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Reflexões sobre as concepções de personalidade e de dignidade humana.

As teses de Robert Spaemann e de Ronald Dworkin

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27/04/2023 às 17:07
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

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Notas

1 Isto se deve, principalmente, porque tais bases não partilham sequer da mesma origem quanto à fundamentação; isto é, ora misturam uma teoria de matriz liberal com outra de matriz comunitarista, ora uma teoria tributária do jusnaturalismo com pensamentos de base realistas, por exemplo. Tudo isso transforma o discurso jurídico em uma própria Babel contemporânea, dificultando – e por vezes, até impedindo o desenvolvimento de uma teorização mais consistente.

2 Em uma outra oportunidade tivemos a oportunidade discutir com maior aprofundamento voto por voto, seja da medida liminar, seja do julgamento de mérito da ADPF n. 54. Para tanto, remetemos a leitura de: QUINAUD PEDRON, Flávio; PEREIRA, Juliana Diniz. O julgamento da ADPF n. 54 pelo STF: uma análise hermenêutica da compreensão do Tribunal acerca dos princípios jurídicos. In. DINIZ, Fernanda Paula; FILIPPO, Filipe de. Temas de Direito Público e Privado. v. 2. Pará de Minas: Virtual Books, 2015.

3 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana. In: BARRETO, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo / Rio de Janeiro: Unisinos / Renovar, 2006; BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: A Construção de um Conceito Jurídico à Luz da Jurisprudência Mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

4 Segundo a Resolução n. 1.752/04 do Conselho Federal de Medicina, o anencéfalo não apresenta os “hemisférios cerebrais”, de modo que está sujeito após o parto a sofrer uma “parada cardiorrespiratória”, logo nas primeiras horas do pós-parto. “A anencefalia é definida na literatura médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico. (...) a anomalia importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central – responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal. Como é intuitivo, a anencefalia é incompatível com a vida extra-uterina, sendo fatal em 100% dos casos. Não há controvérsia sobre o tema na literatura científica ou na experiência médica” (BARROSO, Luiz Roberto. Gestação de fetos anencefálicos e pesquisas com células-tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição, p. 3).

5 Segundo o STJ, caberia apenas aos defensores da tese da juridicidade do aborto no caso de anencefalia lamentar a omissão do Legislador e nada mais, não podendo ser esperado do Judiciário qualquer outra póstuma mais ativista. O posicionamento do STJ, então, não escapa a crítica feita pelo voto do Min. Joaquim Barbosa: “É importante salientar, porém, que em nenhum momento se cogitou de eventuais direitos da gestante, isto é, da paciente. Toda a discussão levada a efeito no âmbito do Superior Tribunal de Justiça diz respeito aos direitos do nascituro sem qualquer alusão a eventuais direitos da gestante, como se esses direitos, constitucionalmente protegidos, não estivessem intimamente entrelaçados, ou seja, como se a proteção ao nascituro tivesse o condão de excluir completamente a proteção aos direitos da gestante. (...) a própria vida da paciente encontra-se em risco, na medida em que, diante de uma gravidez potencialmente problemática como a sua, caso surja a necessidade de uma intervenção cirúrgica de emergência, pousará sobre a paciente e sobre o médico que vier a assisti-la a ameaça da persecução criminal decorrente da vedação consubstanciada na decisão do Superior Tribunal de Justiça” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 54/DF. Rel. Min. Marco Aurélio).

6 Há quem entenda, contudo, inclusive apoiando-se em estudos médicos, que há sim um risco para a vida da gestante nos casos de gravidez de feto anencéfalo, o que a permitiria o aborto na forma legal (FRANCO, 2005).

7 Neste argumento acaba por transparecer uma visão judaico-cristã que afirma o poder pedagógico ou terapêutico do sofrimento da gestante, sem, contudo, avaliar os danos psicológicos ou mesmo físicos que a mesma estará se submetendo (FRANCO, 2005).

8 “(...) implica reconhecer que a lei penal proíbe a intencional contramarcha nos processos intra-uterinos que fazem do fruto da concepção um ser em paulatino avanço para um momento de vida já ocorrente do lado de fora do feminino ventre. Concepção que é a pedra de toque da questão, sob o fundamento de hospedar-se nela o próprio início de toda vida humana, embora em estado latente. Latência, enfim, que, numa ponderação de valores, passa a preponderar sobre qualquer outro interesse ou bem jurídico por acaso alegado pela gestante (sempre ressalvadas as duas hipóteses de exclusão de punibilidade); que nem por se encontrar em estado de gravidez se torna proprietária do ser que lhe anima o ventre” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 54/DF. Rel. Min. Marco Aurélio).

