RESUMO: O presente artigo tem por escopo tratar acerca da metodologia da pesquisa, direcionada à visão heideggeriana da fenomenologia. Tem como propósito apresentar a construção metodológica de Martin Heidegger, de forma acessível e linear, para possibilitar a compreensão do pensamento do filósofo reconhecido pela densidade das ideias e complexidade dos escritos, acentuada pela utilização de termos próprios e vocabulário singular.
Palavras chaves: Metodologia. Fenomenologia. Direito.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2. Metodologia da pesquisa: ciência e método. 3. A visão Heideggeriana do método e sua aplicação na metodologia da pesquisa no direito. 4. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Neste artigo, a metodologia da pesquisa em direito é associada ao método fenomenológico de Martin Heidegger, para demonstrar as possibilidades de se extrair de suas lições importantes contributos para a metodologia da pesquisa em direito.
Para tanto, inicia-se o texto apresentando ao leitor noções básicas acerca da metodologia da pesquisa, bem assim da ciência e do método, procurando contextualizar o percurso historicamente percorrido pelo pensamento científico até se deparar com a necessidade de sistematização do saber e a organização dos resultados das pesquisas desenvolvidas.
Firma como marco o surgimento da fenomenologia com Edmund Husserl, precursor deste modelo de pensamento, para introduzir a construção científica edificada por Martin Heidegger, em oposição à fenomenologia husserliana.
Assim, faz-se breve análise sobre as principais obras de Martin Heidegger, Ser e Tempo, Sobre a essência da verdade, O que é a metafísica? e O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, salientando os aspectos que firmam a compreensão da fenomenologia na visão heideggeriana, para ao fim analisar sua aplicabilidade na metodologia da pesquisa no direito.
METODOLOGIA DA PESQUISA: a ciência e método
Para muitos, a metodologia da pesquisa é compreendida a partir de uma visão açodada e superficial, ficando reduzida às regras práticas de desenvolvimento do texto científico. E só. Porém, a metodologia da pesquisa possui uma faceta epistemológica, de conteúdo denso que apresenta as verdadeiras ferramentas para o trabalho científico: aprender a pensar.
Metodologia da pesquisa é mais que um conjunto de regras para apresentação de teses e dissertações. Vai muito mais além da fixação das margens, fontes, tabulação e referências. É o estudo sistemático e complexo de como desenvolver a pesquisa científica e apresentar o caminho percorrido pelo cientista para a resposta buscada no projeto.
É sistemático, porque constitui um passo-a-passo organizado, que contempla várias formas e caminhos para se alcançar o conhecimento científico e apresentar seus resultados. Por outro lado, é complexo porque permite o diálogo entre as mais diversas fontes do pensamento, daí sua densidade, sem com isto tornar-se intransponível.
Para compreender a metodologia no seu caráter pragmático e epistemológico necessário se faz antes compreender ciência e método.
Segundo Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins[1], o conhecimento científico surgiu no século XVII, a partir da revolução de Galileu Galilei, simbolizado pelo rompimento entre ciência e filosofia que passam a andar cada uma por seu caminho. As autoras lecionam que:
No pensamento grego ciência e filosofia achavam-se ainda vinculadas e só vieram a se separar na idade moderna, buscando cada uma delas seu próprio caminho, ou seja, seu método. A ciência moderna nasce ao determinar um objeto especifico de investigação e ao criar um método pelo qual se fará controle desse conhecimento[2].
É importante lembrar que quando se fala que o conhecimento científico surgiu a partir do século XVII não quer significar que antes disso não existisse ciência, mas sim que este marco traduz um momento em que o conhecimento científico passou a ser mais estruturado, organizado e prático. Antes disso, o saber atrelava-se à filosofia sem qualquer sistematização e sem a utilização de método, fundando-se basicamente no senso comum.
Entende-se por senso comum a experiência do homem obtida através da extração de conhecimento das coisas do dia a dia, aprendidas, herdadas e reconhecidas de forma espontânea, pois simplesmente ocorrem. Esta forma de saber deu lugar a um saber organizado, dotado de objeto específico de investigação e de método para alcançar os resultados: o saber científico.
Certo é que no século XVII, o conhecimento científico surge muito mais atrelado à matemática, valendo-se basicamente de experimentação e fórmulas com status de lei, inerentes às chamadas ciências da natureza.
As ciências humanas, no entanto, oriundas do século XIX já nascem com um problema que acompanha toda sua evolução – o método. Como definir e estabelecer um método que seja adequado e suficiente à compreensão do homem em sua complexidade, distinto daqueles utilizados pelas ciências naturais?
