4. A necessidade de modalidades eficaciais distintas para cada caso. A indispensabilidade da ponderação no caso concreto
4.1. Algumas premissas
A análise das diversas propostas doutrinais acima tratadas, se feita com boa dose de objetividade, conduz a algumas conclusões que servem de instrumental teórico para a formulação do entendimento que perfilhamos.
Antes, porém, faz-se mister a enunciação de algumas premissas.
Em primeiro lugar, cremos restar fora de dúvida a existência da vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais, devendo-se sepultar a concepção liberal burguesa dos direitos fundamentais.
Se essa conclusão é válida em geral, com maior dose de razão o será no ordenamento jurídico português, em razão do disposto no art.18º/1 da Constituição da República, que assim dispõe: “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.”
A clareza solar do texto normativo em tela dirime qualquer dúvida acerca da vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais, fato reconhecido pela mais autorizada doutrina portuguesa[56]. Já o problema de saber em que medida se opera essa vinculação é questão controvertida e, ao que nos parece, não pode ser solucionada somente pela interpretação literal do dispositivo[57].
Em segundo lugar, faz-se imperiosa a análise do fenômeno das relações privadas de poder.
Devido às transformações operadas na estrutura da sociedade — noticiadas sucintamente no item 1.1. —, o fenômeno do poder deixou de pertencer exclusivamente ao Estado para passar também às mãos de entidades particulares, intermediárias entre aquele e os indivíduos, dando origem a verdadeiros centros de poder privado.
A existência de igualdade entre os indivíduos no desenrolar de suas relações privadas[58] passa a ser um dogma insustentável à luz dessa nova realidade.
Sob essa perspectiva, diversas são as situações em que se poderia imaginar que uma entidade privada, através do exercício de um poder real[59], tivesse meios de impor sua própria vontade a outros indivíduos ou mesmo de condicionar o comportamento ou as decisões destes[60].
A seara contratual, nesse particular, se apresenta como campo fértil para o surgimento de situações nas quais se verifique a existência de um efetivo desequilíbrio entre as partes. Basta que se pense naquelas hipóteses de efetiva sujeição[61] — os contratos de adesão e os laborais, por exemplo — nas quais não se abre à parte mais fraca a possibilidade de conformar, de maneira equilibrada, os contornos da relação contratual.
Para além destes casos, poderíamos elencar outros[62] em que se percebe a existência de poder privado, quais sejam: a) quando os grupos ou associações exercem poderes, notadamente de exclusão e disciplinar, sobre seus membros, como no caso dos sindicatos, associações, partidos políticos e entidades religiosas; b) nas relações de poder semelhantes às “‘relações especiais de poder’” típicas do direito administrativo, nas quais empresas e entidades desportivas acabam exercendo poderes regulamentares e disciplinares assimiláveis aos exercidos pelos superiores hierárquicos nas relações especiais de direito de administrativo; c) entidades privadas detentoras de poder real capaz de influir em quadrantes importantes da vida dos indivíduos, do que seriam exemplos as empresas monopolistas, aquelas em situação de quase-monopólio de facto, nomeadamente as fornecedoras de bens ou serviços essenciais, e; d) entidades privadas com a mesma força conformadora referida na alínea anterior, mas dotadas de poderes normativos, “tolerados ou institucionalizados”[63], como “é o caso das federações desportivas, relativamente ao desporto federado, bem como, em certa medida, o caso dos sindicatos e associações patronais em matéria de contratação colectiva (na medida em que sejam susceptíveis de extensão e que o respectivo incumprimento configure uma contraordenção) ou dos acordos entre empresas sobre condições negociais, na medida em que não afetem as leis de defesa da concorrência”[64].
Bem vistas as coisas, é lícito afirmar que a existência desse poder de fato – e sua titularidade por parte de entidades não estatais – provoca a diminuição na esfera de liberdade dos indivíduos, na medida em que reduz, quando não suprime, o espaço de autonomia pessoal.
A presença de poderes de fato no tecido social e a sua potencialidade de causar danos aos direitos fundamentais dos indivíduos[65] em posição de inferioridade apresentam-se como realidades inexoráveis, que em tudo impõem a necessidade de dispensar especial tratamento às relações jurídicas privadas nas quais se verifique a presença do mencionado poder.