9 “(...) o desfazimento da gravidez anencéfala só é aborto em linguagem simplesmente coloquial, assim usada como representação mental de um fato situado no mundo do ser. Não é aborto, em linguagem depuradamente jurídica, por não corresponder a um fato alojado no mundo do dever-ser em que o Direito consiste. O que faz o fiel da balança em que se pesam contrapostos valores pender para o lado da gestante, na acepção de que ela já não está obrigada a levar adiante uma gravidez tão somente comprometida com o pior dos malogros, quando do culminante instante do parto” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 54/DF. Rel. Min. Marco Aurélio).

10 “Em se tratando de feto com vida extra-uterina inviável, a questão que se coloca é: não há possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento em que se interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou bebê. A antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia ser considerada crime? Entendo que não Sr. presidente. Isso porque, ao proceder à ponderação de valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extra-uterina inviável e a liberdade e autonomia da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa os seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 54/DF. Rel. Min. Marco Aurélio).

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11 Para mais detalhes, reporta-se ao artigo QUINAUD PEDRON, Flávio. A solução do conflito entre princípios pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: a técnica da proporcionalidade. Revista dos Tribunais. a. 97. v. 875. set./2008.

12 Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973), e Planned Parenthood of Southwestern Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833 (1992). Aqui, reconhece-se à mulher um direito constitucional amplo para realizar aborto no primeiro trimestre de gravidez. Após tal período, as restrições instituídas por leis estaduais podem ser progressivamente mais severas.

13 “Em 1975, foi editada lei francesa permitindo o aborto, a pedido da mulher, até a 10ª semana de gestação, quando a gestante afirmasse que a gravidez lhe causa angústia grave, ou a qualquer momento, por motivos terapêuticos. A norma foi submetida ao controle de constitucionalidade (antes de editada) e ao controle de convencionalidade (após sua edição), tendo sido considerada compatível tanto com a Constituição francesa quanto com a Convenção Européia dos Direitos Humanos. Hoje, outra norma cuida da matéria, mantendo a possibilidade relativamente ampla de aborto na França. (...) Na Alemanha, após uma posição inicial restritiva, materializada na decisão conhecida como “Aborto I” (1975), a Corte Constitucional, em decisão referida como “Aborto II” (1993), entendeu que uma lei que proibisse em regra o aborto, sem criminalizar a conduta da gestante, seria válida, desde que adotasse outras medidas para proteção do feto. Registrou, contudo, que o direito do feto à vida, embora tenha valor elevado, não se estende a ponto de eliminar todos os direitos fundamentais da gestante, havendo casos em que deve ser permitida a realização do aborto” (BARROSO, 2007, p. 11).

14 Como Lembra Barroso (2007, p. 8), outras teses esposadas seria que a vida tem início: com a fecundação; com a nidação (fixação do embrião no útero materno); e quando da formação do sistema nervoso central (SNC), o que permite ao embrião sentir dor ou prazer.

15 “A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica. A Constituição Federal, como se sabe, veda toda forma de tortura (art. 5°, III) e a legislação infraconstitucional define a tortura como situação de intenso sofrimento físico ou mental” (BARROSO, 2007, p. 16).

16 Uma análise etimológica pode, inclusive, nos remeter a ideia que a palavra tem relação com ignis, que do latim quer dizer fogo, brilho.

17 O termo tem sua origem no alemão, Anerkennung, derivado do verbo anerkennen, criado no século XVI a partir do latim, agnoscere. Aqui, o significado é o de identificar uma pessoa ou uma coisa, ou característica, por meio de um saber prévio, seja este produto ou não de uma experiência direta. Mas o conceito filosófico do termo apresenta uma modificação, uma vez que se ultrapassa aqui a ideia de uma “identificação cognitiva de uma pessoa”, mas deve ser entendido como “atribuição de um valor positivo a essa pessoa, algo próximo do que entendemos por respeito” (ASSY; FERES JÚNIOR, 2006, p. 705).

18 “O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário entre semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria” (MORAES, 2007, p. 46).

19 Todavia, um alerta: proceder assim é ignorar os riscos de retroceder a tradição jusnaturalista, ou pior, apagar os traços de autonomia sistêmica que separa o direito e a moral. Ver: HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução: George Speiber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.