Enquanto todas as outras ciências tem como objeto algo que se encontra fora do sujeito cognoscente, as ciências humanas tem como objeto o próprio ser que conhece. Daí ser possível imaginar as dificuldades da economia, sociologia, da psicologia, da geografia humana, da história para estudar com objetividade aquilo que diz respeito ao próprio homem tão diretamente[3].
O direito, como ciência humana, também se depara com esta questão metodológica, que acompanha toda a evolução da ciência do direito, assim como os outros ramos humanistas.
Analisando o método jurídico, Antônio Luís Machado Neto apresenta um conceito bastante elucidativo: “[...] O método é, pois, um pressuposto de que se há de achar armado o cientista quando parte para a investigação do aspecto da realidade que cabe á sua ciência tematizar e dominar” [4].
Munido do armamento necessário, como sugere Machado Neto, o cientista dirige suas investigações voltadas ao estudo do objeto de pesquisa. Este andar e modo de proceder é o método e o seu passo é a metodologia.
De acordo com Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, a idade moderna foi o período em que o método foi mais discutido na filosofia[5]. Filósofos como René Descartes e Francis Bacon pertencem a esta época de ampla discussão acerca do método e trouxeram importantes contribuições sobre o tema.
Francis Bacon defendia o chamado método indutivo[6], como a única forma capaz de o homem compreender a natureza. Já Descartes, através do método que ficou conhecido por cartesiano, encontrou o cogito e firmou a máxima “penso, logo existo” [7], além de afirmar a existência de Deus como algo que é certo, sobre o qual não paira dúvida, e que é dotado de perfeição.
O percurso do pensamento filosófico foi marcado ainda pela tentativa de superação da metafísica – a filosofia primeira na acepção conferida por Aristóteles – pelos filósofos do século XVIII. A guisa de exemplo de crítico da metafísica, cita-se Immanuel Kant.
Passada a idade moderna, no auge do século XIX a chamada ciência moderna entra em crise e com ela os métodos até então debatidos na filosofia. Novos postulados se sobrepuseram às concepções clássicas e novas orientações críticas às ciências formaram-se no cenário histórico.
Augusto Comte desenvolveu, já na metade do século XIX, o pensamento do positivismo. Também não admitia a metafísica como resposta as questões. Para Comte, apenas aquilo que pudesse ser comprovado cientificamente, testado, sentido, experimentado é que poderia ser admitido. Como positivismo, o pensamento cientifico ganha novas cores, sendo Comte o responsável por fazer uma classificação das ciências e destacar a sociologia como uma delas.
Sob estes novos matizes é que surge a fenomenologia, já no final do século XIX, representada por Edmund Husserl e Martin Heidegger, entre outros filósofos adeptos desta abordagem.
Ana Maria Monte Coelho Frota assim define:
A fenomenologia surgiu no final do século XIX, rompendo com o modelo cartesiano e a perspectiva metafísica, afirmando a existência de uma verdade universal, pura e imutável, possível de ser alcançada pelo homem através da razão. Para a Fenomenologia, não existe uma verdade absoluta, já que conhecemos e habitamos uma representação do mundo e não um mundo real[8].
A fenomenologia, portanto, não surge no contexto como uma mera objeção ao pensamento filosófico até então vigente, mas sim como uma verdadeira ruptura de paradigmas, rechaçando todas as construções metodológicas em voga naquela época.
A VISÃO HEIDEGGERIANA DO MÉTODO E A SUA APLICAÇÃO NA METODOLOGIA DA PESQUISA NO DIREITO
Martin Heidegger é tido como um dos expoentes dentre os filósofos do mundo moderno tendo se dedicado ao ramo da ontologia[9]. Para Heidegger, interessava discutir o que é o ser humano e a qual a sua essência.
Heidegger (1889-1976) nasceu em Messkirch, Alemanha e durante sua vida teve aspirações de ser sacerdote[10]. Passou, no entanto, a dedicar-se a filosofia a partir do momento em que conheceu os textos de Edmund Husserl, influência marcante e decisiva para a opção pela abordagem da fenomenologia.
Edmund Husserl foi professor de Heidegger na Universidade de Freiburg. Movido pela necessidade de demonstrar a certeza, Husserl aproximou-se do método cartesiano proposto por René Descartes e instaurou a fenomenologia.
Segundo Dante Augusto Gallefi, a fenomenologia ocupa-se do fenômeno, termo que vem “do grego phainómenon, significa ‘aquilo que aparece’. A palavra deriva do verbo grego phainomenai: ‘eu apareço’. O que ‘aparece’ é aquilo que se mostra à luz, o ‘brilhante’ (phaino)” [11].
