1. Introdução:
A Procuradoria Geral da República, na pessoa do Excelentíssimo Senhor Rodrigo Janot, ajuizou Ações Diretas de Inconstitucionalidade opondo-se à normas Constitucionais dos Estados de São Paulo (ADI 5522), Espírito Santo (ADI 5517), Santa Catarina (ADI 5520), Tocantins (ADI 5528) e Amazonas (ADI 5536) que reconheceram os Delegados de Polícia destes Estados como integrantes de carreiras jurídicas.
Primeiramente, é de se destacar que esta movimentação de Janot é claramente sorrateira e corporativista, desprovido de qualquer comprometimento com a sociedade, o Procurador Geral dá as costas para os anseios sociais pelo andamento independente das investigações penais, sem qualquer amarra com quem quer que seja. Ora, Rodrigo, o tempo da inquisição acabou!
O Brasil aspira a construção de um futuro em que seja possível erradicação da corrupção e violência, e o caminho para isso se faz através do fortalecimento de nossas Instituições. Movimentações jurídicas ardilosas como esta nos levam à divisão e ao enfraquecimento, enquanto Estado Democrático de Direito. Oxalá, cheguemos a um dia em que cada entidade preocupe-se unicamente com sua atribuição Constitucional e não com a hipertrofia do poder através do esgotamento das demais.
2. O Delegado de Polícia a serviço da Democracia:
As funções de Polícia Judiciária do Delegado de Polícia, enquanto presidente das investigações policiais, se dividem quanto à natureza do ilícito a ser apurado:
- Crimes de menor potencial ofensivo – correspondem às contravenções penais e os crimes cuja pena máxima não supere dois anos, em razão de sua menor gravidade, é possível uma maior celeridade para a sua apuração, através do procedimento policial investigativo do Termo Circunstanciado de Ocorrência, cujas características estão delineadas no bojo da lei 9099/95;
- Crimes de médio potencial ofensivo – considera-se de gravidade mediana os crimes cuja pena máxima suplante dois anos, contudo, não avance quatro anos sendo, por isso, possível a concessão de fiança aos presos em flagrante delitivo pelo Delegado de Polícia. Após eventual concessão de liberdade provisória por meio de fiança, o Delegado de Polícia iniciará atividades investigativas que serão encadernadas em Inquérito Policial;
- Crimes de alto potencial ofensivo – também serão apurados pela via do Inquérito Policial, todavia, correspondem aos crimes em que não será possível a liberdade provisória através da fiança pela Autoridade Policial, por superarem os quatro anos de pena máxima;
- Crimes de altíssimo potencial ofensivo – aqueles cuja apuração será dada por meio de Inquérito Policial, entretanto, será possível a adoção de procedimentos investigativos especiais, em razão da notável gravidade destes crimes em apuração, tais como: colaboração premiada, infiltração de agentes, interceptação telefônica etc.
Tais atividades, por mais complexas que sejam, costumam ser erroneamente abordadas com um cunho reducionista pela doutrina processual brasileira. Frequentemente a investigação é relacionada como um instrumento a serviço unicamente da acusação, como se servisse tão somente para a imputação de condutas ilícitas aos investigados. Da mesma forma, a característica de sua inquisitoriedade é sublinhada, como forma de se proceder a uma relação anacrônica com procedimentos que habitam as sombras de um passado que deixou cicatrizes em nossa história processual, mas não saudade. Desta abordagem, resulta uma visão superficial, negativa e acanhada da etapa investigativa pré-processual.
A ordem jurídica do Estado Democrático de Direito impôs à todo universo jurídico sua adaptação aos ditames impostos pelos Direitos e Garantias Fundamentais esculpidos no texto Constitucional. Para Bobbio, essa transição se opera na mudança dos modelos de Estado Despótico e Absoluto para o modelo de Estado de Direito:
No Estado Despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No Estado Absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de Direito, o indivíduo tem, em face do Estado ,não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de Direito é o Estado dos cidadãos. (1992, p.61)
Assim, também a atividade investigativa foi compelida à mudança, exemplo disso se deu quando em 1988 a Constituição estabeleceu que as diligências de busca e apreensão deveriam ser precedidas de mandado expedido por autoridade judicial, sendo que anteriormente era suficiente a presença do Delegado de Polícia para que fosse possível a entrada dos policiais nas residências suspeitas. A Polícia Judiciária não deixou de realizar diligências de busca e apreensão, apenas teve que se adequar às exigências dos novos tempos e prosseguir em suas atividades.
A atividade policial corresponde ao serviço estatal mais próximo do cidadão, em razão desta vicinalidade, impõem-se às Autoridades Policiais que se mostrem receptivos aos avanços trazidos pela legislação que conduzam à maior lisura de seus atos, coadunando-se ao vetor do respeito absoluto às garantias fundamentais, em consonância com os ditames erigidos pela doutrina penal garantista. Mudar sim, desde que os ventos da mudança venham para somar esforços em favor da sociedade, sem jamais servir para diminuição de garantias que ofusquem os imperativos de respeito à cidadania e dignidade humana, enquanto fundamentos da República Federativa do Brasil.
Esta é a lição que se extrai das palavras de Cesar Roberto Bitencourt (2012, p.34-35):
Tomando como referente o sistema político instituído pela Constituição Federal de 1988, podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, que o Direito Penal no Brasil deve ser concebido e estruturado a partir de uma concepção democrática do Estado de Direito, respeitando os princípios e garantias reconhecidos na nossa Carta Magna. Significa, em poucas palavras, submeter o exercício do ius puniendi ao império da lei ditada de acordo com as regras do consenso democrático, colocando o Direito Penal a serviço dos interesses da sociedade, particularmente da proteção de bens jurídicos fundamentais, para o alcance de uma justiça equitativa.
