1. A necessária redistribuição do ônus do tempo no processo civil
Durante um longo período do processo civil moderno, não houve uma preocupação séria com um fenômeno corriqueiro no Universo: a passagem do tempo. O fato de o autor ter que arcar com o ônus da passagem do tempo entre o ajuizamento da ação e a sentença era encarado como algo natural da relação processual, assim como o demandado teria, ao final, o ônus e o dever de cumprir o provimento judicial. Naturalmente, o autor deveria ter de aguentar o tempo necessário do processo para firmação do contraditório e a prova das alegações.
O panorama começa a se modificar substancialmente na segunda metade do século XX. Em verdade, talvez pelo começo da terceira revolução industrial – a revolução técnico-científica, com a inclusão e o começo da popularização da informática e da telemática – e pelo maior acesso à justiça de diferentes classes sociais, o tempo começou a ser computado como algo necessário. O time is money oitocentista saía das fábricas e ganhava o mundo. A doutrina processualista não ficou alheia a isso.
Pipocaram construções teóricas tentando adaptar o Poder Judiciário aos novos tempos, em que a rapidez dos recentíssimos computador e telefone celular contrastava com a vagarosidade de uma Justiça cada vez mais assoberbada de trabalho (isso na Europa), além da maior necessidade de acesso à justiça e da ciência de que a desigualdade ontológica influencia no processo. Uma das principais foi o instituto da antecipação de tutela.
O conceito é simples[1], mas a construção é complexa: em certas situações, principalmente quando o direito do autor tem grandes probabilidades de ser acolhido e há risco na demora natural da prestação jurisdicional pela sentença, pode-se antecipar a concessão do bem de vida (tutela jurídica) pleiteado – sob requisitos do fumus boni juris e periculum in mora. O autor não arcaria sozinho com o ônus do tempo, principalmente em virtude do risco que a demora pode ocasionar.
A novidade veio a um Brasil na década de 90, com um Judiciário cada vez mais cheio de ações, já contaminado pela morosidade e ainda se identificando com uma recente constituição. O instituto ingressou no ordenamento processual na reforma do Código de Processo Civil em 1994. A antecipação de tutela, prevista no art. 273 do CPC/73, deveria ser requerida, e tinha dois requisitos alternativos: receio fundado de dano ou o abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório.
A doutrina e a jurisprudência aproveitaram sobremaneira tal instituto, que era visto como uma espécie de “democratização” do procedimento especial. Enquanto desde 1973 havia procedimentos especiais que “antecipavam a tutela”, através de liminares, para proprietários, credores, locadores etc., somente em 1994 uma pessoa que necessitava de tratamento urgente de saúde deixou de fazer uso da “cautelar satisfativa” para se utilizar de um meio legítimo de antecipação das tutelas.
A redistribuição do ônus do tempo, assim como a redistribuição do ônus da prova (chamada pelo CDC de “inversão”), foi importante passo rumo a um processo civil democrático e preocupado com a tutela de direitos. Entretanto, a quarta revolução industrial, em curso, é mais exigente em relação à questão tempo. Talvez, o time is money da primeira revolução industrial transformou-se em time is life – ou melhor, time is “social life”. O decurso do tempo ganha na modernidade líquida, como apelida Zygmunt Bauman nossa era, muito maior importância. A morosidade excessiva do Poder Judiciário em responder questões importantes da vida humana contrasta com a rapidez excessiva dos smartphones. O ônus do tempo ganha maiores contornos.
2. A tutela antecipada no novo Código de Processo Civil: tutela de evidência e a maior necessidade de dinamização do ônus do tempo
O novo Código de Processo Civil trouxe consideráveis mudanças no tratamento da tutela antecipada. Unindo as tutelas cautelar e antecipada (agora, chamadas de satisfativa) sobre o título de tutelas provisórias, possibilitando um “sincretismo” procedimental – inclusive nas tutelas antecedente – e trazendo um tratamento novel e totalmente brasileiro instituto da estabilização da tutela de urgência satisfativa antecedente[2]. O tratamento dado pela tutela (antecipada) de evidência amplia as disposições do Código anterior.