Na obra Ideias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica, Husserl assentou as principais ideias acerca da fenomenologia:
Quão diferente é na fenomenologia! Não apenas porque ela precisa de um método antes mesmo de todo método de determinação das coisas, isto é, de um método para trazer à apreensão do olhar o campo de coisas da consciência transcendental pura; não apenas porque nela é preciso desviar laboriosamente o olhar dos dados naturais de que não se cessa de ter consciência, e que, portanto, estão por assim dizer entrelaçados àqueles novos dados que se intenta alcançar, e assim é sempre iminente o risco de confundir uns com os outros: falta também tudo aquilo de que podíamos tirar proveito na esfera dos dados naturais, a intimidade c om eles graças ao treino da intuição, a vantagem de possuir uma herança teórica e métodos adequados às coisas. Falta também, obviamente, confiança na metodologia já desenvolvida, confiança que poderia se nutrir das muitas aplicações bem-sucedidas e verificadas nas ciências conhecidas e na práxis da vida[12].
Como bem salienta Ailton Schramm de Rocha e Karin Almeida Weh de Medeiros, Husserl “propõe uma nova ciência eidética”, dividida em duas fases de análise: intuição imediata e fase descritiva[13].
Husserl propõe que o senso comum, por se tratar de uma postura pouco crítica da ciência deve ficar em suspenso enquanto se busca por outras significações que se pode ter. Na visão de Husserl, necessário se faz reduzir, isto é, utilizar um termo que seja possível englobar qualquer espécie naquela mesma acepção, para assim chegar-se a um conceito original, alcançando a essência do objeto – o eidos.
Do maior interesse para nós são as considerações metódicas que não se referem à expressão, mas às essências e nexos eidéticos a serem apreendidos e expressos por intermédio dela. Se o olhar investigador se direciona para vividos, eles se oferecem em geral num vazio e numa vaga distância, que os torna inutilizáveis tanto para uma constatação singular, quanto para uma constatação eidética. Isso se passaria de outra forma se, em vez de nos interessarmos por eles, nós nos interessássemos pelo modo como se dão e investigássemos a própria essência do vazio e da vagueza, os quais, por seu turno, surgem aqui não vagamente como dados, mas na mais plena clareza. Se, contudo, é o vagamente trazido à consciência que deve proporcionar as suas essências próprias, por exemplo, aquilo que vacila obscuramente na memória ou na fantasia, o que ele proporciona só pode ser algo imperfeito; isto é, onde as intuições individuais que estão na base da apreensão eidética são de um nível inferior de clareza, também as apreensões eidéticas são, e correlativamente o apreendido é "obscuro" seu sentido, ele tem suas turvações, suas imprecisões externas e internas. Será impossível decidir, ou possível "apenas grosso modo", se àquilo que é apreendido aqui e ali é o mesmo (isto é, a mesma essência) ou algo diferente; não se pode estabelecer de que componentes efetivamente consiste, e o que "são propriamente" os componentes que eventualmente já se mostram em vago relevo, que se indicam de modo vacilante[14].
Analisando a fenomenologia transcendental[15] de Husserl, Dante Augusto Gallefi esclarece que “a ‘redução’ se confundiria com o próprio método fenomenológico, pois seria um ‘caminho’ para se alcançar e clarificar filosoficamente a essência universal do conhecimento absoluto” [16].
Ainda para referido autor, a fenomenologia de Husserl teria a importante missão de constituir o conhecimento filosófico independente do conhecimento obtido pelas ciências naturais, a partir da compreensão dos atos intencionais que compõem a consciência:
Portanto, a tarefa da Fenomenologia Transcendental é a de elucidar e rastrear gradualmente todos os possíveis dados da consciência, segundo as suas modalidades e possíveis modificações de comportamento. Trata-se da construção de uma ciência das essências, construção edificada “passo a passo”; uma ciência das essências capaz de “descrever” a estrutura dos fenômenos da consciência; uma ciência dos fenômenos cognoscitivos em duplo sentido: Ciência dos conhecimentos como fenômenos (Erscheinungen), manifestações, atos da consciência em que se exibem, se tornam conscientes, passiva ou ativamente, estas e aquelas objetividades; e, por outro lado, ciência destas objetividades enquanto a si mesmas se exibem deste modo [...] [17].
Com o método fenomenológico, Husserl pretendia ter uma abordagem que pudesse ser aplicada para qualquer área do conhecimento, partindo da análise do dado, sem presumir, nem deduzir, para se chegar à verdade. Uma ideia, no mínimo, audaciosa e, como é sabido, para fazer ciência é necessário pelo menos ser audaz. Isto ele cumpriu.
Heidegger dedicou-se a desenvolver o método fenomenológico de Husserl em seus escritos. Ocorre que, a ideia de Husserl de desenvolver uma base sobre a qual todas as ciências poderiam se desenvolver, sofreu em severas criticas da comunidade científica e filosófica, notadamente do próprio discípulo – Heidegger.
