INTRODUÇÃO
Para esta abordagem, não aprofundaremos toda a Teoria Pura, mas somente as linhas gerais e o capítulo VIII. Ademais, e como conclusão, serão trazidos à baila os pressupostos do neopositivismo lógico e suas relações com o positivismo kelseneano.
LINNHAS GERAIS DO POSITIVISMO JURÍDICO DE KELSEN
Podemos tratar como fundamento do normativismo kelseneano, a independência científica. Essa independência significa, consequentemente, o emprego de métodos próprios a um objeto de estudo próprio, a norma jurídica.
A norma jurídica, só pode ser uma norma válida, e essa validez é decorrente de uma estrutura escalonada de normas. No cume da hierarquia estariam as normas Constitucionais, dentre as quais estariam normas “não-autônomas” (KELSEN, Hans. 1999. Pag.36), aquelas que outorgam autoridade para o legislativo produzir outras normas. Enfim, disciplinam competências e, mais importante, conferem validez às outras normas hierarquicamente inferiores.
Para a validez da própria Constituição, Kelsen primeiramente explica os processos de estabelecimento de constituições, que podem ocorrer por via Revolucionária, por Assembleias constituintes, ou por golpes de Estado, mas todo esse processo seria eminente político ou pré-jurídico. Já em relação à Constituição vigorante, Kelsen defende uma norma hipotética fundamental (Grundnorm), que seria pressuposta, teria conteúdo indeterminado e seria fonte de validez.
Em relação à eficácia das normas, Kelsen postula uma estrutura deôntica imputativa, diferentemente das estruturas da natureza, onde prevalecem relações de causa-efeito. Ou seja, se na natureza a ebulição é efeito da causa de a água estar a 100 graus celcius ao nível do mar, enquanto no direito o fato de alguém infringir uma norma ensejará o dever de impingir-lhe uma sanção.
Estes são os traços fundamentais, verdadeiros alicerces do normativismo de Kelsen.
A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO NO POSITIVISMO JURÍDICO;
Kelsen trata da interpretação e da questão das lacunas no capítulo VIII da sua obra-prima, a Teoria Pura do Direito. É sem dúvidas o trecho mais polêmico da obra do autor, que vem suscitando, desde sua publicação, enorme celeuma e, faça-se justiça, oriunda de incompreensão acerca dos pressupostos epistemológicos da teoria kelseneana, como será demonstrado no próximo tópico.
Para Kelsen a indeterminação do ordenamento jurídico pode ser casuística ou oriunda da própria vontade do órgão criador do Direito. Podemos fazer uma correspondência de significados entre essas expressões: indeterminação do ordenamento, lacunas, e os hard cases de Dwokin e Hart.
Para Kelsen, tais indeterminações podem ser decorrentes da própria insuficiência em adequar a expressão normativa ao caso concreto, dado que as palavras podem ser plurissignificativas, ou pode ser intencional. O órgão criador da disposição legal pode ter reservado ao órgão aplicador a faculdade de escolher a melhor forma de aplicação, aquela mais adequada a determinado caso, já que tal pode se suceder de inúmeras maneiras; é o que se pode depreender de duas passagens:
‘‘Uma lei de sanidade determina que, ao manifestar-se uma epidemia, os habitantes de uma cidade têm sob a cominação de uma pena, tomar certas disposições para evitar o alastramento da doença. A autoridade administrativa é autorizada a determinar essas disposições por diferentes maneiras, conforme as diferentes doenças’’ (KELSEN, Hans. 1999. Pag.246)
E ainda:
‘‘Simplesmente, a indeterminação do ato jurídico pode também ser a consequência não intencional da própria constituição da norma jurídica que deve ser aplicada pelo ato em questão. Aqui temos em primeira linha a pluralidade de significações de uma palavra ou de uma sequência de palavras em que a norma se exprime: o sentido da norma não é unívoco, o órgão que tem de aplicar a norma encontra-se perante várias significações possíveis.’’ (KELSEN, Hans. 1999. pag 246)
Para tais situações, Kelsen defende o voluntarismo do órgão aplicador. Este poderia aplicar a norma jurídica ao seu alvedrio dentro de uma “moldura interpretativa”. Dentro desta moldura estariam algumas possibilidades que o aplicador poderia escolher, e com isso criar o Direito aplicável àquele caso sobre o qual incide indeterminação.
