebendo desde o Código Civil de 1916, que considerava os incapazes como “loucos de todo gênero”, passando pelo entendimento jurisprudencial de que a curatela devia ser o mais restrita possível aos aspectos patrimoniais, até chegar ao entendimento consolidado no Estatuto.
De acordo com o art. 12 da Convenção, aqueles indivíduos que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, passam a gozar de capacidade legal em igualdade de convenções com as demais pessoas em todos os aspectos da vida. Deixou-se de considerar as pessoas com deficiência como incapazes, enaltecendo o princípio da dignidade da pessoa humana.
Aliás, impende salientar aqui o verdadeiro conceito do supracitado princípio, por vezes distorcido pelos juristas. Para Kant, o homem é dotado de identidade moral, responsabilidade racional-prática para consigo mesmo e capacidade de autodeterminação racional. À dignidade de cada pessoa, deve ser concedido o reconhecimento incondicional que é natural pretender para si mesmo.
Carlos Alberto da Mota PINTO (1992, p. 85) assinala a conhecida fórmula de Kant, segundo a qual o homem é pessoa porque é "fim em si mesmo", isto é, tem valor autônomo e não só valor como meio para algo diverso, donde resulta a sua dignidade. Observa o autor português que, em Kant, o reconhecimento dessa dignidade constitui a regra ético-jurídica fundamental, que estabelece a cada homem o direito ao respeito.vi
A dignidade da pessoa humana, princípio máximo do Estado Democrático de Direito, é, portanto, um valor moral atinente à pessoa, dizendo respeito à compreensão do homem por sua natureza racional e com capacidade de autodeterminação.
Nos termos do seu art. 1º, o propósito da Convenção "é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente". Tem-se, portanto, a “devolução”vii da parcela da capacidade de autodeterminação às pessoas com deficiência ora suprimida, prestigiando e reconhecendo-os como seres humanos dignos.
2. A CURATELA NO CC/2002
2.1 LINHAS GERAIS
De acordo com Gonçalvesviii, a curatela apresenta cinco características relevantes, quer sejam: a) os seus fins assistenciais; b) o seu caráter eminentemente publicista; c) o seu caráter supletivo da capacidade; d) a temporariedade do instituto, perdurando somente enquanto a causa da incapacidade se mantiver (levanta-se a interdição, cessada a causa); e) o fato de a sua decretação requerer certeza absoluta da incapacidade.
O Código Civil de 2002, ao dispor sobre a incapacidades absoluta e relativa (vide arts. 3º e 4º, respectivamente), institui sistema assistencial aos que não podem, por si mesmos, reger sua pessoa e administrar seus bens, impondo-lhes a necessidade de representante ou de assistente, nesta ordem, para a prática dos atos da vida civil. Além de assistencial, o referido instituto é dotado ainda de feição protetiva, a qual resta evidenciada, por exemplo, quando a lei estende aos descapacitados a mesma proteção dos filhos menores, nos moldes do art. 1590 do mesmo Códex.
De acordo com o art. 1767, CC/02, estão sujeitos à curatela: I - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil; II - quem, por outra causa duradoura, não puder exprimir a sua vontade; III - os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; IV – os excepcionais sem completo desenvolvimento mental; e V - os pródigos.
Como múnus público que é, a curatela é dotada de caráter publicista, advindo do fato de ser dever do Estado zelar pelos interesses dos incapazesix, o qual, contudo, para viabilizar a proteção destes, delega o referido dever a pessoas capazes e idôneas, ao serem nomeadas curadoras. O caráter supletivo, por sua vez, exsurge do fato de o curador receber o encargo de representar ou assistir o curatelado, sendo aplicável em todos os casos de incapacidade não suprida pela tutela.
A quarta característica se torna evidente quando se tem em mente que a capacidade plena é adquirida com a maioridade, sendo a incapacidade excepcional, nos moldes dos arts. 3º e 4º. Somente subsistem a incapacidade e a representação legal pelo curador enquanto perdurar a causa da interdição. Cessados os motivos que a determinaram, cessa também a incapacidade.
Por último, tem-se a certeza da incapacidade, a ser obtida por meio de um processo de interdição que, a despeito do elenco legal, auferirá através de perícia médica o grau de incapacidade e de comprometimento a dar ensejo ao decreto judicial da interdição.
