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O poliamor

22/07/2016 às 13:24
Leia nesta página:

Se relações poliafetivas não forem consideradas estáveis, serão poligâmicas, clandestinas, não havendo deveres de fidelidade, assistência ou partilha de patrimônio entre os membros. O considerado infiel, neste caso, ficaria com tudo?

É crime praticar bigamia.

Há algum tempo, foi dito na Relazione Ministeriale do Código Penal Italiano: “O ordenamento da sociedade domestica na quase-totalidade dos Estados da Europa e maior parte dos Estados do mundo, repousa por uma tradição ultramilenária na atuação do princípio monogâmico, que espiritualiza a união sexual, fazendo do matrimônio o consortium ominis vitae. A bigamia é o crime mais grave e diretamente ataca esse princípio, tendendo-a, mais que subverte-lo, anulá-lo”.

A bigamia já foi considerada crime sexual ou contra os costumes. O Código Penal de 1940 o coloca como crime contra o casamento, pois que o ilícito ataca a família.

O delito de bigamia consiste em contrair alguém casado novo matrimônio. O pressuposto do crime é o primeiro casamento.

Por sua vez, o adultério consiste na ação física envolvendo não somente a cópula normal, mas, ainda, equivalentes seus, ou atos sexuais inequívocos. É importante realçar que se trata de conduta desonrosa ao casamento. Para Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, parte especial, pág. 575), na linha de Bento de Faria (Código Penal brasileiro comentado, volume V), só o corporifica a conjunção carnal, o coito vagínico. Magalhães Noronha (Direito Penal, volume III, 1977, pág. 317) entende que a ação física delituosa não reside apenas na conjunção carnal, ou seja, na união dos sexos, mas, ainda, em equivalentes fisiológicos ou sucedâneos. O simples beijo não integraria o crime, assim como a simples carícia comum.

O ordenamento penal brasileiro preserva o crime de bigamia, mas revogou o delito de adultério, que continua como infração aos deveres do casamento. É o que se lê da Lei 11.106, de 28 de março de 2005, que revogou o artigo 240 do Código Penal.

É certo que, com a celebração do casamento, surgem direitos e obrigações para ambas as partes, previstos no artigo 1.566 do Código Civil, quais sejam: a) fidelidade recíproca; b) vida em comum, no domicílio conjugal; c) mútua assistência; d) sustento, guarda e educação dos filhos; e) respeito e consideração mútuos.

Há o ensinamento de que a  fidelidade recíproca decorre da organização monogâmica da família, sendo um dever negativo, que requer abstenção da conduta, no sentido de não praticar atos que acarretem na infidelidade de um dos cônjuges.

“(...) A família é o centro de preservação da pessoa e base mestra da sociedade (art. 226 CF/88) devendo-se preservar no seu âmago a intimidade, a reputação e a autoestima de seus membros.” (STJ, REsp 922.462 – SP, Órgão Julgador: Terceira Turma, Relator: Ricardo Villas Bôas Cueva, Julgamento: 04.04.2013, Publicação: 13.05.2013).

Há entendimentos de  que não só o adultério viola o dever de fidelidade recíproca, mas também atos que transgridam a confiança conjugal, como, por exemplo, o namoro virtual. Em outras palavras, quando a conduta gera situações desrespeitosas e ofensivas à honra do outro cônjuge, tem-se a violação do dever de fidelidade recíproca.

Protege a Constituição Federal, no artigo 226, parágrafo terceiro, a união estável.

O Código Civil vigente, no seu artigo 1.723, definiu união estável da seguinte maneira:

Art. 1.723 - É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. 

O dispositivo supracitado não menciona prazo certo para a existência da união estável, com isso passa a ser desnecessário o lapso de cinco anos ou a existência de prole para caracterização de tal instituto. Portanto, é no intuito de constituir família que está o fundamento da união estável.

No âmbito da união estável poder-se-ia mencionar que a ausência do termo "fidelidade" proporcionaria uma maior liberalização neste sentido.

Entretanto, a Constituição Federal em seu artigo 226, § 3º, regulamentado pela Lei 9278 de 1996, artigo 1º, bem como toda a doutrina dominante, equipara a união estável e o casamento em vários aspectos, entre eles ao dever de fidelidade ali expresso, no vocábulo "lealdade".

Adultério é violação sexual havida fora do âmbito conjugal.

O desrespeito a tal dever configura-se, a princípio, pela prática de relação sexual com pessoa estranha ao casamento ou à união estável. Mas, observe-se que  seu descumprimento dá-se pela prática de ato sexual com terceira pessoa e também de outros atos que, embora não cheguem à conjunção carnal, demonstram o propósito de satisfação do instinto sexual fora da sociedade conjugal.

Mas vivemos uma sociedade onde há nítida liberalização de costumes. E vem daí a prática do que se chama de poliamor. Com o chamado poliamor se quer defender e pregar o ativismo poligâmico. Dir-se-ia que a  família monogâmica é o modelo adotado pela nossa civilização ocidental.