Evidente aqui a opção de Kelsen pela discricionariedade do intérprete, evidência que se repetirá em Hebert Hart, outro eminente jusfilósofo positivista, e será o cerne da sua contenda com Ronald Dworkin.
Hart também defende a discricionariedade do julgador diante de hard cases. A marca distintiva de sua versão do normativismo seria a de que o Direito conteria as chamadas regras de cognição. Uma regra de cognição seria o teste de validez das normas a serem aplicadas e consistira no grau de aceitação de determinada norma dentre as autoridades competentes e a sociedade em geral.
A definição de Hart é, evidentemente, uma versão do positivismo voltado para a common law, mas a proposta de sua teoria é, fundamentalmente, a mesma do positismo de Kelsen. Assim, no positivismo jurídico, em suas mais variadas vertentes, a questão da lacuna da lei é resolvida pela entrega de discricionariedade ao ‘‘órgão aplicador’’.
Kelsen repudia a concepção de que seja possível a existência de uma única interpretação correta para o caso concreto, posição reproduzida por Habermas e por Alexy.
Relativamente aos princípios, Kelsen nega a dimensão de validade e verificabilidade. Expressões da moral, expressões valorativas, como bem comum, interesse do Estado, não seriam a priori oriundos do direito positivo, portanto, não poderiam ser aplicados com validez. Tais expressões poderiam incidir no momento interpretativo, mas o que importaria no final seria a necessária adequação da interpretação à moldura normativa, senão vejamos:
‘‘(...) Na aplicação da lei, para além da necessária fixação da moldura dentro da qual se tem de manter o ato a pôr, possa ter ainda lugar uma atividade cognoscitiva do órgão aplicador do Direito, não se tratará de um conhecimento do Direito Positivo, mas de outras normas que, aqui, no processo da criação jurídica, podem ter sua incidência: normas de moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos designar por expressões correntes como bem comum, interesse do Estado, progresso, etc. Do ponto de vista do Direito positivo, nada se pode dizer sobre sua validade e verificabilidade. Deste ponto de vista, todas as determinações desta espécie apenas podem ser caracterizadas negativamente: são determinações que não resultam do próprio Direito positivo. Relativamente a este, a produção do ato jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicanda é livre.(...)’’ (KELSEN, Hans. 1999. pag 249)
Tal postura coloca a dimensão normativa como algo dissociado dos princípios. Por tal viés, princípios não podem, por si só, orientar o sentido das regras positivadas; é como se os princípios ‘‘abrissem’’ a interpretação.
O interessante dessa passagem é que Kelsen não nega a existência de princípios, ou expressões similares, ele só determina que tais expressões não são válidas até que ingressem no sistema de normas. Ou seja, o Juiz, ao empregar princípios não positivados na aplicação de uma norma indeterminada, está introduzindo esses princípios no sistema de normas, está criando Direito novo com essas expressões que anteriormente ao ato de aplicação eram meramente políticas, ou pré-jurídicas, só se convertem em normas depois de devidamente aplicados pela autoridade competente. O intérprete, portanto, escolhe qual princípio aplicar. Isso é um prenúncio da forma como se utiliza a tal ponderação de Alexy no Brasil.
O sistema de normas de Kelsen, e os seus pressupostos de interpretação, também se opõem à hermenêutica jurídica da Escola Histórica. Já no início de seu tratado sobre a interpretação, Kelsen alega que tais métodos, se estiverem fora do direito positivo, carecem de validez, da mesma forma que aquelas expressões da moral e do bem comum e, além disso, a utilização deste ou daquele método seria algo subjetivo, uma opção do órgão aplicador, algo defendido também por Eros Grau. É que Kelsen já é influenciado pelo neopositivismo lógico, uma corrente que já observa e tenta aperfeiçoar os pressupostos da ciência moderna.