A doutrina do Garantismo Penal tem em Luigi Ferrajoli seu expoente, na obra “Direito e Razão”, onde minudencia sua teoria, o autor assenta o seu Garantismo Penal, também chamado de “cognitivo” ou de “legalidade estrita”, sobre dez princípios axiológicos fundamentais ao Direito Penal e Processual Penal (2010, p.91):
- “Nulla poena sine crimine” (princípio da retributividade) – somente haverá pena se houver havido o crime;
- “Nullum crimem sine lege” (princípio da reserva legal) – sem lei penal anterior não há crime;
- “Nulla lex (poenalis) sine necessiate” (princípio da necessidade) – sem necessidade não se criam leis penais;
- “Nulla necessitas sine injuria” (princípio da lesividade) – sem lesão não há necessidade do emprego da lei penal;
- “Nulla injuria sine actione” (princípio da materialidade) – Se não há exteriorização da conduta, não há lesão);
- “Nulla actio sine culpa” (princípio da culpabilidade) – Não há ação típica sem culpa;
- “Nulla culpa sine judicio” (princípio da jurisdicidade) – A culpa há de ser verificada em regular juízo;
- “Nulla acusatio sine accusacione” (princípio da separação entre juiz e acusação) – a acusação não pode ser feita pelo próprio juiz;
- “Nulla accusatio sine probatione” (princípio do ônus da prova) – a acusação é que deve ser provada, não a inocência;
- “Nulla probatio sine defensione” (princípio do contraditório) – Sem defesa e contraditório não há acusação válida.
Assim, o modelo garantista engloba diversas fases, correspondendo à um modelo universal que irradia seus reflexos em todo sistema da persecução penal, desde a criação da lei até o cumprimento final da sanção penal. Em suma, podemos considerar como a política criminal na qual a intervenção mínima estatal é soberana no sistema normativo encarregado da “persecutio criminis”. Serve de trava à atuação indiscriminada do Estado ante as liberdade individuais, reservando a força de seu poder punitivo como fronteira última, “ultima ratio”.
As fronteiras que autorizam a intervenção jurídico-penal devem resultar de uma função social do Direito Penal, de tal maneira, que sua a missão consista em garantir a seus cidadãos uma convivência pacífica, livre e socialmente segura, respeitando sua existência enquanto cidadão no Estado Democrático de Direito.
Sob o prisma de Claus Roxin, a função basilar do Direito Penal, e por consequência de toda persecução penal, é a defesa dos bens jurídicos fundamentais para a vida harmônica em sociedade, doutrina esta que é alcunhada de Funcionalismo Penal Teleológico-racional, conforme se extrai de suas lições:
[...] em um Estado Democrático de Direito, modelo teórico de Estado que eu tomo por base, as normas jurídico-penais devem perseguir somente o objetivo de assegurar aos cidadãos uma coexistência pacífica e livre, sob a garantia de todos os direitos humanos. Por isso, o Estado deve garantir, com os instrumentos jurídico-penais, não somente as condições individuais necessárias para uma coexistência semelhante (isto é, proteção da vida e do corpo, da liberdade de atuação voluntária, da propriedade etc.), mas também as instituições estatais adequadas para este fim (uma administração da justiça eficiente, um sistema monetário e de impostos saudáveis, uma administração livre de corrupção etc.), sem e quanto isso não se alcançar de outra forma melhor. (2009, p. 16-17)
Assim, os tempos atuais infligem que a investigação policial revista-se em instrumento garantista, capaz de ponderar a relação processual, sem causar prejuízo à eficácia da persecução penal. Afinal de contas, o Garantismo Penal nada mais é do que o Direito Penal da Democracia, em sintonia com o respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais. Para isso, é necessário o rompimento de preconceitos e idéias equivocadas, como esta falácia de que o inquérito é um instrumento a serviço da acusação e não como um “elemento neutro e imparcial de apuração da verdade” que realmente é (CABETTE, 2002, p.138).
Observa-se relação umbilical entre o trabalho investigativo da Polícia Judiciária e a consecução dos axiomas do Garantismo Penal de Ferrajoli, em sintonia com o Funcionalismo Penal de Claus Roxin, na medida que são os elementos colhidos no bojo da investigação que possibilitarão a verificação da lesividade da conduta ao bem jurídico penalmente tutelado (“nulla necessitas sine injuria”), da exteriorização do comportamento que opera a subsunção formal e material ao tipo penal (“nulla injúria sine actione”). Do mesmo modo, serão os indícios mínimos de autoria delitiva que servirão de base para a análise da culpabilidade e da responsabilidade pessoal do agente (“nulla actio sine culpa”), os elementos de prova carreados por autoridade neutra, diferente do tripé da relação processual, servirão de lastro à espada da acusação (“nullum judicium sine accusatione”), bem como ao escudo da defesa (“nulla probatio sine desensione”). Tudo isso levado às raias oficiais do Poder Judiciário, instância adequada à resolução dos conflitos entre os homens civilizados, para que com base nos elementos investigativos, corroborados em atos de processo penal, possa exarar sua livre convicção motivada acerca dos fatos (“nulla culpa sine judicio”).
Parcela da doutrina aduz que o Brasil possui um Sistema Processual Penal Misto (ou Francês), decomposto em duas etapas distintas: uma primeira, de índole inquisitiva, com instrução escrita e secreta, onde não vigora o contraditório, pois ainda não se fala em acusação, com foco, unicamente, na apuração de autoria e materialidade do fato delitivo; a segunda, onde se opera o contraditório e a ampla defesa, vigorando, em regra, os princípios da publicidade e oralidade. Deste modo, para o autor as investigações policiais brasileiras se inserem neste primeiro momento e a fase processual propriamente dita seria a subsequente.