Ressalta-se que à curatela, aplicam-se, supletivamente, os dispositivos da tutela, nos moldes do art. 1774 do CC. Desta forma, a despeito de a nomeação do curador seguir o critério posto na lei, não há impedimento de os pais nomearem, por testamento, curador para os filhos que não dispõem da plena capacidade mental (art. 1729, p.u., CC – referente à escolha de tutor testamentário).
Ademais, também é admissível que o próprio curatelado faça a eleição antecipada de curador, desde que tenha ocorrido enquanto plenamente capaz, via escritura pública ou escrito particular, referendado por duas testemunhas.
Em face desta aplicação supletiva, tem-se também a necessidade de o curador representar o curatelado (art. 1747, CC), competindo-lhe dar autorização para o casamento. A mitigação da dignidade do curatelado não para por aí. Diz o Códex Civil que para casar, é necessário o pleno discernimento para os atos da vida civil, sendo nulo (art. 1548) ou anulável (art. 1550, IV), quando contraído por alguém incapaz de manifestar de modo inequívoco o consentimento. Ora, sendo assim, somente os pródigos e os sujeitos à curatela relativa podem casar. Tentando amenizar a supressão do direito fundamental do curatelado de formar família, a doutrina assinala que, mesmo sendo nulo, é indispensável reconhecer ou o casamento como putativo, ou a existência de união estável. Mas isso não nos parece suficiente.
Às limitações pessoais impostas ao curatelado (desarrazoadas, diga-se de passagem), situando-o na margem da sociedade brasileira, se contrapõe o Estatuto da Pessoa com Deficiência, cujas inovações serão estudadas no presente trabalho.
2.2 ESPÉCIES
Diasx classifica a curatela de acordo com o grau de discernimento e inaptidão mental do interditando. Neste diapasão, são duas as espécies por ela apontadas: curatela absoluta e curatela relativa.
A curatela é absoluta quando há ausência total de capacidade, a impedir a lúcida manifestação de vontade, ensejando interdição absoluta para todos os atos da vida civil (art. 1767, incisos I e II, CC). Neste caso, o interditando deve ser representado e, caso pratique algum ato sozinho, este estará viciado pela nulidade (art. 166, idem), sendo inadmitida a convalidação pelo representante.
Na curatela relativa, por sua vez, há o discernimento parcial, requerendo apenas interdição limitada, relativa à prática de certos atos (arts. 1772 e 1780, CC), os quais devem ser delimitados pelo juiz. Aqui, como a incapacidade é relativa, o curador assiste o curatelado. O vício que contamina os atos celebrados sem assistência é menos grave, podendo ser ratificados pelo curador, haja vista ensejarem apenas a anulabilidade (art. 171, CC).
Gonçalvesxi, por sua vez, classifica a curatela com base no art. 1767 do CC, elencando suas espécies de acordo com o próprio curatelado. São, pois, as seguintes variedades: curatela dos privados do necessário discernimento por enfermidade ou deficiência mental; curatela dos impedidos, por outra causa duradoura, de exprimir a sua vontade; curatela dos deficientes mentais, ébrios habituais e viciados em tóxicos curatela dos excepcionais sem completo desenvolvimento mental; curatela dos pródigos; curatela do nascituro; curatela do enfermo e do portador de deficiência físicaxii.
2.3 DA CURATELA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Inicialmente, impende salientar que
antes da reforma do Código Civil em 2002, a sentença de interdição era no sentido de impedir que as pessoas com deficiência intelectual e deficiência mental praticassem qualquer tipo de ato da vida civil, como votar ou até mesmo abrir uma conta em banco. Tudo o que a pessoa com deficiência precisasse fazer, teria que ser por meio da autorização e assinatura do seu curador. xiii
Assim, somente a partir de 2002, a lei, aproximando-se da concepção constante na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (art. 12), passou a reconhecer às pessoas com deficiência a capacidade legal, assegurando que a curatela deveria ser proporcional e apropriada às circunstâncias da pessoa, com duração do menor tempo possível e sempre revista. Mas isso ainda não era suficiente. A condição de incapaz ainda permanecia, afetando sua dignidade e autonomia.