Importante, outrossim, que esse tratamento resulte, respeitados alguns limites, na maior ampliação possível do espectro de proteção dos direitos fundamentais, pois, como assevera Bilbao Ubillos “Los derechos fundamentales deben protegerse, portanto, frente al poder, sin adjetivos, y el sistema de garantias, para ser coherente y eficaz, debe ser polivalente, deve operar en todas lãs direcciones. No hay ninguna razón para pensar que el problema de fondo cambia en función de cuál sea el origen de la agresión que sufre una determinada libertad. El tratamiento ha de ser, en lo esencial, el mismo.[66]”
Por último, urge salientar que, a pretexto de conferir aos indivíduos uma ampla proteção no que concerne aos aludidos direitos, não se afigura razoável que se reconheça a estes, nas relações entre particulares, uma tal carga de eficácia capaz de diminuir intoleravelmente, ou mesmo anular, a autonomia pessoal e a liberdade negocial, valores também prestigiados pela constituição.
É levando em linha de conta tais premissas que propomos, aqui, algumas diretrizes que talvez ajudem o operador do Direito a encontrar os melhores caminhos para chegar a uma resolução justa e coerente da variada gama de situações que podem surgir devido à incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Não se irá, naturalmente, apresentar nenhuma fórmula mágica, apta a solucionar as infindáveis questões que podem aparecer no âmbito da problemática ora tratada.
Sob essa perspectiva, entendemos que, seja qual for a direção a ser tomada, deve-se ter em mente que os melhores critérios para a solução dos problemas relacionados à vinculação dos particulares aos direitos fundamentais não serão encontrados exclusivamente em umas das teorias apontadas, resultando, na verdade, na compatibilização de ambas.
Isto porque entendemos que as teorias da eficácia direta e indireta[67], ao contrário do que pode parecer, não se excluem[68], antes cobrem situações distintas, conforme se demonstrará.
4.2. Proposta metódica
Fincadas essas premissas, julgamos que o melhor caminho consiste em procurar “soluções diferenciadas” para cada caso concreto[69].
A busca dessas soluções deve perpassar pelo exame das seguintes questões: a) o tratamento constitucional do direito fundamental em questão; b) o tratamento infraconstitucional a este dispensado; c) a existência de uma situação desequilíbrio causada pela presença de um poder real de uma parte sobre a outra; d) por fim, ao cabo desse percurso investigativo, caberá a ponderação dos direitos e interesses conflitantes, de modo a se saber qual deverá prevalecer na situação em causa[70].
São essas as idéias que analisaremos agora.
a) O tratamento constitucional do direito fundamental em questão
Verificando-se que os direitos fundamentais em causa são disciplinados pela Constituição de forma que somente ao Estado se possa atribuir a qualidade de sujeito passivo destes, como, por exemplo, as garantias do processo penal (art. 32º), o habeas corpus (art. 31º) e o direito de asilo, de não extradição e expulsão (art. 33º), não se colocará, como é intuitivo, a questão da vinculação das entidades particulares a tais direitos.
Noutra quadra, conforme reconhecido por autorizada doutrina lusitana[71], impende salientar que a própria Constituição portuguesa estabelece, desde logo, a eficácia de certos direitos fundamentais nas relações privadas. Assim, quando as normas constitucionais vincularem, de forma expressa, as condutas dos sujeitos privados, cremos que os particulares poderão invocá-las diretamente — sem a necessidade de mediação de um órgão estatal, portanto — contra outros sujeitos de mesma natureza[72].
A título ilustrativo, pode-se apontar como exemplo desses direitos: a inviolabilidade do domicílio e da correspondência (art. 34º/1), os relativos à família, casamento e filiação (art. 36º/3/4), o direito de resposta, retificação e indenização pelos danos sofridos (art. 37º/4), o direito dos jornalistas de participar na orientação dos órgãos de comunicação e sua liberdade de expressão e criação (art. 38º/2/a), a liberdade de não se associar (art. 46º/3) e a proibição do lock-out (art. 57º/4).