Nesta linha, Guilherme Nucci (2007, p. 104-105):
O sistema adotado no Brasil, embora não oficialmente, é o misto. Registremos desde logo que há dois enfoques: o Constitucional e o processual. Em outras palavras, se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal, poderíamos até dizer que nosso sistema é acusatório (no texto Constitucional encontramos os princípios que regem o sistema acusatório). Ocorre que nosso processo penal (procedimentos, recursos, provas, etc.) é regido por Código Específico, que data de 1941, elaborado em nítida ótica inquisitiva.
Em que pese o respeitável entendimento, a jurisprudência dos Tribunais Superiores [[1]] e a esmagadora maioria da doutrina processualista entende que o Brasil adota o Sistema Processual Penal Acusatório. Contudo, possui uma fase preliminar ao processo, na qual pesquisa-se os indícios de autoria e a prova de materialidade delitiva, arcabouço mínimo necessário para a propositura e início efetivo do processo penal.
Assumindo que nosso Processo Penal é calcado sobre os alicerces do Sistema Acusatório, e este modelo possui pilares que lhe dão supedâneo, um destes (e, porque não dizer, principal) é o respeito às garantias fundamentais do cidadão. Conforme ensina Geraldo Prado (2006, p. 104), o Sistema Acusatório se destaca pela “defesa dos direitos fundamentais do acusado contra a possibilidade de arbítrio do poder de punir ”.
Outro pilar a sustentar todo sistema é o “actum trium personarum”, pelo qual haverá cisão entre as funções da acusação, julgamento e defesa cada qual atribuído à pessoas distintas. Para Gustavo Badaró (2003, p. 109) essa divisão de tarefas é tão fundamental para a existência de nosso modelo que:
Eliminada a divisão de tarefas não há processo acusatório. Sem tal separação e inviabilizada a existência de uma verdadeira relação jurídica processual, não há que se falar em sujeitos de direito, sendo o acusado convertido em um objeto do processo. Na verdade, sem separação de funções e sem relação processual, não há sequer um verdadeiro processo.
Inclusive, Frederico Marques (2009, p. 49) chega a promover o modelo acusatório como sistema ideal:
Os atos de colaboração, entre os interessados no litígio penal e o juiz, estão subordinados a uma forma procedimental em que não se ponha em risco a imparcialidade do órgão jurisdicional e na qual o jus puniendi do Estado e o direito de liberdade do réu sejam amplamente focalizados e debatidos. Nisto consiste o procedimento acusatório, único modus procedendi compatível com o verdadeiro processo penal.
Realmente, não há que se admitir um modelo processual penal sob a vigência de um Estado Democrático, de índole Liberal, que se aparte da sistemática de divisões de funções, as quais, segundo Gustavo Badaró (2003, p. 107): “tem a mesma finalidade que o princípio da separação dos poderes do Estado: impedir a concentração de poder, evitando que o seu uso se degenere em abuso”.
A investigação preliminar policial propriamente não se insere de forma direta no Sistema Acusatório, pois configura etapa pré-processual, onde serão colimados elementos da infração penal, através de um conjunto de diligências a serem efetuadas pela Polícia Judiciária, com fulcro na apuração da infração penal e sua autoria. Devemos com urgência abandonar e rechaçar entendimentos absurdos de que a atividade policial é um apêndice a serviço do órgão acusador. Pelo contrário, a atividade de Policia Judiciária configura um embate pela aproximação máxima possível da veracidade dos fatos que orbitam o fato delitivo, pois o inquérito é veículo imparcial, podendo trazer em seu bojo elementos de interesse da defesa ou da acusação. Desta forma, reduzir a investigação à mero “fornecedor de elementos ao titular da ação penal é manietar sua verdadeira função, muito mais ampla e relevante à consecução da Justiça” (CABETTE, 2002, p. 147).
Dizer que o Inquérito Policial e os atos que o circundam são “meramente” informativos é desconhecer a realidade dos fatos da vida cotidiana. Basta perguntar a um preso em flagrante se a sua prisão, decretada pela Autoridade Policial, e os efeitos que dela advém, ou mesmo indagar a um indiciado se o ato policial de indiciamento não produziu qualquer consequência em sua vida particular.
No modelo brasileiro, é inegável que a investigação policial possui grande importância na elucidação dos fatos, pois que a ampla maioria das apurações preliminares acontecem em sede de inquéritos policiais. Além disso, possui excepcional função na consecução da garantia do devido processo penal, em especial no que se refere a “paridade de armas entre acusação e defesa” (TUCCI, 1993, p. 183-186).
A leitura do art. 5º, LV, da Constituição Federal, pelo qual é garantido aos litigantes, seja em processo judicial ou administrativo, bem como aos acusados em geral, o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos inerentes, deve ser feita à luz do garantismo, não havendo qualquer obstáculo para a extensão ao inquérito policial. Este é o entendimento de Aury Lopes Jr. e Ricardo Jacobsen Gloeckner (2013, p. 470): “[...] o ponto crucial nesta questão é o art. 5º, LV, da CB, que não pode ser objeto de leitura restritiva”.
Nesta mão, não há motivo algum para assombro diante da assertiva de existência de contraditório e ampla defesa em sede de Inquérito Policial, pois, tendo em vista, que estas garantias permeiam todas as funções estatais, sejam elas típicas ou atípicas. Sendo o Inquérito Policial um procedimento de índole administrativa, por excelência, estranheza causaria não haver contraditório e ampla defesa durante os atos que o compõem, atos estes que se revestem de enorme importância, pois podem culminar na privação do “status libertatis” do cidadão.
