Um dos gravíssimos problemas vividos por kleptocracias como a brasileira (kleptocracia = sistema de governabilidade de ladrões e aproveitadores; com “k”, é neologismo) é a ausência ou a frouxidão das responsabilidades das elites dirigentes. Todo mundo das elites quer mandar e desmandar. Ninguém quer prestar contas para a população. Busca-se a impunidade tanto quanto se pratica a corrupção ou a usurpação da coisa pública.
O STF, depois de 12 anos, somente agora autorizou a quebra de sigilos do senador Romero Jucá, numa investigação que apura desvio de dinheiro público ocorrido há quase duas décadas. 12 anos! Há mais de 3 anos (é isso mesmo: há mais de 3 anos!) está no STF uma denúncia contra o senador Renan Calheiros por desvio do dinheiro público (caso de 2007 envolvendo a Mendes Júnior que pagava a pensão da sua filha), que até hoje não foi sequer recebida (ou rejeitada).
Gilmar Mendes ficou com o processo da proibição de financiamento empresarial de campanhas por mais de um ano e nada aconteceu. O prazo para devolução do processo (com pedido de vista) é de 20 dias. Com exceção do seu posicionamento, já ninguém contesta que foi esse tipo de financiamento eleitoral kleptocratamente elitista a fonte da falência da Petrobras e de outras estatais, que acabou ajudando a quebrar o país. Quem no Brasil não enxerga a relação de causa e efeito entre financiamentos de campanhas e a corrupção?
Na Lava Jato, o STF já quebrou mais de 100 sigilos bancários, telefônicos e fiscais e já autorizou a investigações de dezenas de políticos. Mas das 11 denúncias oferecidas, até agora, só 3 foram recebidas. A gestão Lewandowski está se encerrando com esse saldo (raquítico). Espera-se que a gestão Cármen Lúcia (que se avizinha) seja mais eficaz, começando pela nomeação de mais (ou de vários) juízes para auxiliar nos trabalhos dos ministros da Corte.
Não se pode esquecer que a corrupção continua sendo o problema número 1 do país (pesquisa Folha, julho/16). O STF precisa ter sensibilidade para a realidade. Tem que romper, nos limites constitucionais, com o elitismo da sua criação (fenômeno que vem desde a constituição norte-americana).
Há investigação contra políticos em andamento no STF desde 2004 (ver G. Alessi, El País). Desde 2004! As investigações se arrastam indefinidamente, enquanto a população angustiada espera respostas mais céleres (porque quer a devida limpeza no jogo político e do mercado). Investigações morosas significam prescrições, e prescrições são impunidades (recentemente o ministro Barroso chamava atenção para esse problema).
Esse descompasso contrai a credibilidade da Corte. O senador Jader Barbalho já conseguiu (até agora) seis prescrições no STF (ver G. Alessi, El País). É possível que seja medalha de ouro na modalidade. Sarney, Collor, Maluf e dezenas de outros políticos já foram beneficiados com prescrições no STF.
O senador Ivo Cassol foi condenado pela Corte em 2013, a mais de 4 anos de cadeia. Continua solto e no exercício do mandato, como se nada tivesse ocorrido. Isso desprestigia o STF, ainda mais quando se sabe que seu crime de desvio de dinheiro público é de 1998. Esses fatos retiram a confiança na Justiça, porque não se vê a certeza do castigo.
Repita-se: se faltam juízes, nomeiam-se auxiliares. O que não é concebível (do ponto de vista da cidadania, que quer uma prestação jurisdicional efetiva) é negligenciar a “certeza do castigo” de que falava Beccaria, em 1764 (posto que isso é mais relevante que muitas mudanças na lei).
Todas as Cortes Supremas (desde a norte-americana, que inaugurou o sistema de nomeação dos juízes pelas elites dominantes – ver R. Gargarella, Crisis de la representación política, p. 73 e ss.) são compostas para serem manipuladas (sobretudo depois que se decidiu que a Corte Suprema tem o poder de revisar as leis do país e interferir nos conflitos dos demais poderes – Caso Marbury vs. Madison, de 1803).