20 No julgamento do HC 71.373-4 RS, o STF entendeu por solucionar um suposto conflito entre dignidade humana e direito à intimidade, no que diz respeito a possibilidade (ou não) de condução coercitiva do suposto pai em sede de processo de investigação de paternidade. Ainda que pese críticas à fundamentação adotada, o Tribunal compreendeu, com exatidão, que os instrumentos infraconstitucionais, principalmente aqueles de ordem processual, já estabeleciam um sistema de onus probandi, de modo que a recusa em proceder ao exame, não representava o descumprimento de um dever processual de prova; muito antes, estabelecia uma presunção em sentido contrário do argumentado pelo investigado, presumindo a paternidade.

21 Será feita uso da tradução para o inglês: SPAEMANN, Robert. Persons: the difference between ‘someone’ and ‘something’. Trad. Oliver O´Donovan. Oxford: Oxford University Press, 2006.

22 Por isso mesmo, para o autor as pessoas são mais que cérebros em um recipiente (corpo). O que se têm é uma interação dinâmica que conforma e permite a transcendência lingüística da experiência humana.

23 Este horizonte é ao mesmo tempo fator limitador e condição de possibilidade de toda a interação comunicativa dessa consciência que chamamos pessoa. Ver: SPAEMANN, 2006, p. 175. “Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. [...] A linguagem filosófica empregou essa palavra, sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracterizar a vinculação do pensamento à sua determinidade finita e para caracterizar, com isso, a lei do pregresso de ampliação do âmbito visual. Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver além disso. Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo os padrões de próximo e distante, de grande e pequeno. A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente à tradição” (GADAMER, 2001. p. 452).

24 “De modo geral, o termo ‘utilitarismo’ designa a doutrina segundo a qual o valor supremo é a utilidade, isto é, a doutrina segunda a qual a proposição ‘x é valioso’ é considerada como sinônima da proposição ‘x é útil’. O utilitarismo pode ser uma tendência prática ou uma elaboração teórica, ou ambas as coisas a um só tempo. Como tendência prática pode ser o resultado do instinto (em particular do instinto da espécie), ou conseqüência de um certo sistema de crenças orientadas para as convivências de uma comunidade dada ou manifestação de uma reflexão intelectual. Como elaboração teórica pode ser o resultado da justificação intelectual de uma prévia atitude utilitária, ou a conseqüência de uma pura teorização sobre os conceitos fundamentais éticos e axiológicos, ou as duas coisas ao mesmo tempo” (FERRATER MORA, 2001, p. 2959-2960).

25 Basta ver a afirmação de Luís Roberto Barroso (2007, p. 15): “O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. Relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito quanto com as condições materiais de subsistência”.

26 “linguagem religiosa não é mais simplesmente consolatória, não se refere apenas à esfera privada dos indivíduos, nem mesmo cumpre uma função tão-somente no interior da Lebenswelt (‘mundo vital’), mas exprime razões, ocupa um espaço na ‘esfera pública polifônica’. Confinar Deus exclusivamente no âmbito privado da própria consciência significa esterilizar a contribuição que a religião pode oferecer ao desenvolvimento da sociedade civil. O processo de secularização deveria, então, cumprir-se não de forma destrutiva, mas na forma de tradução: ‘Traduzir a ideia de um homem criado à imagem e semelhança de Deus, na ideia de uma igual dignidade de todos os homens, de respeitar-se incondicionalmente, constitui um exemplo de tal tradução preservadora’” (BECCHI, 2008).

27 Basta recorrer-se as obras:1) HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais; ou 2) TAYLOR, Charles. A política do reconhecimento.

28 Nesse sentido, não há como discordar de Habermas (2002) quando afirma a singularidade do movimento feminista por direitos e na forma como este conseguiu traduzir muito bem a interdependência da autonomia privada e da autonomia pública.

29 A proposta original, de autoria dos deputados federais Luiz Carlos Bassuma e Miguel Martini, defendia a alteração do Código Penal brasileiro para considerar o aborto como crime hediondo, proibir em todos os casos, além de proibir o congelamento, descarte e comércio de embriões humanos, com a única finalidade de serem suas células transplantadas em adultos doentes.

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Sobre o autor
Flávio Quinaud Pedron

Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Professor do Mestrado da Faculdade Guanambi (Bahia). Professor Adjunto no curso de Direito do IBMEC/MG. Professor Adjunto da PUC-Minas (graduação e pós-graduação). Advogado em Belo Horizonte (MG).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDRON, Flávio Quinaud. Reflexões sobre as concepções de personalidade e de dignidade humana. : As teses de Robert Spaemann e de Ronald Dworkin. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7239, 27 abr. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49009. Acesso em: 21 nov. 2024.

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