Contudo, é importante ressaltar que o contraditório na vigência da investigação preliminar não se dá de forma plena, pois que não existe, ainda, relação jurídico-processual, não estando presente a estrutura dialética que caracteriza o processo. Não havendo, assim, pretensão acusatória, tendo em vista que o fulcro do procedimento investigativo é a colheita de elementos indiciários de autoria, um mínimo probatório, sem o qual não se justifica a dura incidência do processo penal e seus efeitos na vida do cidadão.
Nesta perspectiva, Lauria Tucci:
[...] de modo também induvidoso, reafirmou os regramentos do contraditório e da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, estendendo sua incidência, expressamente, aos procedimentos administrativos... ora, assim sendo, se o próprio legislador nacional entende ser possível a utilização do vocábulo processo para designar procedimento administrativo e, consequentemente, a de procedimento administivo-persecutório de instrução provisória, destinado a preparar a ação penal, que é o inquérito policial. (apud LOPES Jr.; GLOECKNER, 2013, p. 471)
O caráter sigiloso e inquisitivo correspondem ao cerne de qualquer investigação, na medida que configuram salvaguarda da eficácia da persecução penal, não infringindo a igualdade processual entre acusação e defesa.
Conforme Jimenez Asenjo salienta:
É difícil estabelecer igualdade absoluta de condições jurídicas entre o indivíduo e o Estado no início do procedimento, pela desigualdade real que em momento tão crítico existe entre um e outro. Desigualdade provocada pelo próprio criminoso. Desde que surge em sua mente a idéia do crime, estuda cauteloso um conjunto de precauções para subtrair-se à ação da Justiça e coloca o Poder Público em posição análoga à da vítima, a qual sofre o golpe de surpresa, indefesa e desprevenida. Para estabelecer, pois, a igualdade nas condições de luta, já que se pretende que o procedimento criminal não deve ser senão um duelo nobremente sustentado por ambos os contendores, é preciso que o Estado tenha alguma vantagem nos primeiros momentos, apenas para recolher os vestígios do crime e os indícios de culpabilidade do seu autor. (apud SCARANCE FERNANDES, 1999, p. 51)
Desta forma, na fase indiciária justifica-se a existência de características próprias, como forma de propiciar alguma desigualdade em favor do Estado, a fim de realizar melhor colheita de indícios a respeito do fato criminoso.
A investigação policial preliminar ao processo é, sobretudo, uma garantia do cidadão contra apressados e errôneos juízos, pois devemos sempre ter em mente que atuação processual penal do Estado configura uma violência na vida particular do cidadão, de tal modo que somente se justifica incisão da persecução processual penal contra aquele sobre quem pairar mínimos indícios de culpabilidade delitiva, colhidos por órgão neutro e diverso daqueles envolvidos na relação processual.
O Estado, enquanto Ente uno de poder, opera com cisão de tarefas e funções de modo a propiciar, da melhor maneira possível, a consecução de suas finalidades primordiais da Administração Pública, que nada mais é que a indisponibilidade do interesse público e a supremacia deste sobre o particular, binômio este que corresponde às “pedras de toque” do Direito Administrativo.
Conforme as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p.57):
Todo o sistema de Direito Administrativo, a nosso ver, se constrói sobre os mencionados princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e indisponibilidade do interesse público pela Administração. Em verdade, como bem o disse Garrido Falia, o Direito Administrativo se erige sobre o binômio “prerrogativas da Administração - direitos dos administrados”.38 É o entrosamento destes dois termos que lhe delineia a fisionomia. Sua compostura, pois, irá variar de um para outro sistema jurídico positivo, retratando uma feição mais autoritária ou, opostamente, um caráter mais obsequioso aos valores democráticos
Nesta medida, o Estado atua tanto como investigador, como acusador, bem como juiz, tendo em vista que todas essas funções se dão pela via oficial. Todavia, há a divisão destas tarefas entre diferentes órgãos competentes, de modo a propiciar a maior (e melhor) isenção e evitar a contaminação dos atos. Porém, enquanto ente único, qualquer medida que vise debilitar qualquer dessas funções, levará ao enfraquecimento do próprio Estado de Direito, como um todo.
A imparcialidade é o ponto fulcral que emerge das atividades de polícia judiciária, a qual deve preocupar-se unicamente com a maior coleta de informações possível acerca dos acontecimentos, podendo seus resultados servirem para a comprovação da infração e de sua autoria, bem como para constatar a inexistência delitiva ou a negativa de autoria de um cidadão inicialmente considerado suspeito. Sob este prisma, Eduardo Espínola Filho afirma: “mister se faz não desatender nunca a que o inquérito não é um instrumento de acusação; e, sim, uma investigação destinada ao descobrimento da verdade” (1942, p.265-266).
O que insere a investigação policial como instrumento útil ao nosso Sistema Acusatório é justamente a imparcialidade e neutralidade dos atos policiais, propiciando uma divisão bem delimitada das funções dos atuantes no processo penal, evitando a deturpação e contaminação que conduzem à parcialidade. Esta neutralidade propicia ao órgão acusador visão tranquila do que foi apurado, além de manter o magistrado distante das operações investigatórias, não contaminando sua opinião e mantendo a basilar imparcialidade de seu julgamento.
3. A ultratividade jurídica da carreira do Delegado de Polícia
Fala-se na ultratividade jurídica do cargo de Delegado de Polícia, pois, conforme veremos, este sempre foi e será a medula das atividades desempenhadas pela Polícia Judiciária, haja vista a função de “primeiro garantidor da legalidade e da Justiça” desempenhada pela Autoridade Policial, conforme destacou o Ministro Marco Aurélio Mello na oportunidade de julgamento do Habeas Corpus 84548/SP.
