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A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas:

a perspectiva lusitana da questão

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20/06/2016 às 13:24
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5. A questão da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares na jurisprudência constitucional portuguesa

Inicialmente, cumpre lembrar que, no ordenamento jurídico português, não existe um meio específico para a defesa dos direitos fundamentais à semelhança do recurso de amparo espanhol ou da queixa constitucional, presentes nos direitos alemão, belga e suíço[86]. Isto não quer dizer, todavia, que, no cenário lusitano, tais direitos restem desprotegidos, pois o Tribunal Constitucional poderá tutelá-los através dos mecanismos de controle de constitucionalidade.

Sem caber aqui, por restrição temática, a análise destes mecanismos, limitar-nos-emos a referir que é no controle concreto, por via do recurso de inconstitucionalidade, que o Tribunal Constitucional encontra, em princípio, a sede oportuna para se pronunciar sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais[87].

Apesar da sonoridade que a presente discussão adquiriu em terras lusitanas, vale dizer que ainda não há, por parte do Tribunal Constitucional, qualquer manifestação expressa sobre a forma e a intensidade da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, não tendo esta Corte adotado ou rejeitado qualquer das teorias aqui tratadas, conforme nossa pesquisa jurisprudencial nos levou a concluir e segundo a abalizada afirmação de Gomes Canotilho[88].

Sem embargo, algumas decisões merecem referência.

No acórdão 198/85[89], relatado por J. M. Cardoso da Costa, o Tribunal Constitucional, analisando a argüição de inconstitucionalidade do art. 1216º do Código de Processo Civil, que autoriza o administrador da massa a abrir toda correspondência dirigida ao falido, asseverou que “independente do preciso significado que deva atribuir-se em geral, ou no âmbito de outros direitos fundamentais, à extensão da vinculatividade de tais direitos também às entidades privadas, o que é dizer, às relações jurídico-privadas (art. 18º, n.º 1, da Constituição), afigura-se indiscutível que o direito ao sigilo de correspondência é um daqueles que, por sua natureza, não pode deixar de ter um alcance erga omnes, impondo-se não apenas ao poder publico e a seus agentes, mas igualmente no domínio das relações entre privados.”

Note-se que a Corte Constitucional portuguesa, embora reconhecendo que certos direitos fundamentais foram talhados para valeram (rectius: terem eficácia) também nas relações entre particulares, limita-se a insinuar a existência do problema, sem, no entanto, posicionar-se em relação à extensão e forma da vinculação a que tais relações estariam submetidas.

Noutro caso, decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão 205/00, postulavam os autores o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno e uma casa de habitação nele edificada, ao passo que os réus queriam, em reconvenção, que fossem eles, proprietários da referida casa, declarados igualmente proprietários do respectivo logradouro, adquirido por acessão.

Todas as instâncias, inclusive o Superior Tribunal de Justiça, deram ganho de causa aos réus, por força do art. 1340º do Código Civil português, aplicado no sentido de que “se alguém, autorizado pelo proprietário de um terreno, nele construir uma obra que lhe acrescente um valor superior ao que ele tinha antes, o autor da incorporação adquire automaticamente a propriedade do terreno, pagando o valor que este tinha antes da obra”. Essa, pois, a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada.

argumentavam os recorrentes “que o direito de propriedade, sendo um direito constitucionalmente garantido e análogo aos direitos, liberdades e garantias, vincula directamente entidades públicas e privadas e só pode ser restringido com respeito pelas exigências definidas no artigo 18º da Constituição, nomeadamente a de que as restrições se limitem aos casos expressamente previstos na Constituição. Ora, a Constituição não permite a expropriação senão por utilidade pública, devendo entender-se que a acessão se traduz numa expropriação por utilidade particular. Assim, não existindo norma constitucional que admita a expropriação por utilidade particular, o artigo 1340º do Código Civil ‘constitui uma restrição ao direito constitucional fundamental de propriedade privada, restrição essa que não está expressamente prevista na Constituição como impõe o n.º 2 do artigo 18.º’, sendo portanto inconstitucional”.

