1. INTRODUÇÃO
Um fenômeno bastante em evidência, decorrente da globalização e da intercomunicação econômica, social e cultural entre os diversos países, é o da aproximação entre os dois grandes sistemas de Direito vigentes no mundo Ocidental, a Common Law e a Civil Law.
Essas recíprocas influências produziram consideráveis mudanças nos aspectos predominantes desses respectivos sistemas, acarretando no Common Law uma tendência a dar maior relevância à lei escrita em contraposição aos países da família romano-germânica, que vêm elevando o papel da jurisprudência a um patamar quase de igualdade àquele conferido à lei. Isso porque, como já visto, a Civil Law se caracteriza essencialmente pela existência de um Direito escrito e codificado, enquanto a Common Law constitui um Direito eminentemente jurisprudencial.
Ao se analisar o atual sistema de Direito dos Estados Unidos, constata-se uma grande evolução na legislação desse país. O número de leis editadas pelo seu Poder Legislativo adquiriu proporções significativas ao se comparar com a legislação existente em séculos passados.
Esse novo papel reconhecido à norma decorre do fato de que, com a constante evolução da sociedade e o consequente aumento do número de demandas no Judiciário, os tribunais não conseguem identificar o Direito, necessitando, dessa forma, de uma intervenção da lei, meio apto a implementar mudanças sociais rápidas.
Em contrapartida, no sistema de Direito romano-germânico, a jurisprudência é elevada a um patamar de importância maior do que outrora lhe fora reconhecido. Esse amplo acatamento à jurisprudência dos tribunais, como hoje visualizado no Brasil (país que recepcionou e adotou o sistema da Civil Law), tem a finalidade de realizar a segurança jurídica (previsibilidade das condutas), a isonomia (aplicação da mesma solução a casos efetivamente equiparáveis, evitando decisões discriminatórias) e a eficiência (simplifica a atuação dos juízes e tribunais, mediante decisões mais objetivas).
Um dos resultados desse “intercâmbio” de sistemas é, por exemplo, as súmulas vinculantes no Brasil, cuja previsão se encontra estabelecida no art. 103-A da Constituição Federal de 1988, destacando-se atualmente como a maior revelação dessa mudança verificada no contexto jurídico brasileiro.
Patrícia Perrone, retratando essa aproximação entre os sistemas da Common law e da Civil law, enuncia os pontos de diversidade e identidade entre eles:
1) O direito romano nasceu casuístico, problemático e concreto, apresentando semelhanças, em sua origem, com o common law.
2) A jurisdição de equity, responsável pela flexibilização e renovação do sistema inglês, se desenvolveu sob a inspiração de princípios do direito romano e do direito canônico.
3) O civil law tomou emprestadas do ordenamento britânico concepções pertinentes ao direito público, articulando, a partir delas, a harmonização entre o poder estatal e os direitos individuais.
4) Nos Estados Unidos da América, o common law original sofreu adaptações, em virtude da influência da codificação, dentre outros fatores, disto resultando a elaboração de uma Constituição escrita, ou seja, de uma norma no estilo romano, à qual se atribuiu supremacia sobre todas as demais normas e eficácia apta a possibilitar ao Judiciário a declaração de invalidade das leis que conflitassem com ela.
5) A concepção de supremacia da Constituição desenvolvida em tal país inspirou-se na concepção de higher law do direito canônico.
6) Por outro lado, o constitucionalismo norte-americano teve grande influência sobre os países de direito codificado, tendo migrado com ele não apenas uma concepção de Constituição e de controle de constitucionalidade, mas, igualmente, alguns elementos inerentes ao sistema do common law.
7) Sob a influência de tais idéias, diversos países do civil law, a exemplo da Alemanha, da Itália e da Espanha, passaram a conferir efeitos obrigatórios e gerais à decisões de suas cortes constitucionais que reconhecessem a inconstitucionalidade de normas.
8) Por fim, o triunfo das idéias democráticas, as tendências estatais dirigistas, a necessidade de implementar mudanças sociais rápidas e de cumprir com compromissos internacionais têm provocado um crescimento da atividade legislativa em países que adotam o common law.[1]
Essa influência entre os dois sistemas, fruto do fenômeno da globalização, cresceu de maneira tal que há países que não sabem identificar ao certo a qual família de Direito pertencem. Nesse diapasão, René David preleciona:
A tentação para falar de uma família de direito ocidental é tanto mais forte quanto é certo que existem, em certos países, direitos que não se sabe bem a qual das duas famílias pertencem, na medida em que tiram alguns dos seus elementos à família romano-germânica e outros da família da common law. Entre estes direitos mistos podem citar-se os direitos da Escócia, de Israel, da União Sul Africana, da província de Quebec e das Filipinas.[2]
Desse modo, hoje, com a existência de um pensamento cada vez mais universalizado, a tendência entre a Common law e a Civil law já não é mais de mera aproximação, senão de necessária e crescente interpenetração.[3]
2. APROXIMAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS DA COMMON LAW E DA CIVIL LAW
2.1 Crescimento da lei na Common law
Consoante já visto, o desenvolvimento da legislação na Inglaterra vincula-se a alguns fatores históricos, como o triunfo das ideias democráticas (ao lado da afirmação da supremacia do Parlamento, concepção do Estado de bem-estar social e o ingresso do País na Comunidade Européia), que ensejaram a consolidação do sistema democrático no país. Tais fatos, associados a outros, deram fruto a um crescente desenvolvimento legislativo na Inglaterra, verificado até hoje.