A formação jurídica imposta ao Delegado de Polícia configura uma vantagem qualitativa da polícia brasileira em relação à outros países, possibilitando competente atuação jurídica nos atos investigativos, no sentido de possibilitar uma colheita de provas capaz de propiciar a já referida paridade de armas entre acusação e defesa durante o processo penal. Além disso, o conhecimento oriundo da Ciência Jurídica, propicia à Autoridade Policial melhor compreensão e respeito aos Direitos Humanos do cidadão envolvido em investigação, afinal de contas foi a luz oriunda do Direito que retirou a humanidade da escuridão da ignorância.
Para discutirmos com propriedade o presente, se mostra necessário voltarmos nossos olhos à história, para a verificação da origem de nossos institutos, como maneira de melhor entendermos o âmago que compõe o espírito daquilo que pretendemos analisar, pois, quando o passado não ilumina o futuro, o espírito vive em trevas[[2]].
A estruturação do serviço policial no Brasil, de acordo com Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos (2015, p. 77), ocorreu em 1832, com a criação do Código de Processo Criminal, quando o serviço de investigação passou a ser conduzido pelo Juiz de Paz, com atribuições que, atualmente, correspondem às exercidas pelos Delegados de Polícia e Juízes de Direito. Tendo em vista que os Juizes de Paz eram eleitos, ao mesmo modo que os vereadores municipais, a função decorria de influência política local, não existindo qualquer tipo de isenção ou imparcialidade em sua atuação.
A nomenclatura “Delegado de Polícia” é instituída pela Lei n.º 261 de 1841, responsável pela alteração substancial do Código de Processo Criminal de 1832, instituiu as figuras:
- Chefe de Polícia – nomeados pelo Imperador ou pelos Presidentes dos Estados, escolhidos dentre os Desembargadores e Juízes de Direito, exercendo as funções de superioridade hierárquica em face das demais Autoridades Policiais a ele subordinadas;
- Delegados e Subdelegados – escolhidos entre Juízes e Cidadãos, sendo todos “amovíveis, e obrigados a aceitar”.
O Código de Processo Penal de 1941, vigente até os dias atuais e remendado por incontáveis reformas pontuais ao longo dos anos, reformulou a atividade investigativa, conferindo ao Delegado de Polícia a sua chefia e condução. Em defesa da manutenção do Inquérito Policial, a Exposição de Motivos, em seu ítem IV, preleciona:
[...] em favor do inquérito policial, como instrução provisória antecedendo a propositura da ação penal, um argumento dificilmente contestável: é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas. [...] Pode ser mais expedito o sistema de unidade de instrução, mas o nosso sistema tradicional, com o inquérito preparatório, assegura uma justiça menos aleatória, mais prudente e serena.
Em que pese a previsão das atividades de polícia judiciária de forma expressa no Código de Processo Penal, até a Constituição Federal de 1988 as funções de Delegado de Polícia eram preenchidas de forma comissionada. Com o advento da Carta Cidadã nasce o “Delegado de Polícia de carreira”, quando a investidura no cargo passou a ser precedida de concurso público, podendo, enfim, estabelecer-se efetivamente como carreira jurídica e imparcial que é. Estamos diante de mudança relativamente recente de paradigma, mas fundamental para o reconhecimento do cargo como “um alicerce essencial para a proteção dos direitos constitucionais e da segurança pública nacional” (ZANOTTI; SANTOS, 2015, p. 77).
Configura direito fundamental e corolário da dignidade da pessoa humana do cidadão, se eventualmente for investigado, contar com a análise jurídica e imparcial de um profissional capacitado para tanto. Assim, devemos considerar o texto da Constituição como um piso mínimo protetivo, nada impedindo que outras medidas infraconstitucionais avancem, aumentando o espectro de salvaguarda, sem, contudo, jamais desdizer os mandamentos constitucionais.
Deste modo, ao longo da nova ordem Constitucional, inaugurada em 1988, algumas medidas infraconstitucionais foram tomadas para o reconhecimento efetivo daquilo que a carreira de Delegado de Polícia sempre foi: uma carreira jurídica a serviço da Justiça, da manutenção da ordem pública e da pacificação social. Nesta toada, parcela dos estados membros da federação procederam emendas aos seus textos constitucionais estaduais, conferindo este “status” à carreira: Santa Catarina, São Paulo, Amapá, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Ceará, Maranhão, Goiás, Pará e Paraná.
Para tanto, tais emendas inseriram rol de requisitos mínimos necessários para o ingresso dos candidatos, dentre os quais destacam-se àquelas inseridas pela Emenda Constitucional n.º35/201[3] ao texto da Constituição Paulista[3]:
- Bacharelado em Direito;
- Ingresso por concurso público, inclusive, o estado de São Paulo exige a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases do certame;
- Tempo mínimo de dois anos de prática atividades jurídicas – o estado de São Paulo dispensa o tempo de atividade jurídica para os ocupantes de cargo de natureza policial civil por, no mínimo, dois anos;
Ao lado destes requisitos mínimos para os candidatos que almejam integrar as fileiras da Polícia Civil do Estado de São Paulo, a reforma Constitucional trouxe o reconhecimento de que suas funções Constitucionais passam a ser: a atividade de polícia judiciária e apuração de infrações, sendo, por isso, essenciais à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica. Para o desempenho deste mister, assegurou aos Delegados de Polícia a independência funcional pela livre convicção motivada de seus atos.
Não podemos propriamente dizer que estas alterações importaram propriamente em mudanças, pois o que se operou não foi uma modificação, mas sim recognição de uma realidade que já se impunha ao longo de toda história dos serviços da Polícia Judiciária à população. No entanto, isso não implica dizer que a alteração foi inócua, pelo contrário, cada palavra inserida traz consigo o peso da responsabilidade às Autoridades Policiais, para que diligenciem diuturnamente em seus atos, como forma de se tornarem melhores garantidores dos direitos fundamentais.