Sobre as divergências entre Husserl e Heidegger, Marco Antônio Valentim citando a conhecida carta de Heiddeger à Husserl apresenta-nos:
Na célebre carta que Heidegger dirige a Husserl em 22 de outubro de 1927, ano de publicação de Ser e tempo, lemos: Estamos de acordo sobre o seguinte ponto: que o ente, no sentido em que você o denomina “mundo”, não poderia ser esclarecido em sua constituição transcendental pelo retorno a um ente do mesmo modo de ser. Mas isso não significa que o que constitui o lugar do transcendental não é absolutamente nada de ente – ao contrário, o problema que se põe imediatamente é o de saber qual é o modo de ser do ente no qual o “mundo” se constitui. Tal é o problema central de Ser e tempo – a saber, uma ontologia fundamental do Dasein[18].
Ana Maria Monte Coelho Frota destaca os principais pontos de divergência entre a fenomenologia husserliana e a hermenêutica ontológica heideggeriana. Segundo Frota, Heidegger não admite a redução fenomenológica nos termos propostos por Husserl, por entender que “não é adequada, nem possível, por deixar de lado, o modo-de-ser, preocupando-se tão somente com o conteúdo” [19].
Além disso, também há dissonância entre Husserl e Heidegger no tocante à compreensão do que seja a verdade. Isto porque, de acordo com Frota, enquanto para Heidegger a verdade é o desvelamento ou desocultamento, “é diferente da ideia de veritas, do latim, apresentada pela fenomenologia husserliana, que entende a verdade como adequação ou concordância”[20].
Neste contexto de divergências e críticas, Heidegger deu início a uma fenomenologia oposta àquela instaurada por Husserl. Nas palavras de Pedro Germano dos Anjos e Nirlana Teixeira:
Tais incongruências originaram uma série de escolas filosóficas que se posicionavam de forma diferente ante a teoria fenomenológica de Husserl. Ernildo Stein as agrupou em cinco principais, sendo Heidegger componente da fenomenologia transcendental, na Universidade de Freiburg, e orientador da fenomenologia hermenêutica da Universidade de Marburg, com seus seguidores Hans-Georg Gadamer e Thomas Kuhn.
Vários termos são atribuídos à fenomenologia proposta por Heidegger: Fenomenologia existencialista, fenomenologia ontológica, fenomenologia transcendental, fenomenologia hermenêutica, que compreendemos como tentativas de identificar diferentes momentos do pensamento filosófico heideggeriano e diferentes aspectos agitados em suas obras.
É de saber corrente o fato de que Heidegger teria negado a posição de existencialista[21], no entanto, é reconhecido e apontado como existencialista por vários autores, daí porque qualificam a sua fenomenologia como existencialista.
O próprio Heidegger deixa evidente a sua predileção pela acepção ontológica, sendo importante observar tal aspecto na medida em que o filósofo fazia das palavras um instrumento para fortalecimento da sua própria filosofia, ora criando a partir de prefixos e sufixos gregos para dar-lhe o destaque e a significação intencionalmente buscada, ora extraindo o sentido léxico do termo de forma de direcionar a interpretação do termo na sua forma mais original.
Segundo afirma Heidegger: “É por isso que se deve procurar, na analítica existência da pre-sença a ontologia fundamental de onde todas as demais podem originar-se”[22]. Veja-se que é neste contexto da busca pela ontologia fundamental que se assenta a fenomenologia ontológica heideggeriana, pois para ele a questão ontológica não se confunde com a questão existencial.
A analítica existencial, por sua vez, possui, em ultima instancia raízes existenciárias, isto é, ônticas. Só existe a possibilidade de uma abertura da existencialidade da existência, e com isso a possibilidade de se captar qualquer problemática ontológica suficientemente fundamentada, caso se assuma existenciariamente o próprio questionamento da investigação filosófica como uma possibilidade de ser da pre-sença, sempre existente. Assim, esclarece-se se o primado ôntico da questão do ser[23].
A denominação de fenomenologia transcendental é comumente atribuída à fenomenologia husserliana[24], que tem base kantiana, cabendo a Heidegger uma posição oposta por entender que a transcendentalidade dar lugar à ontologia.
Ernildo Stein, estudioso brasileiro sobre o pensamento heideggeriano, é quem bem esclarece a questão:
Não se compreende a verdadeira dimensão que separa a fenomenologia transcendental de Husserl da fenomenologia hermenêutica de Heidegger, quando não se desvela o modo como este rompeu toda tradição ocidental, em pondo o homem, como sua vida concreta, na previa compreensão do ser. A fenomenologia hermenêutica se separa da fenomenologia transcendental no ponto de interseção em que a vida assume o espírito e o espírito assume a vida. [...] foi precisamente a retenção do problema do ser que possibilitou a Heidegger a ultrapassagem da solução diltheyana e husserliana ao problema da história, da vida fáctica[...][25].