A grande questão desse novo tratamento é que a tutela de evidência somente se funda em um pressuposto: probabilidade do direito. Conforme dispõe o art. 311 do CPC, é dispensável o periculum in mora, bastando somente o fumus boni juris, cujos fundamentos se encontram nos incisos do referido artigo. É de se apontar quão importante é tal tutela nas considerações sobre a dinamização e redistribuição do ônus do tempo no processo.
Enquanto a tutela antecipada, classicamente pensada, preocupa-se em reunir os elementos do perigo da demora e da probabilidade do direito para sua concessão, a tutela de evidência – agora, ampliada – somente olha a “fumaça do bom direito”, que é evidenciada de duas formas: na inconsistência da defesa do demandado e na baixa probabilidade de acolhimento da defesa em virtude de a demanda se calcar em provas robustas ou entendimentos firmados por cortes superiores.
Pode-se pensar, então, o seguinte: se há grandes chances de o autor ter deferido o seu pleito, e não há perigo de irreversibilidade, por que deveria esperar anos para ter uma tutela à qual seu direito estava patente desde a petição exordial? Reconhecer de início o direito do autor à tutela pleiteada é forma, inclusive, de se evitar defesas infundadas e atos protelatórios do demandado, garantindo que ambas as partes concorram para uma célere solução da lide.
A tutela de evidência é, talvez, o corolário do sistema de antecipação de tutela (mal nominado como “tutela provisória” pelo legislador) para a garantia da razoável duração do processo e da celeridade na prestação da tutela requerida (insculpidos no art. 5º, LXXVIII, CF/88)[3]. E celeridade é tudo que se busca nestes tempos modernos.
3. Probabilidade do direito na tutela de evidência: hipóteses do art. 311 do CPC/15
Como visto, a tutela de urgência requer, para a sua concessão, somente a presença do fumus boni juris, que se manifesta através das hipóteses – que são os pressupostos da concessão da tutela – insculpidas no art. 311 do CPC/15[4]. É importante retratar, como também abordado, que tais hipóteses se referem à alta probabilidade de acolhimento da demanda ajuizada, tanto em virtude de atos do réu quanto da robustez das alegações e das provas da parte autora.
Eis os pressupostos do art. 311:
I – ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte;
II – as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante;
III – se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa;
IV – a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável.
O Código anterior só tinha a previsão esposada no inciso I. A ampliação foi significativa. Didier classifica tais hipóteses para a concessão da tutela de evidência em dois tipos: punitivo, que seria o do inciso I; e documentado, que seriam os demais[5].
A força posta na robustez das alegações e provas é tanta que, apesar de parecer que a tutela de evidência não prescinde o contraditório (o que, em regra, é verdade, já que há a necessidade de analisar a defesa do demandado para conferir o poder das alegações autorais), em alguns casos há possibilidade de um contraditório diferido. Assim, nos casos dos incisos II e III do art. 311, o juiz poderá conceder a tutela de evidência liminarmente, inaudita altera parte, tamanha a probabilidade de acolhimento da demanda.
É necessária, para a compreensão do tema em sua plenitude, a análise breve de cada um dos requisitos.
3.1. Os abusos do réu dentro e fora do processo
O dispositivo do CPC/15 repete o que dispunha o art. 273, II do CPC/73: o abuso do direito de defesa e a prática de atos protelatórios pelo réu são fundamentos para a concessão da tutela de evidência. Marinoni afirma que tais pressupostos poderiam ser resumidos na expressão inconsistência da defesa[6]; porém, o inciso trata de situações mais profundas que essas.