O Código Civil, em seu artigo 1.767, declara sujeitos a curatela “aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade”. Aplica-se o dispositivo, dentre outros, aos portadores de arteriosclerose ou paralisia avançadas e irreversíveis, e excepcionalmente aos surdos-mudos que não houverem recebido educação adequada que os habilite a enunciar precisamente a sua vontade, embora a hipótese em relação a estes seja, em regra, de incapacidade relativa.
Destaca-se, ainda, que nem o deficiente visual nem o auditivo estão sujeitos à curatela. Ademais, o quadro de depressão também não justifica a interdição, tal qual o simples avançar da idade. Somente a demência senil autoriza a interdição.
Por fim, há que salientar, que, nos moldes do art. 1780, a nomeação de curador à pessoa com deficiência pode dar-se fruto de sua própria iniciativa ou através de pedido de terceiros. Vejamos:
Art. 1780: A requerimento do enfermo ou portador de deficiência física, ou, na impossibilidade de fazê-lo, de qualquer das pessoas a que se refere o art. 1.768, dar-se-lhe-á curador para cuidar de todos ou alguns de seus negócios ou bens.
2.3 DA AÇÃO DE INTERDIÇÃO
Conforme afirmado anteriormente, a certeza da curatela, nos termos de Gonçalves, é obtida através do procedimento da interdição, disciplinado nos artigos 1.177 a 1.198 do Código de Processo Civil, no próprio Código Civil (arts. 1.767 a 1.783), bem como nas disposições da Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/73). Tal procedimento é permeado de muitas formalidades, face às sequelas severas que a interdição acarreta.
Salienta-se, inicialmente, que a presença do Ministério Público é indispensável, por tratar-se de ação de estado. A interdição pode ser promovida pelo pai, mãe ou tutor; pelo cônjuge (incluindo-se aí o (a) companheiro (a)) ou algum parente próximo; pelo órgão do Ministério Público, cuja atuação é subsidiária, conforme o art. 1.178, CPC. Este rol, contudo, não é taxativo, podendo a ação de interdição ser proposta inclusive por quem for indicado em testamento para exercer o encargo, em atenção ao melhor interesse do curatelado.
Na petição inicial, deverá o interessado provar não só a sua legitimidade, como também especificar os fatos que revelam a anomalia psíquica, assinalando a incapacidade do interditando para reger sua pessoa e administrar os seus bens.
No rito de interdição é necessária a oitiva do interdito pelo juiz acompanhado por especialistas, antes de se pronunciar, a fim de que o juiz possa verificar o seu desenvolvimento intelectual ou estado mental. Finda a audiência, o interditando poderá ainda impugnar a interdição. Em seguida, o juiz deverá nomear perito (preferencialmente, uma equipe multidisciplinar) para proceder ao exame da pessoa e determinar os limites de sua incapacidade. Apresentado o laudo, será marcada audiência de instrução e julgamento, para que sejam ouvidas testemunhas e proferido o julgamento.
Resolvendo pelo deferimento, o magistrado decretará a interdição, devendo fixar os limites da curatela e a responsabilidade do curador. Face ao seu caráter de temporalidade, a curatela só permanece enquanto durarem os motivos que a determinaram, tendo em vista que as circunstâncias que determinam a interdição nem sempre são permanentes, conforme disposto no Código de Processo Civil, em seu art. 1.186.
3. A CURATELA APÓS O ESTATUTO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Seguindo a tendência jurisprudencial e doutrinária no sentido de dar maior liberdade ao curatelado, deixando-o praticar sozinho atos de natureza não patrimonial, cujos efeitos se limitam à esfera existencial, foi promulgado o Estatuto das Pessoas com Deficiência.
Conquanto houvesse a propensão de o sistema jurídico ser mais inclusivo e buscar salvaguardar a dignidade da pessoa com deficiência, ainda haviam institutos que obstruíam os objetivos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, verbi gratia, os próprios artigos 3º e 4º do Códex Civil.