Deste modo, não conseguimos vislumbrar uma fenomenologia transcendental na obra heideggeriana, mas sim uma clara crítica a ela.
Já compreensão de fenomenologia hermenêutica atribuída a Heidegger pode ser extraída da obra Ser e Tempo, na medida em que assevera:
Na tarefa de interpretar o sentido do ser, a pre-sença não é apenas o ente a ser interrogado primeiro. É, sobretudo, o ente que, desde sempre, se relaciona e comporta com o que se questiona nesta questão. A questão do ser não é senão a radicalização de uma tendência ontologia essencial, própria da pre-sença, a saber, da compreensão pré-ontológica do ser[26].
Em um capítulo dedicado à fenomenologia hermenêutica heideggeriana, Ernildo Stein pontua que a saída que Heidegger encontrou para não desembocar na filosofia moderna e não retroceder na sua filosofia, foi retornar a Nietzsche “e lá Heidegger encontra também o lugar onde emerge o esquecimento do ser na filosofia ocidental”.
Este resgate do ser esquecido é o ponto de encontro da facticidade, noção de que o “ser-aí” (o homem) não está dissociado do mundo, mas sim permeado por sua cultura, valores, além das condições de tempo e lugar que vive e que exerce importante influencia na sua constituição.
Heidegger joga a faticidade num súbito começo. A vida, a existência, já é compreensão do ser. A facticidade se constitui na pré-compreensão. A forma radical de exercício da facticidade é compreender. Não é preciso a redução do espírito, nem ao eu transcendental, nem a colocação do problema da compreensão na região das ciências do espirito, para captar o compreender na sua radicalidade. O compreender já sempre é fato, é vida. A própria redução transcendental, o próprio ver já radicam na compreensão e são formas derivadas.[...] diante desse fato, Heidegger instaura sua hermenêutica da facticidade; com ela ultrapassa a ontologia da coisa[...][27].
Estas concepções metodológicas são melhor compreendidas pela leitura de suas obras, que passamos a analisar de forma sintética.
A obra Ser e Tempo foi publicada por Heidegger em 1927, período pós-primeira guerra mundial, durante a República de Weimar, na Alemanha. Trata-se de uma das principais obras de Heidegger, na qual ele dividiu a metafísica em três setores: o conhecimento do conjunto da natureza, o conhecimento da alma humana e o conhecimento de Deus, derivando daí a divisão das metafísicas especiais: cosmologia, psicologia e teologia[28].
Para tratar sobre a ontologia, Heidegger retomou as lições de Platão e Aristóteles, conferindo à ontologia a sua leitura sobre o ser:
[...] No solo da arrancada grega para interpretar o ser, formou-se um dogma que não apenas declara supérflua a questão sobre o sentido do ser como lhe sanciona a falta. Pois se diz: “ser” é o conceito mais universal e o mais vazio. Como tal, resiste a toda tentativa de definição. Este conceito mais universal e, por isso, indefinível prescinde de definição. Todo mundo emprega constantemente e também compreende o que, cada vez, pretende designar[...][29].
Heidegger identificou o que ele denominou de primado ôntico da questão do ser, uma questão primeira a ser enfrentada em relação ao ser:
Em geral, pode-se definir ciência como o todo de um conjunto de fundamentação de sentenças verdadeiras. Essa definição não é completa e nem alcança o sentido da ciência [...]. A pesquisa científica não é o único modo de ser possível desse ente e nem sequer o mais próximo. Ademais, se comparada a qualquer outro a pre-sença é um ente privilegiado [...][30].
Delimitou o método fenomenológico, relacionando-o com a ontologia advertindo:
O método de investigação, ao que parece, já foi delineado juntamente com a caracterização provisória de seu objeto temático (o ser dos entes, o sentido do ser em geral). A prender o ser dos entes e explicar o próprio ser é tarefa da ontologia. O método fenomenológico, no entanto, permanecerá altamente questionável caso se queira recorrer às ontologias historicamente dadas ou a tentativas congêneres[...]. O uso do termo ontologia não visa a designar uma determinada disciplina filosófica dentre outras. Não se pretende de forma alguma, cumprir a tarefa de uma dada disciplina previamente dada. Ao contrário, a partir da necessidade real de determinadas questões e do modo de tratar imposto pelas “coisas em si mesmas” que, em todo caso, uma disciplina pode ser elaborada[31].
O livro Ser e Tempo é considerado por Paulo Afonso de Araújo[32] como uma obra prima inacabada por Heidegger que, segundo ele, na tentativa de passar do Dasein “o ser em si mesmo” para o ser geral, teria esbarrado em sérias dificuldades, que lhe teria levado a abandonar o projeto inicial.