A doutrina conceitua as situações de diferentes maneiras. Enquanto o abuso do direito de defesa se dá dentro do processo, através do uso indevido e deturpado de meios processuais para impedir a concretização do direito do autor (como teses infundadas na contestação, interposições de exceções sem fundamento, recursos com argumentos já rebatidos etc.), o cometimento de atos protelatórios se dá extraprocessualmente, quando o demandado realiza atos materiais que impedem ou postergam o direito pleiteado[7].
Ambas as atitudes se tratam de abusos do réu de seus direitos, seja dentro, seja fora do processo. A expressão de Marinoni peca por ignorar as condutas materiais do réu. Ele não age contra o direito do autor somente no processo; o faz, também, fora. E as duas condutas são passíveis de fundamentar a concessão da tutela de urgência.
3.2. Prova documental robusta e fundamentação em precedente obrigatório da tese autoral
O inciso II merece uma leitura atenciosa, mas não tão receosa. O dispositivo afirma que quando o fato constitutivo do direito autoral for comprovado somente por prova documental (ou documentada[8]) e a tese afirmada na exordial estiver embasada em precedente obrigatório, a tutela de evidência pode ser concedida.
É necessário, assim como no caso da prova documental e documentada, fazer uma leitura sistêmica e íntegra do dispositivo. A literalidade da determinação de que se devem seguir julgamentos de casos repetitivos ou súmula vinculante deve dar lugar à interpretação de que os precedentes obrigatórios insculpidos no art. 927 do CPC/15 é que devem ser base da tese autoral para fundamentar a concessão da tutela[9]. Marinoni, inclusive, vai além, afirmando que os precedentes do STF e STJ e a jurisprudência das cortes de segunda instância é que devem se enquadrar nesse dispositivo[10].
O inciso é reflexo de uma tendência que permeia o Código de 2015: a vinculação dos precedentes dos tribunais superiores, o que causa, mais uma vez, a otimização do tempo do processo e, por tabela, a dinamização de seu ônus.
3.3. Pedido reipersecutório fundado em contrato de depósito
O inciso com a nomenclatura mais difícil talvez seja um dos mais simples do rol do art. 311 do CPC/15. Dispõe o inciso III que a tutela de evidência poderá ser concedida quando há pedido reipersecutório fundado em prova documental do contrato de depósito. O pedido reipersecutório significa o pedido fundado em entrega de coisa[11]. E o pedido deve ser fundado em contrato de depósito.
O CPC/15 não trata mais especificamente sobre a ação de depósito, regulada no Código Civil, que é a ação na qual uma parte entrega um móvel a outra (depositário), que deverá restituí-la quando aquela reclamar. Agora, caso o pedido de entregar coisa esteja fundado em contrato de depósito, será concedida a tutela de evidência – inclusive, liminarmente, nos termos do art. 311, parágrafo único.
O fato alegado para o requerimento da tutela reipersecutória deve se fundar em fato comprovado documentalmente – inclusive, deve-se provar o advento de termo ou acontecimento da mora do depositário, a fim de garantir a concessão da tutela.[12]
O inciso III é o único do rol que lista o meio coercitivo indireto que poderá ser usado para obrigar o devedor a cumprir a obrigação: a multa. Entretanto, deve-se entender que o juiz não está adstrito a tal meio, já que a cláusula geral do art. 139, IV, permite que sejam utilizados demais meios coercitivos, como os indutivos e sub-rogatórios[13].
3.4. Prova documental dos direitos constitutivos não suficientemente impugnada
A última hipótese de concessão da tutela de evidência se calca em demanda cuja prova seja estritamente documental. Nesse pressuposto da tutela, a petição inicial é instruída com documentos que provam os fatos constitutivos dos direitos do autor, e o réu não é capaz de apresentar contraprovas capazes de infirmar a alta probabilidade erguida pelos documentos juntados.
A prova deve ser estritamente documental, suficiente para comprovar os fatos constitutivos alegados pelo autor (em sua totalidade) e o réu deve não ser capaz de gerar dúvida razoável em relação à documentação acostada. O cumprimento de tais requisitos torna apta a concessão da tutela de urgência.