De tal modo que, de acordo com Marcelo de Lima Lessa o diário controle da legalidade dos atos de prevenção e repressão criminal, será, daqui por diante, deveras otimizado:
Os efeitos práticos da inovação, num primeiro momento, serão melhor sentidos pelos Delegados de Polícia que, de fato, exercem atividade-fim da polícia judiciária, quais sejam, aqueles que atendem os plantões permanentes, presidem inquéritos policiais e capitaneiam as investigações criminais. Assim, beneficia-se, também, a sociedade, a qual terá, doravante, um agente político do Estado próxima de si (LESSA, 2012, p. 3).
A (tão sonhada) independência funcional garante que os Delegados de Polícia não estejam subordinados, em matéria de polícia judiciária, a nenhum outro órgão, poder público ou chefia, doravante cada Autoridade Policial encontra-se, unicamente, a serviço de suas convicções técnicas e jurídicas, desde que esclareça os fundamentos que o levaram a agir daquela maneira, sempre em conformidade com o ordenamento jurídico.
O Delegado de Polícia, então, passa a não estar mais sujeito à sabatinas sobre suas decisões motivadas e exaradas no exercício de suas funções legais, ressalvadas as hipóteses de culpa, má-fé ou abuso de autoridade. Assim, a hierarquia funcional entre os Delegados de Polícia habita o plano do controle administrativo, ou seja, da supervisão do serviço sob o aspecto formal. Este controle sempre existiu, e é salutar que assim se proceda, o que não se admite mais é a instauração de procedimentos administrativos objetivando a análise do poder decisório da autoridade, que é absolutamente independente, desde que alicerçado nas diretrizes vigentes do ordenamento jurídico pátrio.
Outro fator que merece análise é o conceito administrativo das “séries de classes”, usualmente adotado como critério de graduação entre membros da mesma carreira, “alude tão somente ao escalonamento hierárquico relacionado ao grau de complexidade das atribuições e nível de responsabilidade, como, por assim dizer, a direção de unidades e a divisão de serviços policiais” (LESSA, 2012, p. 5).
Contudo, é de se ter em mente que a hierarquia existe entre os Delegados de Polícia, ela somente não é cega e absoluta, vigorando uma espécie de hierarquia destinada à supervisão administrativa, pela qual ocorre a gestão de pessoas, serviços, materiais e finanças. O Delegado que ocupa esta cadeira diretiva, merece o respeito dos colegas que estão nas posições inferiores no organograma daquela unidade policial e estes, por sua vez, devem obediência às decisões organizacionais tomadas pela chefia, na medida que estes também devem observar a independência funcional do superior.
Para que a soberania das decisões da Autoridade Policial seja estabelecida é imperativo que todos os atos de polícia judiciária sejam motivados, angariando elementos que serão úteis para sustentar o posicionamento tomado, destruindo qualquer reivindicação que vise menosprezar o posicionamento exarado.
A base Constitucional da independência funcional nos atos de polícia judiciária é importante conquista, a qual não deve ser desmerecida, pois as prerrogativas constitucionais são o caminho para o fortalecimento da carreira de Delegado de Polícia, em benefício de toda sociedade, um bastião da defesa dos Direitos Fundamentais, da Dignidade Humana, da manutenção ordem pública e da edificação do bem comum.
Na esteira destas conquistas constitucionais estaduais, surge a lei 12.830/2013, com o escorço de disciplinar aspectos relevantes da investigação policial, capitaneada pelo Delegado de Polícia, salientando, em seu art. 2º, que “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado”.
Não podemos, de maneira alguma, considerar que o dispositivo em comento representou inovação no universo jurídico brasileiro, neste diapasão, Eduardo Cabette (2013, p. 14):
Num primeiro aspecto é assustador que se viva num país onde é necessária uma lei para dizer o óbvio. Mas, é assim mesmo. Quanto mais atrasado o grau de civilização mais necessidade se tem de regulamentar milimetricamente a tudo. Precisamos, por exemplo, que um Estatuto nos diga que devemos respeitar os idosos, as crianças e os adolescentes. Necessitamos de uma lei que nos indique que a violência doméstica contra a mulher é uma aberração que merece reprimenda. Olhando por esse prisma até que não é tão deprimente que tenha sido necessária tanta discussão e a edição de legislação para reconhecer em texto legal a natureza jurídica da atividade do Delegado de Polícia. Ora, de que outra natureza poderia ser essa atividade exercida exclusivamente por Bacharéis em Direito? De qualquer forma é fato que agora está posto em lei e também na Constituição do Estado de São Paulo em seu artigo 140.
A essencialidade do trabalho investigativo policial se mostra em duas faces: a primeira, de índole garantista, reside na imparcialidade da investigação conduzida por autoridade diversa daquela que irá exercer as funções acusatórias e na garantia fundamental do cidadão não ser processado sem que pairem sobre ele mínimos indícios de autoria e materialidade delitiva; a segunda, de cunho pragmático, verifica-se na medida que a esmagadora maioria dos processos criminais em trâmite no país oriundam de investigações conduzidas pela Polícia Judiciária, pois que não é permitido (ou admissível) que a Autoridade Policial selecione somente os casos de maior espectro midiático para sua atuação, pelo contrário, incumbe à Polícia Judiciária, unicamente, a salvaguarda dos bens jurídicos relevantes à sociedade, não devendo preocupar-se com retorno dos meios de comunicação social, ou mesmo com “marketing” institucional.