Parece-nos, contudo, que a lacuna deixada por Heidegger é proposital, como uma forma de convidar o cientista-leitor a preencher as noções de ser e ente, em cada momento histórico a partir de suas próprias vivências, já que a temporariedade é um traço bastante evidente nos escritos deste filósofo alemão[33].
Em 1929, dois anos após publicar Ser e Tempo, Heidegger publicou o texto Que é metafísica?. A primeira coisa que chama atenção é a formulação interrogativa, sugerindo uma pergunta direta para uma resposta igualmente direta. Tal formulação foi adotada não sem razão por Martin Heidegger. Trata-se de postura intencional, direcionada a reviver a tradição da filosofia grega que apresentava grandes debates filosóficos justamente em torno desta construção: o que é? E isto o filósofo alemão ilustrou por outras partes do texto, não ficando limitado a utilizá-la na formação do título.
Quanto à metafísica, Heidegger fez questão de apresentar uma compreensão própria do que considera como tal:
Nossa interrogação pelo nada tem por meta apresentar-nos a própria metafísica. O nome metafísica vem do grego: tà metà physiká. Esta surpreendente expressão foi mais tarde interpretada como caracterização da interrogação que vai meta — trans “além do ente enquanto tal. Metafísica é o perguntar além do ente para recuperá-lo, enquanto tal e em sua totalidade, para a compreensão[34].
Nesse texto, Heidegger deixa evidente a sua crítica à metafísica no sentido clássico até então utilizado na ciência para assim defender a necessidade de uma metafísica da subjetividade, demonstrando com isso preocupação pela utilização da técnica que justificaria atrocidades, como a própria guerra.
É bom lembrar que naquele momento histórico do pós-primeira guerra, houve um crescimento das pesquisas científicas em relação a materiais bélicos, reflexo da preocupação dos povos com possuir poderio para defesa e ataque em situação de beligerância. Nesta linha de intelecção, Heidegger propugnou por uma metafísica da subjetividade:
O ser-aí humano somente pode entrar em relação com o ente se se suspende dentro do nada. O ultrapassar o ente acontece na essência do ser-aí. Este ultrapassar, porém, é a própria metafísica. Nisto reside o fato de que a metafísica pertence à “natureza do homem”. Ela não é uma disciplina da filosofia “acadêmica”, nem um campo de ideias arbitrariamente excogitadas. A metafísica é um acontecimento essencial no âmbito do ser-aí. Pelo fato de a verdade da metafísica residir neste fundamento abissal possui ela, vizinhança mais próxima, sempre à espreita, a possibilidade do erro mais profundo. E por isso que nenhum rigor de qualquer ciência alcança a seriedade da metafísica. A filosofia jamais pode ser medida pelo padrão da ideia da ciência[35].
O texto Que é metafísica? é um escrito diferente de Heidegger. Segundo Ricardo Ernesto Rose “é uma aula inaugural dada na Universidade de Friburgo em 1929, onde Heidegger assumiria uma cátedra de professor regular. [...]”[36].
A densidade das ideias e pensamentos explanados na referida aula inaugural e condensados no texto por Heidegger não impedem a compreensão da sua visão sobre o método fenomenológico[37]. É possível inferir do texto que Heidegger manteve-se fiel às ideias acerca da fenomenologia compartilhadas em Ser e Tempo, acrescentando em Que é metafísica? críticas a metafísica tradicional, para apontar a fenomenologia como uma forma de superação desta.
Já em Sobre a essência da verdade, temos um novo Heidegger, que se dedica a compreender não mais a essência do ser, mas sim a essência da verdade. Inicia o texto questionando o que vem a ser a verdade e mais uma vez vale-se da formulação interrogativa: “o que, pois, se entende ordinariamente por verdade?”, questiona Heidegger.
Tal obra foi publicada em 1943, durante a segunda guerra mundial. Nesse texto percebemos com mais peso a força linguística de Heidegger. O vocabulário próprio, cheio de criações preocupadas com o sentido léxico dos termos se espraia por toda obra do autor, porém a compreensão em Sobre a essência da verdade fica muito prejudicada caso o leitor não tenha tido qualquer outro contato com os conceitos da obra heideggeriana.
Para Heidegger, a verdade “constitui o verdadeiro enquanto verdadeiro”[38], de modo que a essência da verdade é aquilo que a caracteriza como tal. Para ilustrar imagine-se uma porta. Na linha do pensamento de Heidegger, para compreendermos a essência da porta temos que identificar o que a caracteriza como tal, assim investigando a porta em sua “portice[39]” – qualidade de ser porta, o que lhe torna uma porta – é que se vai desvelar a sua essência de porta.