No sistema brasileiro, a curatela que leva à interdição parcial da pessoa é o instituto que mais se aproxima da mencionada salvaguarda constante do Artigo 12 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, desde que sua aplicação respeite os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, seja isenta de conflito de interesses e de influência indevida, seja proporcional e apropriada às circunstâncias da pessoa, se aplique pelo período mais curto possível e seja submetida à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial.xiv
Assim, a regulamentação da Convenção pela Lei 13.146 de 06/07/2005 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), representou verdadeira mudança de paradigma na sociedade brasileira. Os postulados básicos que, inclusive, já eram princípios constitucionais, baseiam-se na igualdade e na não discriminação, conforme definido no art. 4º do Estatuto: “Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”.
Tartucexv destaca que duas correntes se formaram a respeito da norma.
A primeira – à qual estão filiados José Fernando Simão e Vitor Kümpel – condena as modificações, pois a dignidade de tais pessoas deveria ser resguardada por meio de sua proteção como vulneráveis (dignidade-vulnerabilidade). A segunda vertente – liderada por Joyceane Bezerra, Paulo Lôbo, Nelson Rosenvald, Jones Figueirêdo Alves, Rodrigo da Cunha Pereira e Pablo Stolze – aplaude a inovação, pela tutela da dignidade-liberdade das pessoas com deficiência, evidenciada pelos objetivos de sua inclusão.
Filiamo-nos à segunda corrente, destacando, com Requiãoxvi, que ainda é mantida a possibilidade de que a pessoa com deficiência venha a ser submetida à curatela. O que se afasta é a sua condição de incapaz. Tanto assim que os incisos I, II e IV, do artigo 1.767, do Código Civil, restaram revogados, em que se afirmava que os portadores de transtorno mental estariam sujeitos à curatela. Não mais estão; podem estar, e entender o grau de tal mudança é crucial.
No brilhante comentário do Professor Flávio Tartucexvii:
[...] parece-nos que o sistema de incapacidades deixou de ter um modelo rígido, passando a ser mais maleável, pensado a partir das circunstâncias do caso concreto e em prol da inclusão das pessoas com deficiência, tutelando a sua dignidade e a sua interação social. Isso já tinha ocorrido na comparação das redações do Código Civil de 2002 e do seu antecessor. Como é notório, a codificação material de 1916 mencionava os surdos-mudos que não pudessem se expressar como absolutamente incapazes (art. 5º, III, do CC/1916). A norma então em vigor, antes das recentes alterações ora comentadas, tratava das pessoas que, por causa transitória ou definitiva, não pudessem exprimir sua vontade, agora tidas como relativamente incapazes, reafirme-se.
Conforme salienta Lôboxviii, ao contrário da interdição total anterior, essa curatela deve dar-se de acordo com o artigo 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, sendo proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso e tendo a menor duração possível. Sua natureza é, portanto, de medida protetiva e não de interdição de exercício de direitos, como o era anteriormente.
Desta feita, a curatela não alcança nem restringe os direitos de família, do trabalho, eleitoral, de ser testemunha e de obter documentos oficias de interesse da pessoa com deficiência. É o que dispõe o art. 6º do Estatuto, pondo fim a muitas das limitações ora impostas pelo Códex Civil para a plena capacidade civil da pessoa.
Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I - Casar-se e constituir união estável;
II - Exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III - Exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV - Conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V - Exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI - Exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
O rol, por óbvio, não é exaustivo, tornando a curatela medida extraordinária, restrita aos atos de natureza patrimonial e negocial (arts. 84, § 3o e 85 do Estatuto). Nesse sentido, devem constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. De suma importância também é a disposição constante no § 1o do supracitado artigo: “A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto”.
Há que salientar, ainda, que a decretação da curatela deve dar-se no interesse exclusivo da pessoa com deficiência mental ou intelectual, não no interesse de parentes ou de terceiros.
Sem embargo do disposto no art. 1775 do Código Civil, a doutrina e a jurisprudênciaxix já entendiam ser possível a decretação da curatela compartilhada, em proteção ao melhor interesse do curatelado. A Lei 13.146/2015, positivando o entendimento, assinalou que a pessoa com deficiência pode, de fato, contar com mais de um curador.
Outra importante inovação foi a alteração a elencada no art. 1783-A, o qual dispõe sobre o instituto da tomada de decisão apoiada, alternativa proposta à curatela. De acordo com o artigo, faculta-se à pessoa com deficiência eleger pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. Resguarda-se, portanto a autonomia da pessoa com deficiência, reforçando a mudança paradigmática no que tange à sua capacidade civil.