Se a manipulação dos juízes acontece é outra questão. No Brasil já tivemos caso em que o governante disse: se o juiz der habeas corpus ao adversário, quero ver quem vai dar habeas corpus para ele. As kleptocracias não prosperam onde existem instituições fortes que colocam freios nos abusos e usurpações. Sem freios, todos que têm o poder tendem a praticar abusos (Lord Acton).
A impunidade das elites se busca pela combinação de vários fatores: (a) nomeação por elas dos juízes das cortes superiores; (b) instituição do foro especial (privilegiado); (c) leia-se: as elites governantes nomeiam os juízes que vão julgá-las; (d) falta de estrutura nos tribunais (o que garante a morosidade, geradora das prescrições). Tudo isso combinado, é quase certa a impunidade (com exceções, como foi o caso do mensalão). É preciso acabar com o foro especial nos tribunais o mais rápido possível. Assim como com as nomeações dos ministros pelas elites dominantes.
Tudo bem analisado se conclui: o sistema está programado para dar em nada (só de vez em quando é que a programação falha). As elites dominantes americanas – os pais fundadores - diziam (na discussão da Primeira Constituinte) que os juízes tinham que ser “imparciais”. Para garantir essa “imparcialidade” eles deveriam ser nomeados por elas e conservados em seus cargos enquanto dure a boa conduta (ver R. Gargarella, citado, p. 73). Eram mais explícitos e sinceros. Nada mais é preciso dizer sobre o elitismo dessas nomeações. Importam seus interesses. Cinicamente, hoje se diz que não é bem assim. Mentira!
No Brasil (tanto quanto nos EUA e em muitos outros países), até hoje, a nomeação continua nas mãos das elites dominantes e governantes (nomeação do presidente com “sabatina” no Senado). O elitismo da escolha brilha como o sol do meio dia. Esse sistema, qualquer que seja o país, é insustentável, mas se torna muito mais preocupante nas kleptocracias. A mácula sempre fica: “esse ministro é da bancada do presidente fulano” ou “cicrano” etc.
O melhor sistema é combinar meritocracia com sorteio. Havendo vaga, abrem-se as inscrições; o STF analisa os candidatos, suas habilidades e competências e faz lista sêxtupla; o Congresso faz as devidas audiências públicas e digitais para escrutinar os pretendentes; no final, dentre os que restaram, uma vez provadas suas aptidões e competências (méritos), faz-se o sorteio para a escolha do novo ministro. Se todos são competentes, qualquer um pode cumprir com honradez e seriedade suas funções. Essa é mais uma sugestão para o aprimoramento institucional da Justiça.
Nos tribunais, a pauta do que vai a julgamento exige mais transparência (não pode o assunto ficar ao bel prazer do presidente ou de cada relator). Tudo isso tem que ter regras. A leitura pública dos votos deveria se limitar às conclusões e principais fundamentações. Leitura longa e cansativa de votos aborrecem (porque está tudo escrito). Ministro só pode falar “nos autos” (diz a Lei Orgânica da Magistratura, que é rasgada todos os dias, nesse ponto).
Nossa postura crítica ao STF tem o propósito de melhorá-lo. Só isso e nada mais. A cidadania agradece os avanços. Ele tem prestado bons serviços para a população brasileira (mensalão, afastamento do Cunha, prisão de senador colhido em flagrante, condenação de vários parlamentares desde 2010 etc.).
Mas sempre há um descompasso entre o que ela gostaria e o que é efetivamente feito. A desculpa sempre é da falta de estrutura. Mas há como se solucionar isso (nomeando juízes auxiliares). O STF não foi feito para ser juízo de 1º grau instrutor de provas. Essa é uma função aberrante (para ele).
O economista austríaco Schumpeter disse que capitalismo sem “destruição criativa” é uma contradição (não é capitalismo competitivo). As inovações (criações) destroem continuamente tudo que fica obsoleto. Isso é o que garante a sobrevivência do capitalismo: inovações contínuas, sobretudo na era das tecnologias digitais.
O STF, ao contrário do capitalismo, foi programado para não ter inovações. Foi programado para o imobilismo. Foi desenhado para ser kleptoconivente (ainda que involuntariamente) com a impunidade das elites dominantes. A ruptura desse sistema começou com o mensalão. Mas tem que se intensificar. Há muita esperança com a nova gestão da ministra Cármen Lúcia. Aguardemos.