Nessas hipóteses, estaríamos diante de caso em que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas se deu de forma direta.
b) O tratamento infraconstitucional dispensado ao direito fundamental em causa
Não sendo possível solucionar a questão nos termos propostos, impende verificar o tratamento infraconstitucional dispensado ao direito em questão.
Nesse diapasão, quando estivermos diante de uma situação em que o direito fundamental em causa estiver expressamente regulado na legislação privada, ou ainda quando a questão possa se resolver através da aplicação das cláusulas gerais e conceitos indeterminados nela inseridos, julgamos que a vinculação dar-se-á de maneira indireta, através da mediação das normas de direito privado[73].
A aplicação de tais preceitos, por sua vez, deverá ser feita mediante interpretação conforme a Constituição. Se esta, entretanto, revelar-se insuficiente para adequar a aplicação das normas privadas aos valores constitucionais atinentes aos direitos fundamentais, caberá o afastamento, por vício de inconstitucionalidade, destas disposições.
c) A existência de uma situação desequilíbrio causada pela presença de um poder real de uma parte sobre a outra
Fora das hipóteses apontadas, isto é, naquelas em que não só a constituição deixa de estabelecer a eficácia do direito fundamental em causa nas relações entre particulares, como também a legislação privada não regula a matéria (nem mesmo com o recurso aos conceitos indeterminados e cláusulas gerais), é que o problema adquire maior relevo.
Em semelhantes situações, deverá avançar o operador para a apreciação do terceiro aspecto do processo metódico proposto. Cumpre verificar, pois, se há a presença do poder real e da situação de desigualdade por ele causada[74], como nas hipóteses aventadas no item 4.1.
Sendo positiva a resposta, entendemos que se deve aceitar a invocação direta das normas constitucionais consagradoras dos direitos fundamentais nas relações entre sujeitos privados[75]. As entidades privadas seriam, nesta conformidade, sujeitos passivos dos direitos fundamentais.
A justificativa para tolerar essa transposição direta reside na impossibilidade de na ausência de lei ou insuficiência dela deixar-se desprotegido o indivíduo em posição de inferioridade.
De mais a mais, se os direitos fundamentais foram pensados como mecanismos de defesa do indivíduo contra o Estado, na medida em que este, por ser titular de poder sobre aquele, representava ameaça a tais direitos, é plenamente justificável que, passando esse poder às mãos de outros sujeitos — agora privados, a proteção deferida aos direitos fundamentais, nessa nova relação de poder, seja análoga à outra[76].
Vale frisar que não se está sustentando uma eficácia absoluta, em termos tais que reste sacrificada a autonomia pessoal e a liberdade negocial[77], pois o fato de se reconhecer que um direito fundamental, em determinadas situações, vincula diretamente às entidades privadas não significa, só por isso, que esse mesmo direito vá prevalecer em relação a outro.
d) A ponderação dos direitos e interesses conflitantes
Nesse ponto, alcançamos o quarto degrau de nossa escalada metódica.
As situações em que a existência de um poder real pode levar ao desequilíbrio entre as partes da relação privada são tantas e tão variadas — podendo, inclusive, variar a intensidade com que tal poder se manifesta (alterando, por conseguinte, o grau de desequilíbrio), que não seria razoável definir, em abstrato, em quais delas prevaleceriam os direitos fundamentais esgrimidos, por um particular, contra uma entidade dotada de tal poder.
A isso se acresce o fato de que as entidades particulares, a par de serem tidas como sujeitos passivos dos direitos fundamentais nessas situações de desequilíbrio, também são titulares de direitos de mesma natureza e de outros igualmente tutelados pela constituição[78], de modo que a vinculação destas aos citados direitos não pode se dar nos mesmos termos do poder público.
Cumprirá ao operador, portanto, efetuar a ponderação, em concreto, dos direitos e interesses conflitantes, levando em consideração as circunstâncias acima apontadas e a natureza destes.
Assim quanto maior a intensidade do poder a que o particular se vê submetido e, conseqüentemente, a desigualdade verificada no caso concreto, maior será a sujeição da entidade poderosa ao direito fundamental em causa e a margem de sacrifício da autonomia pessoal admitida[79].