Esse o reconhecimento dado pelo Superior Tribunal de Justiça:

DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. RELAÇÃO CONCOMITANTE. DEVER DE FIDELIDADE. INTENÇÃO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. AUSÊNCIA. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 1º e 2º da Lei 9.278/96. 1. Ação de reconhecimento de união estável, ajuizada em 20.03.2009. Recurso especial concluso ao Gabinete em 25.04.2012. 2. Discussão relativa ao reconhecimento de união estável quando não observado o dever de fidelidade pelo de cujus, que mantinha outro relacionamento estável com terceira. 3. Embora não seja expressamente referida na legislação pertinente, como requisito para configuração da união estável,  a fidelidade está ínsita ao próprio dever de respeito e lealdade entre os companheiros. 4. A análise dos requisitos para configuração da união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, e também a fidelidade. 5. Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade - que integra o conceito de lealdade e respeito mútuo - para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade. 6. Ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade. 7. Na hipótese, a recorrente não logrou êxito em demonstrar, nos termos da legislação vigente, a existência da união estável com o recorrido, podendo, no entanto, pleitear, em processo próprio, o reconhecimento de uma eventual uma sociedade de fato entre eles. 8. Recurso especial desprovido” (STJ – REsp 1348458/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/05/2014, DJe 25/06/2014)

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Não se pode, contudo, desconhecer opiniões divergentes:

Maria Berenice Dias afirma:

“Pretender elevar a monogamia ao status de princípio constitucional autoriza que se chegue a resultados desastrosos. Por exemplo, quando há simultaneidade de relações, simplesmente deixar de emprestar efeitos jurídicos a um, ou pior, a ambos os relacionamentos, sob o fundamento de que foi ferido o dogma da monogamia, acaba permitindo o enriquecimento ilícito exatamente do parceiro infiel. Resta ele com a totalidade do patrimônio e sem qualquer responsabilidade para com o outro.” (Manual de Direito das Famílias, 4ª edição, São Paulo:Editora RT, 2007, p.59).

Não se desconhece, outrossim, que ganha relevância para o direito a chamada teoria psicológica do poliamorismo ou poliamor. A esse respeito, veja-se:

A psicóloga Noely Montes Moraes afirma que “a etologia (estudo do comportamento animal), a biologia e a genética não confirmam a monogamia como padrão dominante nas espécies, incluindo a humana. E, apesar de não ser uma realidade bem recebida por grande parte da sociedade ocidental, as pessoas podem amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo.” (Revista Galileu, reportagem “O Fim da Monogamia?”, Editora Globo, outubro de 2007, p.41).

Transcrevo trechos do  voto-vista proferido pelo Ministro Carlos Aires Britto no julgamento do Recurso Extraordinário n. 397.762:

“Sabido que, nos insondáveis domínios do amor, ou a gente se entrega a ele de vista fechada ou já não tem olhos abertos para mais nada? Pouco importando se os protagonistas desse incomparável projeto de felicidade-a-dois sejam ou não, concretamente, desimpedidos para o casamento civil? Tenham ou não uma vida sentimental paralela, inclusive sob a roupagem de um casamento de papel passado? ... ainda que não haja tal desimpedimento, nem por isso o par de amantes deixa de constituir essa por si mesma valiosa comunidade familiar? ... Minha resposta é afirmativa para todas as perguntas... porque a união estável se define por exclusão do casamento civil e da formação da família monoparental. É o que sobra dessas duas formatações, de modo a constituir uma terceira via: o tertium genus do companheirismo, abarcante assim dos casais desimpedidos para o casamento civil, ou, reversamente, ainda sem condições jurídicas para tanto... Sem essa palavra azeda, feia discriminadora, preconceituosa, do concubinato.”.

Prossegue o Ministro:

“à luz do Direito Constitucional brasileiro o que importa é a formação em si de um novo e duradouro núcleo doméstico. A concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isto é família, pouco importando se um dos parceiros mantém uma concomitante relação sentimental a dois.”.

Passemos ao caso concreto.

O Conselho Nacional de Justiça orientou  aos Cartórios que não realizem novas uniões de mais de duas pessoas. Após uma representação da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), o CNJ recomendou a proibição de novas escrituras públicas de reconhecimento de uniões civis poliafetivas.

A corregedora nacional de Justiça, ministra Nancy Andrighi, pediu que os cartórios do país aguardem a conclusão do estudo sobre o caso no CNJ para lavrar novas escrituras. — Essa é apenas uma sugestão aos tabelionatos, como medida de prudência, até que se discuta com profundidade esse tema tão complexo que extrapola os interesses das pessoas envolvidas na relação afetiva — disse a ministra, reafirmando que não é uma proibição, mas uma sugestão.

Os que são contrários ao registro de escrituras públicas oficializando essas uniões aduzem que esse tipo de união, poliafetiva, não tem direitos de família e a sucessões. Para os que são contrários a essa união, não haveria direitos de lealdade, fidelidade, assistência, presunção de partilha de patrimônio entre os membros. Assim, se não são estáveis, tais relações são poligâmicas e, portanto, não mereceriam o arrimo do direito.

É bom lembrar que a matéria não pode ser tratada, numa sociedade democrática, aberta, com discriminações de tal forma a condenar essa opção de formação de vínculo e desconhecê-la de todo. 

O Estatuto das Famílias (Projeto de Lei n. 2.285/2007, do Deputado Sérgio Barradas Carneiro), projeto cuja elaboração foi permeada pelo real significado do Direito de Família, com forte influência do IBDFAM, estabelece em seu artigo 64, parágrafo único: “A união formada em desacordo com os impedimentos legais não exclui os deveres de assistência e a partilha dos bens.”

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. O poliamor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4769, 22 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50595. Acesso em: 7 nov. 2024.

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