Ao afirmar que as funções exercidas pelo Delegado de Polícia são de exclusividade do Estado, a legislação prega a indelegabilidade à iniciativa privada, o que seria uma teratologia completa, representaria colocar a lápide que sepultaria o Estado Democrático de Direito. A persecução penal é função típica de Estado e assim deve ser entendida, não se cogitando, jamais, a concessão desta atividade à empresas particulares.
A lei 12830/13 consolida o Princípio do Delegado de Polícia Natural, no art. 2º, §4º, uma garantia da sociedade contra possíveis contrafações na fase investigativa, ao determinar que os procedimentos investigativos em curso somente poderão ser avocados ou redistribuídos por superior hierárquico, através de despacho fundamentado, pormenorizando os motivos e razões de interesse público que levaram a tal medida, bem como nas hipóteses de inobservância de procedimentos previstos em regulamento da instituição que causaram prejuízo à eficácia investigativa.
Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar postulam que, em face da inovação legislativa, o Princípio do Delegado de Polícia Natural encontra-se positivado em nosso ordenamento:
[....] o parágrafo 4º, de seu artigo 2º, que suscita a ideia de um princípio do delegado natural, na esteira noção mais geral de um princípio da autoridade natural (juiz natural, promotor natural e defensor natural). [...] Conquanto haja resistências da jurisprudência e da doutrina majoritária em admitir tal princípio do delegado de polícia natural, entendemos que já se trata de princípio positivado no sistema (2015, p. 118)
O nascimento e a guarida Constitucional do princípio em questão despontam para aplacar às repugnantes pressões sofridas pelo Delegado de Polícia, sejam elas de origem interna ou externa, garantindo a serenidade necessária para a realização deste valoroso mister.
Seguem por este ângulo Raphael Zanon e Rodolfo Luiz Decarli (2015, p.4):
Tal questão assegura uma independência tal que se perfaz na tranquilidade de uma investigação realizada pelo Delegado de Polícia, não se resumindo, apenas, àquela parcela majoritária da população que é desprovida de recursos materiais e poder político, mas a todo e qualquer cidadão que infrinja a lei penal, em especial a casta intocável dos poderosos. Também, como desdobramento do princípio do Delegado de Polícia natural, tais agentes não poderão ser destacados do inquérito policial a que presidem, nem ser desrespeitosamente designados para outra Delegacia de Polícia, quando atuam nos lindes do interesse público. Passa, ainda, a constituir direito fundamental da sociedade e das pessoas investigadas não só o acesso ao princípio do Juiz Natural e do Promotor Natural, mas também do Delegado Natural, com a correlata, importante e necessária garantia da inamovibilidade. O Delegado de Polícia, portanto, não poderá ser removido das investigações, a não ser que incida em desvios funcionais. O interesse público pede, invoca, grita, para que os agentes políticos da investigação revistam-se da devida independência, para a atuação serena e republicana.
Portanto, o princípio do Delegado de Polícia Natural se robustece enquanto garantia aos cidadãos que, ao serem investigados criminalmente, o serão por autoridade juridicamente competente, neutra à relação processual, a qual funcionará com tranquilidade que lhe é assegurada, não só em função da existência de dispositivos legais neste sentido, mas sim porque a isenção de seus atos é fundamental para a existência de um Sistema Acusatório equilibrado, em harmonia com os preceitos de um Estado Democrático de Direito.
Outra importante inovação legislativa, introduzida pela lei 12830/13, foi a instituição da inamovibilidade relativa para os Delegados de Polícia, na medida que a sua remoção somente se dará por ato fundamentado da autoridade competente para tanto. Em que pese a relevância inegável desta verdadeira conquista das Autoridades Policiais, ela ainda é imperfeita, mas já simboliza um passo rumo à plenitude das prerrogativas imprescindíveis para que seja auferida a consecução de um serviço efetivo à população.
Diante de todo o exposto até aqui, fica claro a essência jurídica do labor do Delegado de Polícia, no entanto, se ainda alguma dúvida restar, esta deve ser sumariamente rebatida quando da leitura do §6º do art. 2º da legislação em comento. Posto que passa a considerar o indiciamento ato privativo da Autoridade Policial, através de ato fundamentado e alicerçado em análise técnico-jurídica dos fatos, com a indicação de autoria, materialidade e suas circunstâncias. Ora, como uma autoridade estranha ao cosmo jurídico poderia proceder uma análise tão complexa sem possuir o mínimo supedâneo acadêmico e científico do Direito?
Aliás, é difícil compreender o raciocínio do Ministério Público Federal ao ajuizar ações diretas de inconstitucionalidade com fulcro na declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos que consideram a juridicidade dos atos dos Delegados de Polícia, afinal de contas se as funções investigativas não são consideradas jurídicas, porque o Ministério Público e a Magistratura admitem o tempo no exercício no cargo de Delegado para a contagem do tempo mínimo de atividade jurídica nos certames de ingresso para estas carreiras?
Disparate, kafkiano e incoerente sustentar o contrário do óbvio.
De acordo com Rafael Francisco Marcondes de Moraes, o indiciamento é “o ato pelo qual o Delegado de Polícia manifesta sua convicção jurídica motivada ao imputar a uma pessoa a condição de provável autor ou partícipe da infração penal investigada no inquérito policial” (2014, p. 2).