Nessas situações, a presença da desigualdade acaba por reduzir a esfera de liberdade de um dos sujeitos, de maneira que, quanto menor seja a liberdade da parte fraca, maior deve ser a intensidade da proteção.
Assim, afastada a liberdade e igualdade entre os sujeitos da relação, que constituem, segundo a melhor doutrina, as razões justificadoras da proteção conferida à autonomia pessoal, descabe protegê-la em detrimento dos direitos fundamentais lesados.
Nesse passo, caso a resposta à indagação antes formulada (“c”) seja negativa, vale dizer, tratando-se de relações entre sujeitos privados em situação de efetiva igualdade, o tratamento da questão sofrerá algumas adaptações.
Vale lembrar que valem aqui as mesmas considerações feitas nas alíneas anteriores[80]. O que ora se vai expor diz respeito às situações — entre indivíduos em posição de igualdade — em que não exista preceito legal expresso regulando o caso, e que não seja possível resolvê-lo através dos conceitos indeterminados e cláusulas gerais de direito privado.
Ausente a situação de poder conducente à fragilidade de uma parte em relação à outra, deverá o operador, mais uma vez, recorrer à técnica da ponderação. Terá, pois, que verificar se o direito fundamental invocado pelo indivíduo deve prevalecer em face do direto ou interesse da outra parte. Vale dizer, cumprirá examinar se a invocação direta do preceito constitucional consagrador do direito fundamental em causa é justificada pelas circunstâncias do caso concreto.
Julgamos, a princípio, que, em face da posição de igualdade entre os sujeitos, não se poderá admitir essa vinculação direta, de forma a atribuir ao indivíduo a posição de sujeito passivo dos direitos fundamentais em causa.
Os indivíduos, valendo-se do direito ao livre desenvolvimento da personalidade e da liberdade negocial, estariam livres para pautar seus comportamentos e ajustar entre si mesmos seus direitos e interesses. A liberdade seria, pois, a regra nas relações entre sujeitos iguais.
É essa, aliás, a lição de Vieira de Andrade: “Por isso, propomos que a nossa Constituição seja interpretada no sentido de consagrar o princípio da liberdade como regra das relações entre indivíduos iguais. Os indivíduos, no uso do seu livre direito ao livre desenvolvimento da personalidade, devem poder autodeterminar os seus comportamentos e conduzir o seu projeto de vida, tal como lhes compete em primeira linha harmonizar e ajustar entre si, no uso da liberdade negocial, os seus direitos e interesses[81]”.
Afirmar a liberdade enquanto regra, contudo, não significa atribuir ao indivíduo a possibilidade de comportar-se — ante a lacuna do ordenamento privado e pressuposta a igualdade — de maneira a violar o direito fundamental de outro sujeito de mesma natureza.
É sob essa ótica que se impõe a fixação de limites a essa compreensão.
Ao nosso ver, o limite à liberdade — na dimensão em que foi referida — deve ser buscado na dignidade da pessoa humana, enquanto conteúdo essencial de todos os direitos fundamentais[82]. Vale dizer, não se deverá tolerar nenhum comportamento que ponha em risco tal valor, vez que “a dignidade humana, enquanto conteúdo essencial absoluto do direito, nunca pode ser afectada – essa é a garantia mínima que se pode extrair da Constituição[83].”
Nessa mesma linha, conclui Vasco Pereira da Silva, que, “entre iguais, fora do âmbito das relações de poder, não faz sentido falar de destinatários dos direitos, liberdades e garantias. Aqui, só se justifica a aplicação dos direitos fundamentais enquanto dimensão objectiva da ordem jurídica, impondo limites à liberdade individual, evitando que os cidadãos ponham em causa, pela sua actuação, o núcleo essencial dos direitos fundamentais de outrem[84].”
Por fim, diga-se que, embora se possa admitir a “diminuição” do âmbito de proteção encartado pelos preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais, mesmo nos casos em que a ameaça aos valores contidos em tais direitos seja tolerada pelo próprio indivíduo, como nas hipóteses de renúncia e auto-restrição, não se poderá aceitar que ele disponha do núcleo essencial, pois esse seria indisponível[85] até para o seu próprio titular.