Note-se que tal situação será cabível somente quando a prova for unicamente documental. Em virtude de não haver possibilidade de concessão da tutela de evidência fundada em prova documental não posta em dúvida pelo réu ser concedida liminarmente (por motivos óbvios, já que o réu deve se manifestar anteriormente para que se verifique a robustez de suas alegações), a situação prática será sempre de julgamento antecipado do mérito, por desnecessidade de produção de mais provas (art. 355, I).
Assim, parece, como corretamente aponta Didier, que a tutela provisória de evidência tem precípua função de eliminar o efeito suspensivo da apelação em face de sentença de julgamento antecipado do mérito[14].
4. As tutelas possíveis de concessão por sua evidência
A técnica da antecipação de tutela (nomeada pelo CPC/15 de “tutela provisória”) construída pela doutrina processualista serve justamente a isto: antecipar a tutela final requerida pelo autor, em virtude da probabilidade de seu direito e (conjunção alternativa) do perigo na demora da prestação jurisdicional. Portanto, as obrigações de fazer e não fazer, entregar coisa[15] e, inclusive, pagar quantia podem ser antecipadas pela técnica de redistribuição do ônus do tempo.
A tutela de evidência pode ser concedida em face de cada uma dessas obrigações, desde que esteja patente a probabilidade do direito e, no caso da tutela documentada, haja prova da disposição de obrigatoriedade na concessão da tutela.
Pode ser que se requeira tutela inibitória fundada em precedente das cortes superiores, ou tutela de recuperação de coisa pela desconstituição do contrato de comodato fundada em prova documental induvidada pelo réu, ou, ainda, tutela de pagar quantia certa em que o réu se defende com teses esdrúxulas. Em todos esses casos, caberá a concessão da tutela de evidência.
5. Conclusão: a tutela de evidência em busca da celeridade perdida
A Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein espantou o mundo científico do começo do século XX porque colocou o tempo como uma das dimensões do Universo, demonstrando cientificamente o que a intuição humana já prova: o tempo é uma das coisas mais importantes da vida humana, e a implacabilidade de seu percurso é o que mais nos assusta.
Como falado no início, o processo civil, que busca a pacificação com justiça e a resolução dos conflitos sociais, não pode se eximir de cuidar da rápida prestação jurisdicional aos cidadãos. Tanto em virtude dos perigos que a demora na decisão do Estado-Juiz pode causar, quanto pela possibilidade de inutilidade do provimento jurisdicional.
Apesar de o físico alemão ter provado que o tempo não é uma linha reta implacável, essa realidade continua para os seres humanos – inclusive cidadãos, que precisam buscar o Estado para resolver os conflitos que o percorrer da vida traz. O direito fundamental à celeridade processual e razoável duração do processo – somente posto na Constituição em 2004 – se refere ao direito fundamental à paz e à vida. Não há vida boa sem paz; não há paz sem um Estado que resolve adequada e celeremente os seus conflitos.
A tutela de evidência, como amplamente exposta, se presta a isso. Caso a doutrina processualista olhe com melhores olhos tal provimento, verá quão importante na vida em sociedade é a técnica de antecipação de tutela que dispensa o perigo, mas tão somente se calca na altíssima probabilidade do direito. É economia de tempo e a recuperação da celeridade que há muito se perdeu nos tribunais brasileiros.
O poeta Catulo da Paixão Cearense tem outra visão sobre a passagem do tempo. Os versos finais de seu belo poema “Trem de Ferro” indicam que o fenômeno é muito mais profundo do que imaginamos. No poema, faz uma advertência aos passageiros de um trem em rápido movimento que riem de uma criança que exclama o porquê de o trem não sair do lugar. “Todos nós nos enganamos/Quando, todos os dias, exclamamos/- Como é que o tempo passa tão ligeiro?.../E nós é que passamos.”.
Se a passagem do tempo é a nossa passagem, temos um direito fundamental à resolução rápida, tempestiva e em tempo razoável de nossos conflitos.