Na tomada de decisão apoiada, o beneficiário conservará a capacidade de fato. Ainda nos específicos atos em que seja coadjuvado pelos apoiadores, a pessoa com deficiência não sofrerá restrição em seu estado de plena capacidade, sendo apenas privada de legitimidade para praticar episódicos atos da vida civil. Esse modelo beneficiará enormemente pessoas deficientes com impossibilidade física ou sensorial (v.g. tetraplégicos, obesos mórbidos, cegos, sequelados de AVC e pessoas com outras enfermidades que as privem da deambulação para a prática de negócios e atos jurídicos de cunho econômico) e pessoas com deficiência psíquica ou intelectiva que não tenham impedimento, mas possuam limitações em expressar a sua vontade. Eles não serão interditados ou incapacitados, pois a tomada de decisão apoiada veio para promover a autonomia e não para cerceá-la.
Paulo Lôbo assinala ainda que não há mais que se falar em interdição, a qual sempre teve como fito a vedação do exercício, pela pessoa com deficiência mental ou intelectual, de todos os atos da vida civil, impondo-se a mediação de seu curador. Cuidar-se-á, apenas, de curatela específica, para determinados atos.
No que tange às regras do Novo Código de Processo Civil, elas deverão
ser interpretadas em conformidade com as da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, pois esta tem força normativa superior àquele, relativamente à curatela especial, como medida protetiva e temporária, não sendo cabível a interpretação que retome o modelo superado de interdição, apesar da terminologia inadequada utilizada pela lei processual.xx
A confusão criada pelo Novo Códex Processual, contudo, deverá ser tratada em trabalho especifico face às peculiaridades que apresenta.
4. CONCLUSÃO
Apesar dos avanços da doutrina e da jurisprudência, a verdadeira mudança paradigmática, nos termos de Thomas Kuhn, foi inaugurada no último dia 6 de julho, data da promulgação da Lei 13.146/2015. O paradigma da teoria da incapacidade, que conferia às pessoas com deficiência tratamento discriminatório, em injustificável mitigação dos seus direitos da personalidade e de sua própria dignidade, abriu espaço para o paradigma da dignidade-liberdade, como fora denominado por Tartuce.
Conforme elencado em seu artigo 1º, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) é destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.
A curatela, agora constitui medida excepcional e extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. Restrita aos direitos de caráter patrimonial, não mais alcança nem restringe os direitos de família, do trabalho, eleitoral, de ser testemunha e de obter documentos oficias de interesse da pessoa com deficiência.
A deficiência, portanto, deixou de ser elemento ensejador da incapacidade, como elencava o Código Civil, ensejando o exercício da capacidade plena para os atos da vida civil pelas pessoas com deficiência. Por óbvio uma mudança tão vultuosa não se opera com mera atividade legislativa, requerendo ainda um esforço hermenêutico dos juristas, doutrinadores e de todo o povo brasileiro no sentido de pôr em prática o verdadeiro intento do legislador, merecedor de aplausos.
i DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 681.
ii GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 460.
iii MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito de família, v. III, § 285, p. 273.
iv Múnus, em latim, significa encargo, dever, ônus, função. Trata-se de obrigação decorrente de acordo ou lei, sendo que, neste último caso, denomina-se múnus público. O múnus público é, pois, todo o dever e obrigação que o indivíduo presta para o poder público, baseado por leis e que cubram os interesses de todos os cidadãos em coletividade. ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Acadêmico de Direito. 2ª ed. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2001.
v KUHN, Thomas. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1991.
vi QUEIROZ, Victor Santos. A dignidade da pessoa humana no pensamento de Kant. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 757, 31 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7069/a-dignidade-da-pessoa-humana-no-pensamento-de-kant. Acesso em: 28 fev. 2016
vii Ressalta-se que o instituto da curatela não deixou de existir, mas tornou-se excepcional. A restrição de direitos imposta às pessoas com deficiência persiste, mas somente no que tange aos direitos de natureza patrimonial. A curatela não alcança nem restringe os direitos de família, do trabalho, eleitoral, de ser testemunha e de obter documentos oficiais de interesse da pessoa com deficiência, por exemplo.
viii GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 461.
ix CF: Art. 23: É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: II. Cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência.
x DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 686-687.
xi GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 461-469.
xii Na Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e Dignidade das Pessoas com Deficiência, ficou decidido que o termo correto utilizado seria “pessoas com deficiência”.
xiii CAVALCANTI, Ana Carolina Coutinho Ramalho; GONZAGA, Eugênia Augusta e outros. Interdição Parcial é mais legal / Conselho Nacional do Ministério Público. Brasília: CNMP, 2014. p. 4.
xiv CAVALCANTI, Ana Carolina Coutinho Ramalho; GONZAGA, Eugênia Augusta e outros. Interdição Parcial é mais legal / Conselho Nacional do Ministério Público. Brasília: CNMP, 2014. p. 1.
xv TARTUCE, Flávio. Alterações do Código Civil pela lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Repercussões para o Direito de Família e Confrontações com o Novo CPC. Parte II. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI225871,51045-Alteracoes+do+Código+Civil+pela+lei+131462015+Estatuto+da+Pessoa+com>. Acesso em: 24 fev. 2016.
xvi REQUIÃO, Maurício. Estatuto da pessoa com deficiência altera regime civil das incapacidades. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jul-20/estatuto-pessoa-deficiencia-altera-regime-incapacidades. Acesso em: 24 de fevereiro de 2016.
xvii TARTUCE, Flávio. Alterações do Código Civil pela lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Repercussões para o Direito de Família e Confrontações com o Novo CPC. Parte I. Disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br/index2.php?sec=artigos>. Acesso em: 24 fev. 2016.
xviii LÔBO. Paulo. Com Avanço Legal Pessoas com Deficiência Mental não são mais incapazes. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/processo-familiar-avancos-pessoas-deficiencia-mental-nao-sao-incapazes>. Acesso em 24 fev. 2016.
xix Curatela compartilhada entre os pais de interdito portador de autismo infantil. Pedido indeferido em 1 ª instância. Situação que exige enorme dedicação dos familiares do interdito, especialmente dos seus pais, nos cuidados a ele devidos e no acompanhamento do seu desenvolvimento. Situação fática na qual já se verifica a sua atuação conjunta, sempre no melhor interesse do interdito. Possível sobrecarga do pai, atual curador, que pode afetar o bem-estar da família e, assim, do incapaz. Pleito que, no caso, mostra-se razoável e em harmonia com a própria finalidade do instituto da curatela. Ausência de vedação legal. Jurisprudência deste Tribunal. Recurso provido. (TJSP, A I 20027999420 1 48260000, 7.ª C. Dir. Priv., Rei. Des. Mary Grün, j. 02/04/2014).
xx LÔBO. Paulo. Com Avanço Legal Pessoas com Deficiência Mental não são mais incapazes. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/processo-familiar-avancos-pessoas-deficiencia-mental-nao-sao-incapazes>. Acesso em 24 fev. 2016.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2. CAVALCANTI, Ana Carolina Coutinho Ramalho; GONZAGA, Eugênia Augusta e outros. Interdição Parcial é mais legal / Conselho Nacional do Ministério Público. Brasília: CNMP, 2014. 12 p. Disponível em:<http://www2.cnmp.mp.br/portal/images/Interdi%C3%A7%C3%A3o_Parcial_11.06_WEB.pdf>. Acesso em: 26 fev. 2016.
3. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10ª ed. rev., atual. E ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
4. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
5. LÔBO. Paulo. Com Avanço Legal Pessoas com Deficiência Mental não são mais incapazes. Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/processo-familiar-avancos-pessoas-deficiencia-mental-nao-sao-incapazes, acessado em 24 de fevereiro de 2016.
6. QUEIROZ, Victor Santos. A dignidade da pessoa humana no pensamento de Kant. Revista Jus Navigandi. Teresina, ano 10, n. 757, 31 jul. 2005. Disponível em:<https://jus.com.br/artigos/7069>. Acesso em: 28 fev. 2016.
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9. TARTUCE, Flávio. Alterações do Código Civil pela lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Repercussões para o Direito de Família e Confrontações com o Novo CPC. Parte II. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI225871,51045-Alteracoes+do+Código+Civil+pela+lei+131462015+Estatuto+da+Pessoa+com>. Acesso em: 24 fev. 2016.