NEOPOSITIVISMO LÓGICO E O POSITIVISMO JURÍDICO (O GIRO LINGUÍSTICO)
O neopositivismo lógico é uma corrente de pensamento que surgiu de um movimento denominado Círculo de Viena, entre os anos 1922 e 1936 na Universidade de Viena. Tem como representantes, Ludwig Wittgenstein, Ernst Mach, Percy Bridgman, e Rudolf Carnap, dentre outros. O objetivo desse movimento era o de refundar as bases das ciências, mormente no tocante ao ingresso da linguagem como fator fundamental.
O principal eixo do pós-modernismo é relativo à linguagem. no início do século XX, com Ludwig Wittgenstein ocorreu o “linguistic turn” (giro linguístico). Esse giro significa que além de a linguagem ser importante nos processos cognitivos, ela é verdadeira condição de possibilidade para a constituição do conhecimento. (STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica em crise, p.144). Todo o conhecimento, que antes era determinado somente pela relação sujeito-objeto, agora passa a ser determinado pela linguagem.
Assim, diante do linguistic turn, exsurge a pretensão dos neopositivistas lógicos de purificar as proposições sob o crivo da linguagem e analisar a sua verificabilidade. Só é verdade, portanto, o enunciado linguístico que pode ser verificado logicamente. Há aqui uma radicalização da pretensão de certeza do racionalismo iluminista.
Em relação ao positivismo jurídico, Kelsen também traça o limite de verificabilidade de seu objeto. O limite é o que é abrangido juridicamente, ou seja, somente condutas humanas ou situações prescritas na norma positivada, quando esta delimita uma conduta, estabelecendo consequências. Dada essa demarcação, está formada uma proposição jurídica, dentro da qual o cientista observará aquela mesma verificabilidade pretendida pelos neopositivistas lógicos.
A diferença, dentro da teoria pura, é que em relação à atividade de aplicação são observáveis dois juízos, o de validade ou invalidade. É que, como já foi dito alhures, as normas têm natureza prescritiva, sua eficácia reside na lógica do dever-ser. Portanto, na tarefa de aplicação, não é dito que uma norma é verdadeira ou falsa, mas se ela tem validez ou não.
Para amarrar todo o sistema em um encadeamento lógico, desde as normas ordinárias até as Constituições Históricas, e impedindo um retorno de validade ad infinitum, Kelsen propõe a norma hipotética fundamental, que teria uma estrutura de validez pressuposta, ou seja, seria válida por si mesma, a priori, como se fosse um comando geral: “obedeça-se a Constituição”, ou “ a “Constituição deve ser obedecida”.
A estrutura epistemológica do positivismo de Kelsen, portanto, não difere daquela postulada no neopositivismo lógico. Primeiramente cria-se uma linguagem capaz de abstrair os fenômenos e posteriormente verificam-se as proposições passadas pelo crivo dessa demarcação linguística.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005.
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 161.
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
STRECK, Lênio Luiz Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
LUZ, Vladimir de Carvalho. Neopositivismo e Teoria Pura do Direito (Notas sobre a influência do verificacionismo lógico no pensamento de Hans Kelsen). Revista Seqüência, n.º 47, p. 11-31, dez. de 2003.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. (tradução João Baptista Machado). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5.ª ed., rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I.12. ed Petrópolis, Vozes, 2012.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II.12. ed Petrópolis, Vozes, 2002.
LOPES, Tomás Jobin Coutinho. Reflexões sobre hermenêutica clássica e filosófica. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4256, 25 fev. 2015. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/32380>. Acesso em: 19 abr. 2016.
HAHN, Hans; NEURATH, Otto; CARNAP, Rudolf. A Concepção Científica do Mundo – O Círculo de Viena. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Campinas, n. 10, p. 5-20, 1986. Tradução de Fernando Pio de Almeida Fleck.
HART, Hebert L. A. O Conceito de Direito. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994.