Com o advento da Revolução Inglesa (ou Revolução Gloriosa) e o fim da primazia política do Rei, esclarece Dicey que:
A supremacia do Parlamento implica o reconhecimento do poder ao mesmo para produzir ou revogar normas que deverão ser obrigatoriamente observadas por todos, inclusive pelas cortes, inexistindo qualquer órgão ou poder que possa, à luz da Constituição Inglesa, afastar a sua aplicação.[4]
Por outro lado, com o ingresso da Inglaterra na Comunidade Europeia, surgiu a necessidade de cumprir compromissos internacionais, o que provocou uma produção de leis.[5]
Já nos Estados Unidos, com a adoção de um modelo de constitucionalismo baseado em uma Constituição escrita, geral e abstrata (diferentemente do que ocorreu na Inglaterra, onde vigorava a absoluta supremacia do Parlamento), criaram-se condições para a evolução da legislação no país. Além da Constituição, no entanto, a concepção de repartição horizontal (entre o Poder Legislativo, Executivo e Judiciário) e vertical do poder (federalismo) e da diversidade de condições entre a Colônia e a Metrópole colaboraram para o crescimento da lei nos Estados Unidos. Ademais, tendências dirigistas que buscavam maior intervenção do Estado também contribuíram para o crescimento da norma escrita, assim como sucedeu na Inglaterra[6].
A despeito dos diferentes fatores históricos que propiciaram o desenvolvimento da legislação, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, certo é que a lei é um meio apto de se implementarem mudanças sociais rápidas, que não seriam possíveis por intermédio do Judge made law.[7]
2.2 Crescimento da jurisprudência na Civil law
Em razão dos caracteres de generalidade e de abstração de que se revestem as normas na Civil law, atribuiu-se aos juízes e tribunais, por meio da atividade interpretativa, a função de explicitar o significado final dos comandos abstratos veiculados nas normas, na maioria das vezes, dispostas em códigos.
Conforme já mencionado, entretanto, o envelhecimento dos códigos, que já não mais acompanhavam a evolução social e econômica da sociedade, foi fator estimulador da valorização da jurisprudência como fonte de Direito.
Os tribunais passaram, cada vez mais, a ser invocados para esclarecer e aprimorar o conteúdo das leis, formulando respostas para situações não previstas em lei e que lhes eram postas sob análise.
É cediço dizer que as mudanças sociais ocorreu de maneira muito rápida, de modo que se faz necessária uma intervenção mais precisa do Judiciário para dizer o Direito aplicável ao caso concreto, adaptando os antigos códigos às novas realidades da sociedade.
Ademais, a jurisprudência adquiriu o relevância como fonte nos países que adotam o sistema da Civil law, mormente depois que nesses Estados se adotou a ideia de supremacia da Constituição e a necessidade de preservar a sua força normativa, quando, a partir de então, os precedentes dos tribunais constitucionais passaram a ser dotados de força normativa nos ordenamentos romanos.[8]
Foi nesse cenário e sob a vigência da Constituição Federal de 1988 (com a qual a jurisprudência ganhou novo papel), que surgiu a figura das súmulas vinculantes no Brasil – ao lado de outras como a ADC, ADI, ADPF etc.[9] – sendo dotadas de força normativa e possuindo seus julgados efeitos gerais e vinculantes em relação a todos os órgãos administrativos e judiciais, com exceção do próprio Supremo Tribunal Federal.[10]
3. CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, constata-se, ao se analisar a evolução histórica do sistema de Direito da Common Law e da Civil Law, que, ao longo dos séculos, essas duas famílias jurídicas foram recebendo influências recíprocas, de modo a aproximarem-se um do outro, levando a identificar no Direito brasileiro algumas características inerentes ao sistema ianque, como a ascensão da jurisprudência (com ênfase para aquela firmada pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito das súmulas vinculantes), hoje verdadeiro fator de criação do Direito, característica esta marcante do sistema jurídico dos Estados Unidos. Por outro lado, verifica-se o crescimento da codificação nos países que adotam o sistema de Direito da Common law, que, a princípio, tomava a lei como fonte secundária do Direito.
Assim, vislumbra-se a notória proximidade do Direito estadunidense ao brasileiro, porquanto seus conceitos muitas vezes são de tal modo semelhantes que se confundem, em virtude dessa grande influência que um recebe do outro.
Notas
[1] MELLO, Patrícia Perrone Campos, Op. cit., p. 52-54.
[2] DAVID, René. Op. cit. p. 20.
[3] BUSATO, Paulo César. Op. cit. p. 18.
[4] DICEY, A. V. Introduction to the Study of the Law of the Constitution. Disponível em: <http://www.constitution.org/cmt/avad/law_con.htm> Acesso em: 8 ago. 2010, p. 120.
[5] MELLO, Patrícia Perrone Campos. Op. Cit., p. 29.
[6] MELLO, Patrícia Perrone Campos. Op. Cit., p. 37-38.
[7] Id., p. 29.
[8] MELLO, Patrícia Perrone Campos. Op. cit. p. 51.
[9] ADC: Ação Declaratória de Constitucionalidade; ADI (Ação Declaratória de Inconstitucionalidade) e ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) são instrumentos de controle de constitucionalidade previstos na CF/1988.
[10] Será visto no cap. 3 que o próprio Supremo Tribunal Federal não está a elas vinculado, podendo proceder a sua revisão e cancelamento. Por outro lado, o Poder Legislativo também a elas não se vincula, podendo editar, inclusive, lei em sentido contrário.