A ideia de desvelamento sustentada por Heidegger quer significar retirar o véu e mostrar o que de fato há. Não poderia ser revelar, porque da forma como suas palavras são prudentemente colocadas em cada texto, revelar, nada mais é do que re-velar, isto é, mostrar novamente o que já foi demonstrado. Logo, para a obra de Heidegger é importantíssima a noção de desvelamento no sentido de tirar o véu existente sobre o objeto da pesquisa.
Heidegger analisa a verdade relacionando-a com a ideia de real verdadeiro e falso, bem assim com a ideia de autêntico, concluindo que haverá autenticidade quando houver uma concordância entre o que se presume da coisa e o seu significado.
Este duplo caráter de concordância traz á luz a definição tradicional de essência da verdade: veritas est adequatio rei et intelectus. Isto pode significar: verdade é a adequação da coisa com o conhecimento. Mas se pode entender assim: verdade é a adequação do conhecimento com a coisa[40].
Em resenha ao escrito ora sob comento, Antônio Ianni Segatto analisa as concepções de verdade formuladas por Heidegger e a utilização do termo desvelamento tão relevante para a construção do pensamento heideggeriano:
Tais colocações já adiantam o comentário que Heidegger faz, nas preleções de 1933 e 1934, à alegoria da caverna de Platão. Toda a análise centra-se em dois aspectos fundamentais: a distinção de duas concepções concorrentes acerca da verdade e a vinculação entre a essência da verdade e a essência do homem. Traduzindo o termo grego αλήθεια por “desvelamento” ou “descobrimento” (como prefere o tradutor do volume resenhado), Heidegger nota que a verdade aqui é entendida como reação ao fato originário do velar, do encobrir[41].
Questão curial é saber qual a importância deste texto para a construção e a reafirmação do método fenomenológico. Parece-nos que o próprio Heidegger diz como quer ser compreendido ao afirmar:
[...] Aparentemente o pensamento movimenta no caminho da metafísica e, contudo, realiza, em seus passos decisivos - que conduzem da verdade como conformidade para a liberdade, ek-sistente e desta para a verdade com o dissimulação e errância —, um a revolução na interrogação, revolução; que já pertence à superação da metafísica. [...] As fases da interrogação constituem em si o caminho de um pensamento que, em vez de oferecer representações e conceitos, se experimenta e confirma com a revolução da relação com o ser[42].
Com este texto Heidegger não deixa margens para dúvidas. Para o filósofo, a construção do pensamento científico e do próprio método é um constante caminhar, em que se interroga, experimenta, constrói, confirma e não se esgota, porque o homem “ser-aí” se re-presenta no tempo e espaço num processo contínuo de revolução ontólogica.
Heidegger tem uma vasta produção científica, porém escreveu um único livro: Ser e Tempo. Os demais escritos são compostos de preleções, aulas inaugurais, seminários, exercícios e colóquios.
O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, por exemplo, é resultado de uma conferência, em que Heidegger apresenta-nos um título que poderia levar a crer inicialmente que a proposta seria o marco final da filosofia. Longe da ideia de encerramento, o que Heidegger traz em seu texto é a ideia de conclusão de um ciclo do pensamento filosófico.
[...]quando falamos do fim da Filosofia queremos significar o acabamento da Metafísica. Acabamento não quer dizer, no entanto, plenitude no sentido que a Filosofia deveria ter atingido, com seu fim. a suprema perfeição. Falta-nos não apenas qualquer medida que permitisse estimar a perfeição de uma época da Metafísica em comparação a outra[...]Fim da Filosofia quer dizer: começo da civilização mundial fundada no pensamento ocidental-europeu.[...].
Heidegger sustenta que cada filosofia com sua própria necessidade e em sua época tem sua importância, de modo que não há uma melhor que a outra, tampouco uma que seja preferida em detrimento das demais. Afirma: “Cada época da Filosofia possui sua própria necessidade. Que uma Filosofia seja como é, deve ser simplesmente reconhecido. Não nos compete preferir uma a outra, como é possível quando se trata das diversas visões do mundo”.
Heidegger analisa a tese do primado do método proposto por Husserl e contrapõe-o em relação ao que ele denomina de “caminho a elucidação ‘à questão mesma’ ”, para concluir que “ambos os métodos são radicalmente diferentes. A questão como tal, porém, que devem representar é a mesma, ainda que seja experimentada de maneiras diferentes”.
Com este texto, Heiddeger coloca na clareira e na presença a sua fenomenologia ôntico-hermenêutica. Resta evidente que o fundamento não é o ser, mas sim a época do ser e forma como ele foi preenchido e como é reconhecido, tal como está aí, como se apresenta.
Esclarecidos tais aspectos, finalmente se impõe analisar: qual a aplicabilidade da fenomenologia ôntico-hermeneutica de heiddeger e metodologia da pesquisa no direito?