Deixando-se de lado a solução normativa e os reparos às premissas dos recorrentes feitos pelo Tribunal Constitucional, atendo-nos, assim, aos aspectos relevantes para o tema ora tratado, percebe-se no acórdão em cotejo, embora não diretamente e tampouco com a intenção de fixar posição, que se cuida de situação na qual se opera a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais por intermédio da mediação do legislador.

Como se pode constatar de sua leitura mais atenta, ao asseverar que “(...) a acessão constitui, antes de mais, um mecanismo de resolução de um conflito de direitos, gerado pela sobreposição vertical de duas propriedades, a do dono da obra e a do dono do solo onde ela foi incorporada” e que “na verdade, perante a ocorrência de uma sobreposição de duas propriedades distintas, não suportada por um direito de superfície validamente constituído (nem em nenhuma outra situação legalmente admitida de sobreposição de propriedades), a lei vem arbitrar o possível conflito daí emergente, mediante a fixação abstracta de um critério de prevalência”, está o Tribunal Constitucional a afirmar que cabe ao legislador, através das leis, dar o alcance dos direitos fundamentais nas relações entre particulares[90].

Isto não significa, entretanto, que se possa dizer que esta decisão consagre a teoria da eficácia mediata, pois o entendimento de que cabe a lei, num primeiro plano, regular as situações conflituosas entre os direitos fundamentais dos sujeitos privados, também é sustentado pelos defensores da eficácia imediata[91], consoante supra exposto.

Por fim, cite-se o acórdão 259/98, no qual o Tribunal Constitucional, apreciando recurso que tem como pano de fundo ação de despejo, na qual se discutia o limite ao exercício, pelo senhorio, do direito de denúncia do arrendamento, em razão de alteração no Regime de Arrendamento Urbano, reconhece a noção dos direitos fundamentais como ordem objetiva de valores, cuja influência irradia por todo o sistema normativo, inclusive no Direito Civil, que deve observá-la na elaboração das suas normas.

Eis a passagem da decisão onde a questão é abordada:  “Mas o sistema de Direito Civil é influenciado jusfundamentalmente como os demais âmbitos do Direito. Isso é uma consequência do efeito de irradiação dos direitos fundamentais e da sua ‘propriedade como direito constitucional objectivo vinculante’ (H. C. Nipperdey). As normas sobre direitos fundamentais, enquanto princípios objectivos, valem para todos os âmbitos do direito. ‘O Estado está obrigado a tê-las em conta na legislação civil’ (Alexy)”.

Sucede que a mera afirmação acerca da noção de direitos fundamentais enquanto ordens de valores pouco ou nada diz quanto a adoção de qualquer das teorias de eficácia destes direitos entre particulares, uma vez que a mesma é reconhecida por todas as teorias, como retro apontado[92].


Conclusão

O tema tratado no presente estudo, conforme visto, pode ser enfocado sob várias perspectivas. A problemática aqui ventilada, qualquer que seja a abordagem escolhida, poderá dar margem ao surgimento de uma vasta gama de questões, que podem ir desde o sentido a ser dado ao instituto dos direitos fundamentais na ordem jurídica, até mesmo a definição do papel dos poderes Judiciário e Legislativo no âmbito da divisão dos poderes.

A problemática da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, portanto, longe de estar encerrada, encontra-se palpitante e verdadeiramente sedutora para aqueles que pretenderem empreender algum esforço investigativo em direção à essa questão.

Conforme enfatizado no início deste estudo, não pretendíamos esgotar o tema, mas apenas apresentá-lo, sem embargo de tentar — num esforço sobretudo simplificador, frise-se — dar o nosso contributo ao entendimento do assunto, oferecendo critérios coerentes e adequados à ordem jurídica portuguesa.

Esperamos, pois, que nossa empreitada tenha se revelado, em alguma medida, útil.


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Sobre o autor
Fabrício Torres Nogueira

Fabrício Torres Nogueira. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Professor de Direito Administrativo da Faculdade Ruy Barbosa (Grupo DeVry). Procurador do Banco Central do Brasil. E-mail: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Fabrício Torres. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas:: a perspectiva lusitana da questão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4737, 20 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49560. Acesso em: 17 nov. 2024.

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