Até a chegada à conclusão pelo indiciamento, o sujeito é tratado como “investigado”, um cidadão sobre o qual pairam suspeitas de prática delitiva. Com a formalização do ato de indiciamento, o indiciado passa a ser considerado provável autor do fato objeto da investigação, “trata-se, pois, da transposição de juízo de possibilidade (mera suspeita) para outro de probabilidade (fundada suspeita)” (MORAES, 2014, p. 2). Por óbvio que ainda não se fala em “réu”, pois não há processo em andamento, tão pouco em “condenado”, tendo em vista que, de acordo com os ditames constitucionais, ninguém poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Considerar legalmente o ato de indiciamento, enquanto privativo do Delegado de Polícia, é corroborar a jurisprudência dos Tribunais Superiores no sentido da ilegalidade do ato executado por requisição judicial ou ministerial, conforme se conclui destes trechos do voto exarado pelo Ministro Relator Teori Zavascki no Habeas Corpus 115015/SP do Supremo Tribunal Federal:
Não obstante a legislação processual penal seja silente a respeito, a doutrina penal define o indiciamento como sendo o ato de formalização da convicção, por parte da autoridade policial, que os elementos indiciários até então colhidos na investigação indiquem ser uma pessoa autora do crime [...]Por essa razão, não parece razoável o magistrado, após receber a denúncia, requisitar ao Delegado de Polícia o indiciamento formal de determinada pessoa. A rigor, requisição dessa natureza é incompatível com o sistema acusatório. Este, contemplado em nosso ordenamento jurídico, impõe a separação orgânica das funções concernentes à persecução penal, de modo a impedir que o juiz adote qualquer postura tipicamente inerente à função investigatória [...]Ao impor à autoridade responsável pelas investigações quem ela deve considerar como autor do crime, o órgão Judiciário se sobrepõe, em tese, as suas conclusões, sendo essa, a toda evidência, atribuição estranha à atividade jurisdicional e que não se coaduna com o sistema acusatório imposto pela Constituição de 1988.
Desta maneira, o Delegado deverá se recusar ao cumprimento de determinações “externa corporis”, agindo exclusivamente sob o arbítrio de sua consciência, respaldado e escudado pelos fundamentos jurídicos e técnicos de sua decisão.
Para que a Autoridade Policial esteja à altura das responsabilidades impostas pela legislação e, sobretudo, das exigências e expectativas impostas pela sociedade ao trabalho policial, instituiu-se legalmente que o cargo é privativo de bacharel em Direito, piso mínimo exigido em nível federal, posto que alguns Estados têm exigido comprovação de tempo mínimo de exercício de atividade jurídica, como forma de preparação técnica e acúmulo de experiências para que esteja apto para à prática dos atos jurídicos de seu cargo.
Em consequência deste reconhecimento jurídico, estabeleceu-se que ao Delegado deverá ser dispensado o mesmo tratamento protocolar dos magistrados, membros da Defensoria Pública e Ministérios Público. Assim, doravante a terminologia adequada para correspondências dirigidas deve ser “Vossa Excelência”. Esta inovação parece ser de menor importância, levando a concluir que um mero pronome de tratamento rebuscado a ser inserido no tratamento configura apenas um modo de mostrar reverência e colocar as autoridades em posição de destaque na sociedade. Na verdade a medida é mais um ponto a favor da demonstração que todas as carreiras jurídicas se encontram em pleno pé de igualdade, não havendo qualquer espécie de subordinação entre elas, tão somente a divisão das tarefas estruturais da persecução jurídico-penal brasileira. Atente-se que não estamos diante de mera questão de nomenclatura, mas sim da essência jurídica que promana “excelência” nos atos estatais, não na excelência na indumentária senão no conteúdo da força democrática da qual se investe o Delegado de Polícia.
Conclusão:
As atribuições exercidas pelos Delegados de Polícia sempre estiveram inseridas no âmago da comunidade jurídica, atuando ao lado das demais carreiras oriundas das ciências jurídicas na persecução penal e em defesa da sociedade.
No entanto, estamos em um país que ainda mantem-se imerso em um positivismo desvairado, preso às amarras da interpretação gramatical das normas, com enorme dificuldade de compreensão e interpretação do sentido teleológico do espírito das normas inseridas no ordenamento.
Sendo assim, se mostra necessário a inserção clara e objetiva de que o Delegado de Polícia exerce atividade de cunho jurídico, de modo a aplacar qualquer névoa de dubiedade sobre a questão.
O controle social exercido pelo Delegado de Polícia é muito significativo, de tal modo que se mostra necessário a existência de instrumentos legais e prerrogativas, capazes de lhes conferir a segurança indispensável em seus atos de polícia judiciária.
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[1] STF, HC 104.473/PE, 1.ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 22.10.2010; HC 84.051/PR, 2.ª Turma, Rel. Min.Gilmar Mendes, DJ 02.03.2007.
STJ, HC 163.428/DF, 5.ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, 01.08.2011; HC 198.113/CE, 6.ª Turma, Rel. Min. Haroldo Rodrigues, DJ 03.08.2011.
[2] Frase atribuída aos filósofo francês Alexis de Tocqueville
[3] Artigo 140, Constituição do Estado de São Paulo - À Polícia Civil, órgão permanente, dirigida por delegados de polícia de carreira, bacharéis em Direito, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
§ 1º - O Delegado Geral da Polícia Civil, integrante da última classe da carreira, será nomeado pelo Governador do Estado e deverá fazer declaração pública de bens no ato da posse e da sua exoneração.
§ 2º – No desempenho da atividade de polícia judiciária, instrumental à propositura de ações penais, a Polícia Civil exerce atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica.
§ 3º – Aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária
§ 4º – O ingresso na carreira de Delegado de Polícia dependerá de concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, dois anos de atividades jurídicas, observando-se, nas nomeações, a ordem de classificação.
§ 5º – A exigência de tempo de atividade jurídica será dispensada para os que contarem com, no mínimo, dois anos de efetivo exercício em cargo de natureza policial-civil, anteriormente à publicação do edital de concurso.
§ 6º - A remoção de integrante da carreira de delegado de polícia somente poderá ocorrer mediante pedido do interessado ou manifestação favorável do Colegiado Superior da Polícia Civil, nos termos da lei.