A principal contribuição de Heidegger para metodologia da pesquisa no direito é a possibilidade para a qual ele acena de que a técnica científica não só pode, como deve andar ao lado dos sentimentos humanos e da própria compreensão do ser em si, como ele é.
A visão heideggeriana sinaliza que não se deve valer-se da técnica para justificar atrocidades nem desumanidades. Neste passo, não se coaduna com a fenomenologia ôntica-hermenêutica a aplicação da literalidade da norma, sem contextualizar o tempo e o ser, na lógica da facticidade proposta por Heidegger.
Ademais, não pode se justifica uma interpretação dissociada do senso de humanidade e de justiça, pois na linha do pensamento heideggeriano não se pode em nome da técnica esquecer a essência do ser na compreensão dos fatos cotidianos.
Heidegger, portanto, dá forma, essência e substância ao Humanismo que deve permear a pesquisa do direito e sua aplicação, porque deve estar revestindo o próprio sujeito da pesquisa, o operador do direito, o homem, o ser-aí.
Muito se fala sobre a utilização da visão heideggeriana pela ideologia nazista, daí porque relacionar Heidegger com o Humanismo pode causar estranheza. No entanto, é bom que se diga que quando se cria uma concepção, uma filosofia ou um método não se direciona a interpretação que irá ser dada, muito menos a sua aplicação, de modo que é o homem que molda as concepções e dá-lhes o contéudo com sua carga valorativa e seus pré-conceitos.
Certo é que a intelecção dos fatos jurídicos, que nada mais são do que fenômenos, reclamam, portanto, a abordagem fenomenológica, que, por sua vez, deve voltar os olhos para o ser.
Advirta-se, contudo, que não se trata de meras abstrações, tendo aplicabilidade prática e concreta. A guisa de exemplo, é possível citar, recente voto proferido pelo Ministro Cezar Peluso, no qual para fundamentar a improcedência do pedido da arguição de descumprimento de preceito fundamental n.º 54, sustentou, ao analisar a condição do feto anencefálico, a concepção heideggeriana de que o homem é um ser voltado para morte, para rechaçar o argumento de que o feto anencefálico estaria fadado ao óbito.
Exarou:
Por outro lado, falar-se em “morte inevitável e certa” chega a ser pleonástico, pois ela o é para todos. Disse eu, noutra ocasião, não me seduzir nem comover “o argumento de que o feto anencéfalo seja um condenado à morte. Todos o somos, todos nascemos para morrer. A duração da vida é que não pode estar sujeita ao poder de disposição das demais pessoas. Esta é a razão jurídica fundamental por que não apenas as normas infraconstitucionais, mas também a Constituição tutela a vida”. Acrescento, agora, que a alegação de que a morte possa ocorrer “no máximo algumas horas após o parto” em nada altera a conclusão segundo a qual, atestada a existência de vida em certo momento, nenhuma consideração futura é forte o bastante para justificar-lhe deliberada interrupção. Doutro modo, seria lícito sacrificar-se, igualmente, o anencéfalo neonato[43].
Sobreleva notar que a posição adotada pelo Ministro em seu voto carrega consigo dois marcos importantes na visão heideggeriana. O primeiro é o Dasein, o ser aí, neste caso compreendido como um ser voltado para morte, porém isto não justifica a interrupção da gravidez, segundo o seu prolator. O segundo, é que tal compreensão desenvolvida no voto dá-se naquele momento, pois as decisões judiciais carregam consigo a ideia de Heidegger de aqui e agora.
Quanto à temporalidade contida da concepção heideggeriana, válido transcrever a lúcida observação de Pedro Germano dos anjos e Nirlana Teixeira:
A temporalidade heideggeriana demonstra também sua relevância para a metodologia em direito. A compreensão sobre o respeito a vigência de regimes instituídos na jurisprudência não é tratada de modo satisfatório por ela própria, pelo que a concessão de decisões com modulação de efeitos é rara, mas deveria ser regra para o Estado Democrático de Direito. A correlação entre a temporalidade é sobre a legitimidade dos efeitos das decisões judiciais, bem como sobre as leis, sobre o comportamento dos indivíduos.
Com efeito, a noção de temporalidade permeia todo o sistema jurídico, mas ao mesmo tempo, não pode significar seu engessamento. O pensamento, bem assim as decisões, não é estanque e impassível ao decurso do tempo. Não se apregoa, frise-se o desrespeito à ideia de segurança jurídica também necessária à sustentação do Estado democrático de direito, mas sim que o constante prosseguir do homem lança-nos a um re-pensar constante do direito.
Este é o convite de Heidegger para a metodologia da pesquisa do direito: para se “estar jogado no mundo”, para se desvelar, para “ser-aí” e ir adiante e mais além.